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Dos títulos de utilidade pública ou de como ser feliz gastando menos

ANO 2016 NUM 208
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


11/07/2016 | 6694 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Segundo estudo da Transparência Brasil, acessível em https://goo.gl/9I7pAg, mais de 91% da atividade dos vereadores do Município de São Paulo é irrelevante para a cidade, vez que referentes a assuntos com baixo impacto concreto sobre a vida e a administração da cidade. Na miríade de proposições, prevalecem aquelas que versam sobre homenagens, concessão de medalhas, títulos de “cidadão paulistano”, fixação de datas comemorativas e batismos de logradouros e bens públicos.  

A situação em causa não é diferente em Curitiba e já foi denunciada pela Gazeta do Povo, segundo cujo periódico mais da metade dos projetos de lei apresentados na Câmara Municipal na anterior legislatura referiam-se a temas de baixa relevância para a população. Segundo a reportagem, homenagens, denominações de praças, declarações de utilidade pública e instituições de datas comemorativas representaram 55,9% do total das proposições, em reportagem disponível em http://goo.gl/CfS99D.

Os vereadores em terras belo-horizontinas tampouco ostentam melhor performance. Conforme reportagem veiculada pelo Estado de Minas, 82% dos projetos apresentados na anterior legislatura eram, igualmente, relativos a nomes de bens públicos, títulos de utilidade e datas festivas (http://goo.gl/1x2SkU).

E para não dizer que não falei da realidade doméstica, dia desses, folheando o Diário Oficial do Estado de Goiás, deparo-me com a publicação da Lei estadual nº 19.360, de 23 de junho de 2016. Por meio de tal ato normativo primário, que teve origem em atividade parlamentar, declarou-se de utilidade pública a “Associação dos Moradores e Chacareiros de Taboquinha”, situada no Município goiano de Padre Bernardo, que, nesta ocasião, adoto como referência apenas para ilustrar o assunto a ser aqui abordado nesta Coluna.

Embora se possa reconhecer que apreciáveis sejam as atividades de relevância pública executadas, junto à comunidade local, pela referida pessoa jurídica de direito privado de base associativa, especialmente porque são as entidades sem fins econômicos com maior enraizamento local as que mais genuinamente se prestam tal mister, o fato é que a outorga ou não do título de “utilidade pública” às entidades do Terceiro Setor pouco ou nada contribui para a criação de um ambiente mais republicano no relacionamento do Poder Público junto a tais atores sociais.

Com a edição da Lei federal nº 13.204/15, revogada restou a anciã Lei federal nº 91, de 28 de agosto de 1935, ainda da época do Governo Vargas, e que, no plano federal, disciplinava a outorga do título de “utilidade pública” a pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos. Contudo, Estados e Municípios, em nome de sua autonomia federativa e nos termos de suas legislações de regência, podem, se o caso, continuar a editar leis de tal natureza, que, aliás, sempre padecem de grandes críticas, dada a pouca utilidade para a coletividade. Qual a real e verdadeira relevância em uma lei declarar determinada entidade privada como de utilidade pública? Se 80% do trabalho de Legislativos estaduais e municipais circunscreve-se à edição de leis que conferem nomes a próprios públicos, títulos de “utilidade pública” a entidades e honoríficos a determinados cidadãos, algo, realmente, não vai bem nessa ambiência de poder.

Com relação à outorga dos títulos de utilidade pública, é preciso reconhecer que a sua existência – se é que alguma vez teve algum valor – não mais se justifica, porque tais declarações, a rigor, nada representam, senão uma formalidade no universo burocrático do reino do faz-de-conta. O simples fato de uma determinada entidade privada filantrópica ostentar tal título, sob a perspectiva material, não a torna melhor ou mais apetrechada ou importante relativamente àqueloutra que, eventualmente, não o possui.

Mas por que eliminar os títulos de utilidade pública?

Em primeiro lugar, porque em tal recôncavo prevalecem os mais reprováveis mecanismos de clientelismo e da mais vil e astuta política de balcão. É que para obter a declaração de utilidade pública, é necessário que a entidade, por meio, sobretudo, de seus dirigentes, tenha algum acesso a algum parlamentar que queira ter como sua a autoria de um projeto de lei – estadual ou municipal – dessa natureza. Coisa, enfim, que, como demonstra a experiência, com base no que ordinariamente acontece, só os mais próximos podem ter a prerrogativa de alcançar ou, para os recém-apresentados – os novos amigos –, nada que favores trocados não possam legitimar uma tal iniciativa, segundo a velha e surrada alegoria de que uma mão lava a outra. Aqui se tem a mais escandalosa hipótese de clientelismo, francamente velado e admitido pelo ordenamento, como se de pouca coisa se tratasse. É que não sendo claros, no mais das vezes, os critérios por meio dos quais qualquer entidade interessada possa a vir a obter a tão almejada declaração de utilidade pública, a sua concessão ou não se dá, invariavelmente, na órbita da mais evidente relação de compadrio e cunhadismo.

