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Desafios para a regulação do Netflix: os novos quadrantes da assimetria regulatória

ANO 2016 NUM 237
Rafael Véras (RJ)
Professor da FGV Direito Rio. Coordenador dos Módulos de Concessões e de Infraestrutura da Pós-Graduação da FGV Direito Rio. Mestre em Direito da Regulação pela FGV. Pós-Graduado em Direito do Estado e da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-RJ.


18/08/2016 | 6008 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

O Netflix foi criado em 1997, nos Estados Unidos, como uma empresa que prestava um serviço de aluguel de DVDs, para o que se utilizava do serviço postal. À época, o seu usuário pagava, tanto pela locação do produto, quanto pelo serviço postal. O referido modelo de negócio evoluiu para o pagamento de uma única assinatura mensal, que garantia a locação ilimitada dos títulos em seu acervo. Nos idos de 2007, com o desenvolvimento da rede mundial de computadores, o Netflix passou a disponibilizar todo o seu conteúdo, por meio de VOD (Video On Demand), em qualquer plataforma com acesso à internet. Nada obstante, a sua consolidação no mercado de disponibilização de conteúdo só veio a ocorrer entre os anos de 2008 e 2010, quando ele celebrou parcerias com grandes empresas produtoras de conteúdo, dentre as quais a Starz Entertainment, a Paramount Pictures, a Lions Gate Entertainment e a Metro-Goldwyn-Mayer, ampliando, consideravelmente, o número de títulos que oferecia a seus clientes.

Em um breve resumo, o modelo de negócio do Netflix consiste no oferecimento, via online streaming, de conteúdos audiovisuais on demand, como filmes, séries e documentários, os quais podem ser assistidos, por meio de seu site, ou em diversas plataformas, como smartphones, tablets, computadores e televisões. O serviço por ele prestado é remunerado por um assinante, que pode optar pelo momento mais adequado para consumir determinado produto audiovisual, independentemente de grades de programação, desde que tenha conexão à internet. Esta disponibilização de conteúdo ilimitado aliada ao aumento de capacidade da internet banda larga permitiram que o Netflix conquistasse cada vez mais usuários pelo mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, como dá conta recente estudo da Forrester Research, citado pelo Wall Street Journal, 18% da população norte-americana deixou de contratar os serviços prestados pelas empresas de TV a cabo para contratar os serviços prestados por essa empresa.

No Brasil, a entrada do Netflix no mercado de oferecimento de conteúdo audiovisual também vem gerando acirradas disputadas concorrenciais. Essas disputas tem lugar, na medida em que o serviço prestado pelo referido entrante diferencia-se da lógica tradicional de oferecimento de conteúdo pelas concessionarias dos serviços de radiodifusão de imagens (TV aberta) e pelos prestadores dos Serviços de Acesso Condicionado – SeAC (TV fechada), especialmente porque não depende de um horário para atingir determinado público. Pelo contrário, o conteúdo por ele oferecido pode ser consumido, a qualquer hora do dia ou da noite. Afora isso, seus produtos são oferecidos de uma só vez aos seus clientes, e não da maneira tradicional de exibição, de um episódio por semana, por exemplo.  

Nesse cenário, os agentes econômicos submetidos aos títulos habilitantes da concessão de radiodifusão e da autorização para a exploração do SeAC vêm questionando a legalidade dos serviços prestados pelo Netflix, ao argumento de que ele não se submete aos mesmos influxos regulatórios que lhes são incidentes. Mais tecnicamente, alega-se que ele não se submete à Lei nº 4.117/1962 (Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT), eis que não se trata de um serviço de radiodifusão, nem à Lei nº 12.485/2011 (Novo Marco Regulatório dos Serviços de Acesso Condicionado), porque não se trata propriamente de um canal de programação fechado ofertado aos consumidores. De acordo com os referidos prestadores, essa assimetria regulatória estaria resultando num modelo “matador”, que vem ameaçando a sobrevivência de suas atividades, na qualidade de agentes submetidos à regulação estatal. De outro bordo, as empresas de telecomunicações, detentoras autorizações para exploração do Serviço de Comunicação Multimídia, já demostraram a intenção de limitar a utilização da internet por seus usuários, tendo em conta um possível stress causado às redes por elas administradas, em razão de os serviços oferecidos via online streaming (a exemplo do Netflix) estarem resultando numa excessiva transferência de dados entre usuários da internet, sem qualquer compensação paga por esse desgaste.   

Malgrado de diferentes matizes, a resolução das referidas disputas passará pelo estabelecimento de uma adequada assimetria regulatória entre os referidos agentes, que considere as peculiaridades dos regimes jurídicos já estabelecidos, os impactos que tais atividades provocam entre si e as diretrizes trazidas pelo Novo Marco Civil da Internet.

