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Modulação dos Efeitos da Inconstitucionalidade das Leis em Benefício do Estado: o começo do fim

ANO 2016 NUM 164
Ana Paula Oliveira Ávila (RS)
Mestre (2001) e Doutora (2007) em Direito pela UFRGS. Professora Titular de Direito Constitucional dos cursos de Graduação e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter.


06/05/2016 | 7337 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Quando a Lei 9.868 foi editada no ano de 1999, foi oficialmente introduzida em nosso sistema a possibilidade de o STF modular os efeitos dos atos declarados inconstitucionais nos casos em que razões de segurança jurídica e excepcional interesse social justificassem tal medida. A disposição contida no art. 27 da referida lei, ao autorizar a determinação dos efeitos iniciais da declaração de inconstitucionalidade de modo ex tunc parcial, ex nunc ou pro futurum, revolucionou, de certo modo, a tradição da Corte em declarar a inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, algo incorporado ao exercício da jurisdição constitucional brasileira por influência do direito norte-americano. Assim, a declaração de nulidade com efeitos ex tunc era a regra e a possibilidade de modulação dos efeitos temporais da decisão era algo absolutamente excepcional que ocorria longe de quaisquer das limitações contidas no art. 27 da lei 9.868/99, a saber: maioria de 2/3 e justificativa com base na segurança jurídica ou excepcional interesse social.

Preocupada com a indeterminação apriorística dos conceitos de “segurança jurídica” e “excepcional interesse social”, em 2007 defendi uma tese de doutoramento junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ocasião em que defendi, entre outros pontos, a tese de que o dispositivo em tela somente poderia ser invocado em benefício do cidadão e jamais do Estado (cf. AVILA, Ana Paula Oliveira. A modulação de efeitos temporais pelo STF no Controle de Constitucionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009).

Passadas quase duas décadas da vigência da lei, percebe-se que a Corte tem se esforçado para manter os efeitos de ato inconstitucional somente em casos que implicam a preservação de direitos de que tenha o cidadão usufruído por conta da vigência da lei, numa das aplicações da chamada boa-fé objetiva: os direitos foram obtidos de boa-fé e na expectativa de que fossem legitimamente usufruídos.

De outro modo, nos casos em que as leis inconstitucionais, em decorrência de sua vigência, tenham imposto restrições a direitos do cidadão ou estipulado deveres em detrimento da liberdade ou de outros direitos cuja inviolabilidade é a todos assegurada pela Constituição, o desfazimento dos efeitos se impõe, com o retorno das partes ao status quo ante. Esse desfazimento – ou a aplicação da regra geral do efeito ex tunc –  vem sendo contestado em diversas ações de natureza tributária que aguardam julgamento pelo STF, principalmente no que diz respeito à inconstitucionalidade das contribuições sociais. São casos em que o fisco requer ao Supremo a modulação de efeitos com o objetivo de bloquear a repetição do indébito ao contribuinte, ao argumento de que, fosse devida a devolução do tributo inconstitucionalmente exigido, estar-se-ia na iminência de grave prejuízo à saúde financeira do Estado. A tendência é de que, face à grave crise econômica que o país atravessa, argumentos desta natureza e propostas de arranjos políticos e pragmáticos se acumulem para exame dos Ministros. Pede-se que façam a “ponderação” entre os direitos de liberdade e propriedade do contribuinte, que a Constituição considera(va?) invioláveis, e a “saúde financeira do Estado” – algo de que a Constituição se ocupa apenas ao exigir a responsabilidade fiscal dos governantes, mas não deseja que ocorra à custa de obrigações indevidas pelo contribuinte à medida que seu patrimônio está expressamente protegido contra efeitos confiscatórios (art. 150, IV).

Tenho esperança de que o STF não se dobre aos interesses da Fazenda nessas questões. Modulação de efeitos é coisa séria. É algo que sustenta um dos pilares fundamentais do Estado de Direito – a segurança jurídica – e a própria confiança do cidadão nas Instituições – confiança que já anda suficientemente corroída pela crise política que anda pari passu à crise econômica. Não se trata de retórica: a própria Constituição e seus princípios fundamentais, se considerados com rigor, impedem a modulação de efeitos em benefício do Estado e prejudicial ao cidadão. Senão, vejamos.   