Mas não é só isso. Afora o fato de uma lei – olha, que relevante! – conferir o título de utilidade pública a uma determinada entidade filantrópica, providência que confere ares de seriedade e importância a um pretenso status institucional, o fato é que nenhum controle prévio, de caráter material, faz o Legislativo para a produção desse resultado. Não são examinadas as atividades de relevante interesse público desempenhadas por aquela pessoa jurídica, não se sabe de sua reputação e credibilidade junto à comunidade em que atua, se prestou ou não contas em eventuais ajustes de parceria celebrados com o Poder Público ou, em sendo prestadas as contas, se foram ou não regularmente aprovadas. Quando muito, tem-se uma análise meramente formal do estatuto da entidade, o que, cabe dizer, nada significa ou garante em termos de segurança jurídica. Conhecidos a fundo, no mais das vezes, são apenas os grupos que, com a obtenção daquele ilusório título, serão acarinhados pelo deputado ou vereador autor da proposta legislativa respectiva.

Ora, se tais títulos de utilidade pública nada, de concreto, representam para o estamento social, por que razão são tão valorizados e cobiçados, a movimentar atores privados e políticos para a sua “conquista”? É que, transversalmente, exigiam as pretéritas leis que tratavam de “convênios” com entidades privadas – tanto ao nível estadual quanto municipal, a apresentação da mencionada declaração de utilidade pública, para o efeito de, assim, virem a perceber verbas públicas.

Embora a figura do “convênio público” com as entidades filantrópicas tenha sido excluída da ordem jurídica nacional, conforme artigos 84 e 84-A da Lei federal nº 13.019/14 – Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, na redação conferida pela Lei nº 13.204/15, restringindo os genéricos ajustes de parceria com as entidades do Terceiro Setor, na atualidade, a 3 instrumentos principais (termo de colaboração, termo de fomento e acordo de cooperação), sem prejuízo de outros instrumentos específicos, como o são os termos de parceria e os contratos de gestão, o fato é que, a despeito disso, ainda subsistem leis de entes subnacionais que, para a celebração de ajustes de parceria com entidades privadas filantrópicas, exigem a declaração de utilidade pública para o gozo de uma determinada posição de vantagem junto à Administração, o que, com efeito, é preciso mudar.

É que além de representar uma exigência burocrática completamente imprópria e inadequada, tendo em vista o processo de sua concessão, sem, em verdade, qualquer mínimo rigor, tal proceder alimenta, num círculo vicioso, a intrincada, quanto criticável, teia das trocas de favores e de apadrinhamento, com todas as perniciosas consequências que daí podem advir. Trocando em miúdos, após eleito, o parlamentar continua em campanha eleitoral, só que agora se servindo da estrutura pública. Patrimonialismo pouco é besteira!

Haverá, portanto, grande avanço institucional se, a todos os lados, tal qual feito pela União, forem abolidas as exigências de declaração de utilidade pública de entidades privadas filantrópicas, que, para a celebração de ajustes de parceria com a Administração, independentemente do tipo que os identifique, não serão mais reclamados. Afinal, qual o real valor a ser tutelado quando se exige de uma entidade o referido título jurídico? Que diferença faz ele no mundo real, no dia a dia da entidade? Que garantia representa para o Poder Público? Indo direto ao ponto, ouso dizer: nada! O fato de, eventualmente, autoridades locais, como o juiz de direito, o promotor de justiça, o delegado de polícia, o prefeito, o juiz de paz, o presidente da câmara municipal e outros congêneres subscreverem documentos que atestem a idoneidade da entidade, em procedimento deveras anacrônico, nada acresce de relevante nesse terreno administrativo. Ademais, é falacioso o argumento de que o título de utilidade pública confere credibilidade à entidade, já que, a despeito do reconhecimento formal, nenhum controle, todos sabem, é realizado pelo Poder Público quanto à manutenção, ou não, da mencionada outorga.

Enfim, o atuar desinteressadamente para servir à coletividade, sem ânimo de lucro, por meio do desempenho de atividades sociais de relevância pública, pode ser alcançado sem que as entidades privadas filantrópicas e o Poder Público tenham de se servir dos títulos de utilidade pública, porque, nesta engrenagem, mais relevantes são os mecanismos públicos de seleção de entidades privadas que com a Administração celebrarão ajustes de parceria, bem como o controle e a fiscalização incidentes sobre as atividades, com base em recursos públicos, executadas por tais parceiros privados do Poder Público. O resto, cumpre assentar, é excesso pernicioso, produtor de externalidades negativas e que, por isso mesmo, merece ser posto de lado!



Por Rafael Arruda (GO)

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