Colunistas

A regulação, o compliance, as mensagens positivas e os novos repertórios de governança

ANO 2018 NUM 389
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


27/03/2018 | 4703 pessoas já leram esta coluna. | 7 usuário(s) ON-line nesta página

A atividade regulatória do Estado é comumente vista como uma forma moderna de intervenção na economia, ao lado de outras técnicas díspares, como as empresas estatais e o serviço público, num fenômeno – interventivo – que é tido como poliédrico (Ricardo Rivero Ortega), conforme a maior ou menor margem de liberdade de atuação conferida pelos governos ao setor privado em determinado momento histórico e político. Nesse recôncavo, o Direito Público Econômico, em essência e nas palavras de Laubadère, assume-se como o direito aplicável às intervenções das pessoas públicas na economia e aos órgãos dessa intervenção.

A regulação, nomeadamente a econômica, como evidente negação da mão invisível da economia, tem lugar porque, basicamente, há falhas de mercado, que se manifestam, dentre outros fatores, por meio de competição insuficiente, externalidades negativas e assimetria de informações. Como mitigação do princípio liberal do laissez faire, lassez passer, o Estado, conquanto busque tutelar o interesse público, deve autocontrolar-se para não contaminar a iniciativa privada, valor em que, aliás, se funda a ordem econômica nacional (art. 170, caput, CF), sob pena de a falha de mercado que se buscava corrigir se converter em falha de intervenção regulatória, coisa que é na atualidade, certamente, um grande desafio que se impõe aos Poderes Públicos: maximizar a eficiência e o bem-estar da sociedade sem, porém, estorvar ilegitimamente a iniciativa privada.

A regulação, portanto, desde a década de 90 do século passado, apresentou-se, um pouco por todos os lados, como um novo paradigma de atuação estatal, próprio de governos que procuram se centrar nas suas funções essenciais, em negação ao musculado Estado-providência de outrora. Crises econômicas e financeiras, escândalos no mercado e novas tecnologias revelam, contudo, que a regulação está longe de perder o seu importante espaço. Ao contrário, ela tende a se aprimorar e a conviver com outras técnicas mais sofisticadas de conformação do agir dos privados, em que estes passam também a ter de assumir, cada vez mais ativamente, funções de resguardo de valores tidos como essenciais para a comunidade, tais como a defesa da moralidade e da probidade, concorrência leal, preservação do meio ambiente, o afastamento dos conflitos de interesses, combate à corrupção, dentre outros.

E é aqui, portanto, que passam a ganhar realce os mecanismos de compliance, palavra oriunda da língua inglesa e que, cada vez mais, tem feito parte do repertório de profissionais do direito, comunidade acadêmica, jornalistas, empresários, organizações e da Administração Pública, como novilíngua de uma modern regulation. O termo contempla tantas definições e dificuldades de tradução que, por vezes, incertezas e indefinições tendem a qualificar o assunto de que aqui se cuida.

Buscando dar ao tema uma noção jurídica, compliance pode, simplesmente, ser concebido como “conformidade”, ou seja, como um programa ou conjunto de iniciativas exigível de agentes privados, sobretudo daqueles considerados operadores cruciais (tanto em razão da atividade como dos interesses envolvidos), atuem ou não no mercado concorrencial com ânimo de lucro, a fim de se ajustarem ao sistema jurídico em sentido amplo. Uma definição mais usual de compliance pode ser tida como o conjunto de procedimentos que permite assegurar a conformidade do comportamento das pessoas coletivas, dos seus dirigentes e colaboradores às normas jurídicas e éticas que lhe são setorialmente aplicáveis.