Uma análise dogmática do instituto da proteção da confiança na Constituição Federal de 1988 faz observar, no art. 5º, caput, a garantia contra “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade...”, bem como, no art. 6º, a dos “direitos sociais a educação (...) a segurança, a previdência”, etc. As duas menções expressas à “segurança” traduzem, para não deixar dúvidas, que a segurança jurídica, para além de um dos pilares do estado de direito, é um dos direitos fundamentais do cidadão.

A segurança jurídica guarda íntima relação com a proteção da confiança. Para Almiro do Couto e Silva (orientador da tese que defendi), é a boa-fé e sua vertente de proteção da confiança que dão conteúdo ao princípio da segurança jurídica, para que “nos vínculos entre o Estado e os indivíduos, se assegure uma certa previsibilidade da ação estatal, do mesmo modo que se garanta o respeito pelas situações constituídas em consonância com as normas impostas ou reconhecidas pelo poder público, de modo a assegurar a estabilidade das relações jurídicas e uma certa coerência na conduta do Estado” (COUTO E SILVA, Almiro. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro... in Revista Brasileira de Direito Público, Ano 2, n.6, p. 7-59, Belo Horizonte, 2004, p. 9).

Ainda segundo Couto e Silva, o princípio da segurança jurídica deve ser considerado num duplo aspecto: o objetivo, que diz respeito à irretroatividade dos atos estatais (inclusive normativos) e à proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, consagrados no art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição Federal de 1988; e o subjetivo, que diz respeito à proteção da confiança do cidadão em relação à validade dos atos, procedimentos e condutas do Estado, em todo o seu âmbito de atividades (idem, p. 10).

No que toca aos atos normativos estatais, é bem verdade que essa presunção de validade não é plena e, por isso mesmo, pode ser desfeita por decisão do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade. No entanto, até a decisão final – ou suspensão liminar de eficácia – a norma é presumidamente válida, sendo portanto exigível o seu cumprimento. A questão está em se saber distinguir aquelas situações em que a norma gerou benefícios ao destinatário e criou neles a expectativa de que esses fossem válidos. A declaração de inconstitucionalidade da norma, com efeito retroativo, implicaria o retorno ao status quo ante em relação a tais benefícios, mas a proteção da confiança, por ter assento constitucional, pode ser ponderada com a norma que justifica a declaração de inconstitucionalidade e obrigar o reconhecimento da permanência dos seus efeitos (AVILA, op. cit., p. 151).

De outro modo, a questão inicialmente proposta neste breve ensaio é responder se o Estado pode também invocar a segurança jurídica, nesse mesmo aspecto, para a manutenção de situações que a lei inconstitucional tenha gerado em seu benefício. A resposta é não, taxativamente não, por diversas razões.

Primeiro porque, se esse benefício deu-se em detrimento de direitos fundamentais do indivíduo, o fato de serem “fundamentais” previne quaisquer ilações que autorizem o seu sacrifício em caso de conflito, sobretudo se do outro lado da balança não se encontra qualquer outro direito fundamental específico ou prerrogativa constitucionalmente válida por parte do estado (cf. AVILA, op. cit., 128 e ss.).

Segundo, porque a segurança jurídica é também um direito fundamental do cidadão (art. 5º, caput) oponível ao estado, e o Supremo Tribunal Federal, na esteira do pensamento constitucional germânico, tem confirmado o entendimento de que os direitos fundamentais aproveitam aos cidadãos e, não, ao Estado (SCHLAICH, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht: Stellung, Verfahren, Entscheidungen. 4 ed. München: Verlag C. H. Beck, 1997, P. 102. Cf. RE n. 251.756/SP, Rel Min. Moreira Alves, 8/05/1998).

E terceiro, porque uma análise mais aprofundada de alguns aspectos do princípio da boa-fé, o qual, por aqui, tem servido para complementar a segurança jurídica no sentido de proteção da confiança, jamais autorizaria que o autor de um ato inválido pudesse lograr qualquer proveito através dele. Sobre este argumento considerando a boa-fé, alguns aprofundamentos se fazem necessário.

Os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica podem ser assim formulados: o cidadão deve poder ter confiança de que os atos ou decisões públicas, incidentes sobre os seus direitos, estão relacionados a efeitos duradouros, previstos ou calculados com base nas normas jurídicas vigentes. Esses princípios a pontam basicamente para: (a) a proibição de leis retroativas; (b) a inalterabilidade do caso julgado; e (c) a tendencial irrevogabilidade de atos administrativos constitutivos de direitos (CANOTILHO, J. Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4a Ed. Coimbra: Almedina, p. 252).