Pois bem. Quanto ao questionamento das empresas das TVs aberta e fechada, tenho para mim que concorrência entre prestadores com regimes jurídicos assimétricos não é, per se, violadora do ordenamento jurídico pátrio, posto que gera externalidades positivas para o consumidor. Isto porque, como é de conhecimento convencional, a ausência de concorrência faz com que o monopolista tenha incentivos para se comportar de forma ineficiente, pois que se encontra em uma situação na qual pode aumentar o custo unitário de seu produto e reduzir a sua oferta, de sorte a aferir um lucro por unidade produzida maior do que seria possível em uma realidade competitiva – situação em que se vislumbra uma perda de bem-estar total para a sociedade (“dead weight loss”).  

Demais disso, não se pode olvidar que os próprios regimes jurídicos desses agentes que exploram as TVs aberta e fechada não são predicadores de uma exploração monopólica. O serviço de radiodifusão, malgrado a sua estatura constitucional (art. 233 da CRFB) e a sua essencialidade, não é explorado em regime de exclusividade, consoante o disposto no artigo 35 do Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT, cuja redação é a seguinte: “as concessões e autorizações não têm caráter de exclusividade, e se restringem, quando envolvem a utilização de radiofrequência, ao respectivo uso sem limitação do direito, que assiste à União, de executar, diretamente, serviço idêntico” (grifamos). Do mesmo modo, os Serviços de Acesso Condicionado – SeAC comportam um número ilimitado de prestadores, salvo em razão de restrições técnicas que justifiquem restrições competitivas. É o que dispõe o artigo 11 da Resolução nº 581/2012 da ANATEL, que aprova o Regulamento do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), quando preleciona que “não haverá limite ao número de autorizações para prestação do serviço, salvo em caso de impossibilidade técnica ou, excepcionalmente, quando o excesso de competidores puder comprometer a prestação do serviço, nos termos da legislação”.

Porém, não se cogitaria de admitir que o Netflix viesse a comprometer a viabilidade do serviço de radiodifusão, na qualidade de um serviço público essencialmente universal e gratuito, e a levar à extinção de um prestador do SeAC. E a razão é simples: a concorrência não pode servir para viabilizar o exercício da atividade de novos entrantes no mercado em prejuízo da existência de seus concorrentes, máxime porque, na ponta, isso pode vir a transformar esse próprio entrante num futuro monopolista.

Nesse quadrante, entendo que questão jurídica envolvida diz com o estabelecimento de uma adequada “calibragem” da regulação entre as referidas atividades. Ou, mais tecnicamente, na escolha da variável a ser regulada (preço, quantidade, qualidade, entrada e informação) pela instituição de uma adequada assimetria regulatória entre o Netflix, os concessionários de radiodifusão e os autorizatários do SeAC.

Especificamente para essa hipótese, tenho para mim que a variável “qualidade” terá de ser equacionada pelo regulador, por ocasião da instituição de uma assimetria regulatória entre as atividades exercidas por esses três prestadores, de tal modo que elas não sejam excludentes entre si. Isto porque os concessionários de radiodifusão e os autorizatários do SeAC se submetem a forte influxo regulatório, sobretudo sob a vertente qualitativa. Cite-se, como exemplos, a responsabilidade das concessionárias de radiodifusão quanto aos conteúdos difundidos para o público (art. 4º, inciso IV, do Decreto nº 5.371/2005) e as obrigações de veiculação de conteúdo brasileiro imposta às empresas exploradoras do SeAC (artigo 16 da 12.485/2011). Nessa perspectiva, das duas, uma: ou a instituição de uma assimetria regulatória entre as referidas atividades imporá parâmetros qualitativos ao Netflix, ou as obrigações impostas aos concessionários de radiodifusão e aos autorizatários do SeAC deverão ser atenuadas, a fim de que tais atividades não sejam predatórias entre si.

Quanto ao questionamento das empresas de telecomunicações, exploradoras do Serviço de Comunicação Multimídia (internet), tenho para mim que a instituição de uma adequada assimetria regulatória entre elas e o Netflix predicará a observância do princípio da neutralidade da rede, bem como a avaliação e a monetização dos impactos (caso comprovados) que essa nova tecnologia (transmissão de conteúdo online streaming) vem causando para o adequado uso das redes.  

Explico. Em poucas palavras, o princípio da neutralidade da rede interdita que o seu uso seja utilizado para fins discriminatórios, salvo por questões de ordem técnica. Nos Estados Unidos, por exemplo, o incremento dos vídeos em streaming oferecidos pelo Netflix passou a demandar acima da capacidade máxima da rede de infraestrutura da internet norte-americana. Por conta disso, em 2013, instaurou-se um litígio entre o Netflix e o Comcast, um dos maiores provedores de internet daquele país. A referida contenda teve lugar porque o Netflix alegava que o Comcast teria reduzido a velocidade da internet, quando os seus clientes estavam acessado os seus vídeos. Em 2014, as partes chegaram a um acordo, por meio do qual o Netflix ficou obrigado a pagar uma taxa adicional para receber diretamente os serviços da Comcast. Nada obstante, tal case estadunidense não serviu para disciplinar todas as situações congêneres daquele país, na medida em que: (i) os termos deste acordo não possuíam força normativa; e (ii) a Open Internet Order, norma expedida pelo Federal Communications Comission, que garantia a neutralidade da rede, restou anulada pela Corte do Distrito de Columbia.