Nascido, embora, nos Estados Unidos com a crise de 1929, quando se percebeu que as ideias de autorregulação revelavam-se extremamente temerárias, pelo darwinismo social que a situação proporcionava, só em 2002, com a edição da lei Sarbanes-Oxley (SOx), é que o sistema de compliance passou a ganhar maiores relevância e atenção, como fruto de um esforço americano para prevenir os abusos de mercado, organizar a informação relevante e combater a corrupção e o tráfico de influência, numa clara reação direta aos anos de fraudes contábeis e no mercado financeiro praticadas por aquela que era tida como uma das empresas-chaves do mercado norte-americano: a Enron. A crise financeira de 2008, que depois se converteu em econômica, solidificou de vez a importância dos mecanismos de compliance, ocasião em que a edição da lei Dodd-Frank (2010), como resposta aos escândalos da falha de atuação do Lehmann Brothers (a crise do subprime), demonstrava, à evidência, que a regulação então existente mostrava-se insuficiente. As novas regulamentações, portanto, consubstanciavam reação aos episódios de falha de mercado. Malgrado novos os textos de lei, a ideia, contudo, continua a mesma: a previsão de obrigações a serem adotadas pelos agentes do mercado no interior de suas organizações – daí a importância crescente dos fundamentos de governança corporativa –, para que o mercado e muitos outros valores não econômicos sejam preservados. No fundo, é aquela velha história: embora os reguladores desconheçam quando e como ocorrerá a próxima grande falha de mercado, devem atuar como se soubessem e, assim, estar preparados para o seu enfrentamento.  

Portanto, quando se diz que compliance é conformidade, sustenta-se, em linhas gerais, que a atuação de um qualquer agente – econômico ou não – deve ser conforme ao Direito e às normas regulatórias, num conjunto de conformidades que é, em verdade, múltiplo: o sistema de compliance pode ser ambiental, financeiro, societário, das relações de trabalho, perante o consumidor e os investidores, nas relações com a Administração Pública, nos contratos internacionais e por aí afora, apenas para referir os mais tradicionais, donde decorre a percepção de que o assunto é complexo e multidisciplinar. O alcance, assim, de determinadas práticas deve passar pela adoção de códigos de ética e de conduta, políticas, treinamento de pessoal, criação de departamentos próprios para cuidar do assunto. As organizações privadas, por conseguinte, participam ativamente da criação normativa que comporta o compliance, fixando regras de comportamento para todas as pessoas que delas dependem, interna ou externamente, ou que com elas se relacionam (stakeholders). A finalidade essencial é, como se vê, a de construir e de difundir em seu seio uma cultura ética, que, porém, não funciona isoladamente. Além de sólidos sistemas de integridade adotados pelas organizações, é necessário que também o Poder Público esteja disposto a enfrentar a corrupção. No Brasil, a edição da Lei federal nº 12.846/13, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, revela o esforço, com sinal positivo, para a ambiência de uma nova era de negócios e de relacionamento do Poder Público com o setor privado, em que a reputação de uma organização passa a ter valor econômico e no qual propina, suborno e congêneres deixam de ser “custo” operacional de negócios para se tornarem infração prevista em lei.

E aqui, portanto, reside a diferença básica em relação aos tradicionais mecanismos de regulação estatal. É que o sistema de compliance, contrariamente à regulática do Poder Público, repousa sobre a ideia de que a eficácia sistemática dos instrumentos de prevenção de irregularidades dá-se ex ante, a partir de uma auto-vigilância – interna, portanto – realizada pelo próprio agente de mercado. É manifesto, assim, o seu caráter prudencial. Não deixa, porém, de ser uma espécie de internalização do Direito da Regulação, uma soft law gestada pelo próprio operador, e a revelar, com isso, que o paradigma da pirâmide restou substituído pelo paradigma da rede, em modelo pluralista, que convive com a existência de uma multiplicidade de “ordenamentos” distintos aplicáveis, em simultâneo, a uma mesma situação jurídica.     