O princípio da proteção da confiança é comumente vinculado à noção de boa-fé objetiva porque ambos são entendidos, quase sempre, como institutos que implicam a ideia de coerência com a conduta precedente. Nesse sentido, é de se destacar um importante aspecto da boa-fé objetiva, que diz respeito à proibição do venire contra factum proprium que, aparentemente, apresenta semelhanças com a proteção da confiança. Por força do non venire contra factum proprium, exige-se a manutenção de condutas coerentes dentro do tráfego jurídico, estando vedada a conduta contraditória (PÉREZ, Jesús Gonzáles. El principio general de la buena fe en el derecho administrativo. 3. ed. Madri: Civitas, 1999, p. 21). O venire impediria, assim, o desfazimento de atos constitutivos de direitos e benefícios fruídos no passado por determinação legal.

A cláusula do tu quoque é outro importante aspecto do princípio da boa-fé, relevantíssimo para a justificação da tese proposta, no sentido de que o art. 27 não pode ser invocado em benefício do Estado, mas tão só do indivíduo ou da sociedade.

O tu quoque diz respeito ao exercício inadmissível de um direito quando a posição jurídica alegada tenha sido obtida mediante uma conduta ilegal (ou, nas relações contratuais, contrária ao contrato). De uma forma mais generalizada – ainda que menos exata –, diz Wieacker que “somente a própria fidelidade jurídica pode exigir fidelidade jurídica” (WIEACKER, Franz. El princípio general de la buena fe. 2.ed. Madri: Civitas, 1986. p. 66).

Traduz-se, deste modo, uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído. Franz Wieacker considera o tu quoque como uma “exceção da aquisição de um direito de má fé”. O caso de aplicação mais concreta desta regra é a fórmula que impede à parte recorrer, em sua defesa, ao ordenamento jurídico quando ele mesmo não o respeitou. Está em jogo um vetor axiológico intuitivo que aglutina uma série de máximas forenses como “turpitudinem suam allegans non auditur” (fórmula do direito canônico, ainda que desenvolvida no direito romano); “equity must come with clean hands”; “he who wants equity must do equity”  (WIEACKER, idem, p. 69).

Condensa-se, assim, uma espécie de represália à infidelidade jurídica, que significa, para a situação aqui tratada, a infidelidade do Estado em relação à Constituição que lhe ampara e constitui. Assim, seria incongruente com os ditames da boa-fé (objetiva, saliente-se), a mais não poder, a solução que permitisse ao Estado usar (no caso, abusar) do poder de legislar em desrespeito à Constituição – ou seja, inconstitucionalissimamente , e, como prêmio, ainda dispor da possibilidade de ver mantido o proveito que tenha logrado em virtude da lei inconstitucional, muito especialmente se esse proveito se dá em detrimento dos direitos individuais.

Este importante aspecto do princípio da boa-fé reside, muito mais que numa proposição juridicamente fundada na segurança jurídica, na própria virtude e na ética das comunidades juridicamente organizadas, e há que ser considerado, portanto, na interpretação do art. 27 da Lei nº. 9.868 de 1999 (AVILA, op. cit., p. 155). Não parece demasiado considerar senso comum que fere as sensibilidades primárias de qualquer um – éticas e jurídicas –, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir de outrem o seu acatamento (MENEZES CORDEIRO, A. Manuel. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997.p. 837).

Esses aspectos da boa-fé – particularmente o tu quoque – revelam que uma eventual modulação pró-estado nos litígios de ordem tributária seria de todo arbitrária. Não por outra razão é que o STF, por outros caminhos, em geral vem se mantendo imune ao argumento da situação calamitosa dos cofres públicos. Seu primeiro compromisso, afinal, é com a Constituição – e não com a má condução das políticas econômicas no país. Já em 1995, quando provocado a modular efeitos no julgamento da ADI 1.102/DF (Rel. Min. Maurício Corrêa, julgada em 05/10/1995), a maioria da Corte demonstrou resistência à ideia e o Min. Marco Aurélio ainda fez um alerta no sentido de que a chancela aos efeitos de norma inconstitucional nesta seara seria um incentivo à produção de leis inválidas pelo Estado. Disse o Ministro em seu voto: “... Há ainda o aspecto ligado à porta que estaria aberta e quase que implementado o estímulo a legislar-se, no campo tributário, em descompasso com a Carta Política da República, com inegáveis prejuízos, para a sociedade, para os cidadãos como um todo.”