No Brasil, a situação se mostra um tanto distinta. A Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) estabelece, entre os seus principais princípios, “a preservação e garantia da neutralidade da rede”. O referido princípio encontra-se previsto, ainda, no artigo 9º do referido diploma, o qual dispõe que “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. Como se pode perceber, o referido dispositivo interdita que provedores de serviços de conexão à internet discriminem o tráfego de vídeo online de outras empresas, ressalvadas as hipóteses de: (i) não atendimento a requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e (ii) priorização de serviços de emergência (§1º). Contudo, tais hipóteses de “degradação de tráfego são medidas excepcionais, na medida em que somente poderão decorrer de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações ou da priorização de serviços de emergência” (artigo 4º do Decreto nº 8.771/2016).

Diferentemente dos EUA, no Brasil, há dispositivos legais que consagram, expressamente, o princípio da neutralidade da rede. Razão pela qual entendo que a instituição de eventual assimetria regulatória entre o Netflix e as empresas de Telecom, exploradoras do Serviço de Comunicação Multimídia (internet), deverá impor que estas observem o princípio da neutralidade da rede, impedindo a redução do tráfego de dados daquele, ou limitação do consumo de dados por seus usuários, salvo, excepcionalmente, por questões técnicas devidamente comprovadas. Do contrário, os consumidores serão os maiores prejudicados, pois que terão de suportar, além da diminuição da velocidade da sua internet, a perda do conteúdo oferecido pelo Netflix.

De outro bordo, caso fique comprovado que o Netflix vem causando prejuízos às empresas de telecomunicações, exploradoras do Serviço de Comunicação Multimídia (internet), pela sobrecarga das redes por elas exploradas, nada impediria que a assimetria regulatória, a ser instituída entre tais prestadores, venha a prever uma indenização compensatória para fazer frente a tal desgaste. Não se trata de expediente desconhecido da regulação em Telecom, a qual vem interditando que novos entrantes causem prejuízos aos agentes estabelecidos. Cite-se, por exemplo, a previsão do Edital de licitação das frequências 700 MHz (4G) da ANATEL, o qual estabeleceu que a prestadora do serviço móvel pessoal que viesse a operar nesta frequência indenizasse a redistribuição de canais de TV por assinatura que lá já estivessem estabelecidos. Naquela oportunidade, coube ao regulador disciplinar os efeitos que um novo entrante produziria num mercado anteriormente estabelecido, o que foi levado a efeito pela Resolução ANATEL nº 640/2014.

Como se pode perceber dos conflitos narrados nesse breve ensaio, decorrentes do embate entre entrantes que se utilizam de novas tecnologias e os detentores de títulos habilitantes (delegatórios e autorizativos), novos desafios se apresentam para o Direito Administrativo. Conceitos outrora delineados pela doutrina juspublicista passam a ser confrontados face à realidade que lhe é subjacente, entre os quais destaco, neste particular, o de assimetria regulatória. De fato, se, nos idos da década de noventa, o advento de novas tecnologias resultou na desconstituição de monopólios naturais, por meio da instituição normativa de degradações regulatórias caudatárias de uma lógica por meio da qual se estabeleceram regimes concorrenciais assimétricos entre diversos prestadores (v.g. setores de telefonia, energia elétrica, portuário), agora, uma vez mais, o advento de novas tecnologias traz outros desafios para esse conceito. Ou, melhor dizendo, lhe confere uma nova abrangência. Assim é que, para além do estabelecimento de “doses” concorrenciais entre prestadores, o conceito de assimetria regulatória passará a abarcar outros vieses, a exemplo da escolha da adequada variável a ser regulada, do equacionamento de obrigações regulatórias, da quantificação dos prejuízos provocados por novos entrantes em mercados fortemente regulados, da adequada aplicação do princípio da neutralidade da rede, dentre tantos outros que sequer se conseguiria por ora vislumbrar.

Essas ampliações, revisões ou superações de conceitos doutrinários decorrentes da realidade fática não representam o fim do Direito Administrativo, nem, tampouco, o seu ocaso. Representam, isto sim, me valendo de uma expressão de Caio Tácito, um “retorno do pêndulo”. É que, se, desde a sua origem, o Direito Administrativo posto foi influenciado por ensinamentos doutrinários (v.g. a influência da escola dos Serviços Públicos Francesa na construção de um regime jurídico-administrativo dotado de prerrogativas publicísticas), na atualidade, o direito posto e a doutrina é que terão de se adaptar à realidade que lhe é subjacente. Cenas para os próximos capítulos.



Por Rafael Véras (RJ)

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