As organizações privadas, portanto, nesse modelo de intervencionismo participado, passam a se assumir como agentes da legalidade e a contribuir para a eficácia da regulação em sentido amplo, não porque se presume que as organizações pratiquem abusos, mas porque são elas as mais aptas a concretizar a finalidade buscada pela norma, que é a de garantir a efetividade a um determinado sistema legal, tais como o combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, a preservação do meio ambiente e o enfrentamento às fraudes e à corrupção na relação com os poderes públicos.  

Tal compreensão, a propósito, decorre de uma ampliação do papel das organizações e da sua interação com a sociedade. Conforme sustentam Emílio Humberto Carazzai Sobrinho e José Roberto Prado de Almeida, uma empresa hoje, para operar, não depende apenas das licenças legais ou regulatórias, mas também do consentimento de um conjunto de partes interessadas que a afeta ou é afetado por ela. Ainda segundo os autores, “(...) considerar cada vez mais as aspirações e a forma pela qual a sociedade absorve e responde aos efeitos da atuação empresarial tornam mais complexa a vida dos agentes de governança” (CARAZZAI SOBRINHO, Emílio Humberto; ALMEIDA, José Roberto Prado de. Os avanços e os desafios da governança corporativa e do compliance no Brasil in. Compliance, Gestão e Cultura Corporativa, Cadernos FGV Projetos, Novembro 2016, ano 11, nº 28, p. 157).

Uma instituição financeira, por exemplo, porque detém informações relevantes acerca de seus clientes, é que se apresenta como o agente mais apropriado para identificar sinais de lavagem de dinheiro. Daí os chamados PLDs (Programas de Lavagem de Dinheiro), de que o KYC (Know Your Customer) é uma ilustração. São mecanismos que, enfim, recaem sobre os estabelecimentos bancários não porque eles sejam cúmplices de quem pratica crimes contra o sistema financeiro ou contra a Administração Pública, mas pela só constatação de que são eles, como visto, os mais apetrechados funcionalmente, por sua adequada pertinência subjetiva, para exigir e acessar cadastros atualizados de seus clientes, manter controles internos para verificar, além da apropriada identificação do usuário, a compatibilidade entre as correspondentes movimentações de recursos, a atividade econômica e a sua capacidade financeira frente ao sistema financeiro nacional, manter registros de operações, comunicar transações ou situações suspeitas ao Banco Central etc. Ou seja, num território em que a informação tende a ser extremamente assimétrica, as instituições financeiras, por gozarem, no particular, de vantagens comparativas em relação ao Poder Público, assumem esse papel acrescido em matéria de repasse de informações.  

O ambiente normativo, portanto, em matéria de compliance mostra-se bastante complexo, a partir de uma cartografia de atos infralegais numerosos, que vão desde as leis em sentido estrito às instruções das autoridades da regulação. Daí que o grande desafio a ser transposto resida em tornar a cultura de compliance visível para as autoridades públicas e por todos aqueles envolvidos nas atividades da organização, sendo, por isso mesmo, um elemento indissociável da necessária governança corporativa num ambiente de concorrência que deve ser livre e fair. Em resumo: num ecossistema que deve ser de contenção de riscos, com mapeamento de armadilhas e vulnerabilidades que certas situações e oportunidades de negócios podem proporcionar, a ninguém é dado ignorar o compliance!

Nota: para os que se interessarem por entender melhor como funciona a falta de compliance no ambiente corporativo e quando os limites do capitalismo não se encontram muito claros, a série documental “Dirty Money” (ou “Na Rota do Dinheiro Sujo”), disponível na plataforma de streaming Netflix (2018), narra, em 6 episódios, histórias modernas e reais de falcatruas milionárias em grandes corporações. Não por acaso, a série é do mesmo diretor de “Enron – Os mais espertos da sala”, que, ao retratar a crise provocada pela gigante energética dos EUA no mercado financeiro norte-americano em 2001, mostra-se, por seus elementos informacionais, igualmente imperdível (documentário este disponível no Youtube).



Por Rafael Arruda (GO)

Veja também