Se a proteção da segurança jurídica e, por natural consequência, do estado de direito, não forem suficientes para impedir uma modulação de efeitos arbitrária em benefício do Estado, cumpre lembrar ainda outros fundamentos inarredáveis da nossa ordem constitucional. Na doutrina alemã, Frotscher relaciona o princípio da boa-fé com a necessidade de proteção da dignidade humana pelos poderes públicos. Entre os principais objetivos do princípio da dignidade humana está a proteção e o respeito ao indivíduo, com a respectiva proteção dos seus direitos fundamentais, objetivos que não podem ser alcançados se o Estado, ao intervir na esfera social, não assegurar a estabilidade e a correção de sua ação (GARCIA LUENGO, Javier. El principio de la protección de la confianza en el derecho administrativo. Madrid: Civitas, 2002, p. 145).

Invocam-se também o direito de liberdade e os direitos fundamentais como fundamentos do princípio da proteção da confiança. Sobre o ponto, tem-se interessante tese sustentada por Otto Bachof, segundo a qual o princípio da proteção da confiança seria um instrumento de compensação da dependência do indivíduo à ação estatal, protetivo da liberdade mediante a manutenção das decisões estatais que a implementam. Segundo Bachof, “quanto maior é a coação proveniente dos poderes públicos, quanto mais se restringe o comportamento dos indivíduos, quanto mais for o indivíduo dependente, em suas decisões e disposições, das resoluções dos poderes públicos, tanto mais está ele obrigado a confiar na confiabilidade dessas resoluções estatais. Por isso, para a Administração intervencionista e para a Administração prestacional resulta que o poder unilateral de disposição do Estado (seja através de lei, seja através de ato administrativo) só resulta suportável e conciliável com o Estado de Direito, se corresponder ao indivíduo o direito a uma certa estabilidade das medidas estatais. A dependência, que tornou-se existencial, do indivíduo em função das resoluções dos poderes estatais deve corresponder-se com a possibilidade de se confiar em ditas resoluções” (apud GARCÍA LUENGO, op. cit., p. 165-6).

Esses fundamentos interessam à medida que diante de conceitos jurídicos indeterminados (e temos dois deles no art. 27 da lei 9.868/00), a autoridade judicial se sente autorizada a realizar a chamada “ponderação”, atuando com uma margem “maior” de discrição para atribuir maior ou menor peso aos bens conflitantes envolvidos no problema concretamente considerado.  Isso porque, ao lidarmos com o princípio fundamental da dignidade humana e com os direitos fundamentais do cidadão entre os argumentos favoráveis ao desfazimento dos efeitos do ato inconstitucional (que, de qualquer modo, já seria a regra na declaração de inconstitucionalidade), esses não podem ser simplesmente solapados na fundamentação que mantenha os efeitos para favorecer o fisco e evitar a repetição de indébito do contribuinte, comprometendo sua liberdade de disposição patrimonial. Por isso, reafirmo: a aplicação do art. 27 não deve favorecer ao Estado, apenas aos cidadãos. De outra sorte, retornaremos à condição de súditos, despidos de uma esfera de direitos juridicamente protegida e sem quaisquer garantias, devedores de cega sujeição a comandos legais não amparados pelo sistema constitucional, sem que qualquer consequência se imponha àquele que viola a Constituição no abuso do poder de tributar.

Essa ponderação entre os bens conflitantes (de uma lado, direitos fundamentais dos contribuintes, de outro a suposta iminência de colapso dos cofres públicos) deve atentar para a existência de uma hierarquização axiológica entre os bens constitucionalmente tutelados, pois a valoração constitucional dos princípios é claramente percebida através do texto e da estrutura das normas na Constituição. Uma forma segura de reconhecimento dessa hierarquia axiológica dá-se pela própria interpretação literal: basta ater-se àquilo que o texto designa como fundamental e tem-se os valores para cuja proteção a argumentação haverá de convergir. Os primeiros princípios constitucionais estão vestibularmente dispostos no texto: federação, república, democracia, dignidade humana (art. 1°), tripartição do poder (art. 2º). São nomeados princípios fundamentais, distinguindo-se, por exemplo, dos meros princípios gerais da ordem econômica (art. 170 e seguintes).

Esse descompasso terminológico, todavia, não é produto do acaso. Por isso deve-se, segundo José Souto Maior Borges, ponderar que “os direitos e deveres individuais e coletivos do art. 5º são reunidos sob a rubrica constitucional: ‘Dos direitos e garantias fundamentais’. Fundamental é aí o que está no fundo dos fundamentos. O que sustenta os próprios alicerces constitucionais” (BORGES, José Souto Maior. Pró-dogmática: por uma hierarquização dos princípios constitucionais. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Malheiros, nº. 1, p. 145, 1993).

Reconhecendo-se essa hierarquia, importantes consequências se farão sentir no jogo de argumentos que podem ser suscitados no preenchimento dos conceitos de razões de segurança jurídica e excepcional interesse social. Isso porque essa hierarquia fornece um critério material de prevalência, que favorece a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo e da dignidade humana.

Isso força concluir que a Constituição Federal, norma central e fundamental do ordenamento jurídico vigente, sustenta uma proposta teórica de hierarquização dos princípios, visto que é a base empírica da dogmática constitucional. Essa conclusão não representa um divórcio com a realidade normativa; muito pelo contrário: dela decorre. Este é o caminho iluminado por Souto: “fora do ordenamento jurídico constitucional não há solução: nenhum outro critério para a hierarquização dos princípios constitucionais. Princípio fundamental, em contraposição aos demais, é o que a Constituição Federal diz que assim o é. Impossível portanto caracterizar aprioristicamente princípios de direito constitucional positivo, isto é, com prescindência de critérios ofertados pelo próprio texto constitucional. Conclusão que vale inclusive para a hierarquização dos princípios constitucionais. Essa solução não pode ser ofertada por nenhum direito alternativo” (op. cit., p. 146).

Ora, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e como tal deve ser considerada. Segundo Sarlet, a previsão do art. 1º, inc. III, da CF,  declara explicitamente que o Estado existe em função da pessoa, e não a pessoa em função do Estado, uma vez que o indivíduo é, por essência, a finalidade principal e, não, meio para o Estado (SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 67). Ninguém discute que, enquanto princípio fundamental, a dignidade opera como um vetor que direciona e concatena os fundamentos em favor da pessoa e sua esfera juridicamente protegida. Resta esperar para ver o STF fazer valer isso na prática da jurisdição constitucional.

Ao lidar com os conceitos abertos do art. 27, é mister que o intérprete tenha em mente o dever de proteção dos direitos fundamentais e também o dever de otimização do sentido dos preceitos que os preveem, de modo a jamais utilizar o dispositivo para assegurar a permanência de efeitos lesivos àqueles direitos que eventualmente tenham sido produzidos por norma declarada inconstitucional. Do contrário, uma modulação arbitrária, além de permitir que aquele que deu causa à nulidade se beneficie dela (algo desde logo inconcebível), coloca o cidadão justamente na posição que o Direito e a Moral desejam evitar: na condição de um meio de que se serve livremente o estado para atingir os “seus” fins.

Se a crise econômica serve para promover um pragmatismo condescendente ao Estado, no afã de torná-lo impune pelos abusos praticados na instituição e cobrança de tributos, deveria o mesmo pragmatismo considerar o outro lado da moeda: a situação do contribuinte em meio à crise, já que este contexto também compromete gravemente sua capacidade produtiva e contributiva, e torna cada vez mais difícil o cumprimento de todas as obrigações trabalhistas, previdenciárias e tributárias que incidem sobre as atividades econômicas que movem a economia de um país. A quantidade de negócios fechando suas portas e o índice de desemprego no país, que chega a assustadores 10%, são efeitos diretos da crise. Não é o momento de agravar a situação do contribuinte, especialmente na contramão de uma Constituição que lhe favorece.

É certo que o estado brasileiro e a sociedade vivem um dos momentos mais delicados da sua história. O STF tem exercido um papel fundamental neste contexto de crise econômica e política, chamado a decidir as mais variadas situações envolvendo desvio de finalidade e abusos no exercício do poder. Não deve o Supremo, sob o pretexto do agravamento da crise econômica, agravar ainda mais a crise política, tendo em vista que a solução da última passa pelo restabelecimento da confiança do cidadão nas instituições do país. Uma modulação de efeitos arbitrária como esta pretendida pelo fisco nos diversos casos de cobrança inconstitucional de tributos seria, de fato, o começo do fim: para dizer o mínimo, o fim da confiança que o cidadão ainda deposita no Supremo Tribunal Federal para ver assegurada a sua dignidade.



Por Ana Paula Oliveira Ávila (RS)

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