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O que a Análise Econômica do Direito tem a ver com os contratos administrativos?

ANO 2016 NUM 294
Rafael Véras (RJ)
Professor da FGV Direito Rio. Coordenador dos Módulos de Concessões e de Infraestrutura da Pós-Graduação da FGV Direito Rio. Mestre em Direito da Regulação pela FGV. Pós-Graduado em Direito do Estado e da Regulação pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-RJ.


07/11/2016 | 7119 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

O direito e a economia não são ciências antípodas. É que não se cogita mais que as normas jurídicas sejam consideradas como um fator exógeno ao sistema econômico. Muito ao contrário, cada vez mais, os agentes econômicos passam a comparar os custos e benefícios, antes de tomar uma decisão – seja ela econômica, social ou institucional. Para além de fazer justiça, as normas jurídicas passam a ter o propósito de otimizar (sob um critério de utilidade) a repartição de recursos escassos, o que legitima a sua interpretação à luz de critérios consequencialistas atrelados à eficiência e à racionalidade. Em brevíssimas palavras, considerando o escopo do presente trabalho, é nesses quadrantes que ganha importância o estudo da Análise Econômica do Direito, disciplina que tem em Richard Posner, Guido Calabresi e Ronald Coase alguns dos seus principais expoentes. O tema também não passou despercebido pela Doutrina Brasileira, que já conta robustos trabalhos a seu propósito sob a autoria de autores da envergadura de Luciano Benetti Tim e de Antônio José Maristrello Porto.

Nada obstante, no Direito Administrativo pátrio, poucos são os autores que vêm interpretando os seus institutos sob a lente desta disciplina – com ressalvas dignas de notas a trabalhos de Rafael Carvalho Rezende de Oliveira e de Alexandre Santos de Aragão. E isso tem uma razão de ser. É que o Direito Administrativo Brasileiro foi concebido a partir de entendimentos doutrinários, e não para ser eficiente. Sempre que a realidade ou o ordenamento jurídico impõe uma revisão de conceitos consolidados pela doutrina jus-administrativa ela se põe contrária, condenando o novo ao ilícito. Não se cogita de perguntar-se: será que os institutos da desapropriação, dos contratos administrativos (e seus contratos congêneres), do poder de polícia são eficientes? O raciocínio de quem atua com o Direito Administrativo, geralmente, visa a responder o seguinte questionamento: diante de uma situação concreta, como eu faço para resolvê-la, de acordo com as “caixinhas” que a doutrina confeccionou para este instituto?

Ocorre que na realidade, nem sempre o problema da vida cabe, à perfeição, nesta “caixinha”. Então, o que fazer? Forcejar o seu cabimento, de todas as formas possíveis. Nem que, para isso, eu tenha de arrebentar a “caixinha”. Mas a situação concreta terá que lá caber. Afinal, o que não parece ser admissível é usar uma caixa de outro tamanho, ou buscar uma que seja mais aderente à problemática concreta.

O regime jurídico dos contratos administrativos é um bom exemplo dessa situação. Porém, essa “caixinha” continua sendo usada por todas as entidades contratantes brasileiras, ainda que ela não seja mais eficiente para dar conta da realidade que lhe é subjacente. Nesse quadrante, o presente ensaio tem o propósito de questionar a utilidade e a inadequação desta “caixinha” à luz de um critério econômico de eficiência, para o que me valerei do conceito de “custos de transação”, o qual é estruturante à disciplinada da Análise Econômica do Direito.  

Desde a edição do Decreto-lei n° 2.300/1986 (diploma normativo que precedeu à Lei n° 8.666/1993), o ordenamento jurídico brasileiro encampou o entendimento doutrinário no sentido de que “contrato administrativo” seria toda avença de que a Administração Pública é parte, a qual se submete a um regime jurídico exorbitante ao Direito Privado. Mais especificamente, de que se trataria de negócio jurídico disciplinado por um regime jurídico assimétrico (verticalizado) e único (que não comportaria modulações). Esse entendimento doutrinário restou consagrado no artigo 2°, da Lei n° 8.666/1993 (LGL), dispositivo que impõe a obrigatoriedade da aplicação de um regime único a “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”. 

Nada obstante, o referido entendimento parte de uma equivocada (e simplificadora) transposição da doutrina francesa construída no início do século XX a propósito do regime jurídico-administrativo. Trata-se de concepção atrelada a uma das vertentes de pensamento da Escola de Bordeaux, Gaston Jezé à frente, de acordo com o qual os contratos que veiculassem a prestação de um serviço público teriam de se submeter a um regime jurídico-administrativo único, o qual é predicador da incidência de prerrogativas publicísticas. 

Atualmente, essa concepção vem sendo relativizada. O entendimento (ideológico) segundo o qual as prerrogativas publicísticas são inerentes a contratos celebrados por entidades estatais (v.g. alteração unilateral, extinção unilateral, aplicação de sanções administrativas), independentemente do seu objeto, vem sendo questionado por autores mais descortinados, como Floriano de Azevedo Marques Neto, Fernando Dias Menezes de Almeida e Diogo de Figueiredo Moreira Neto. De acordo com os referidos autores, tal entendimento (a “caixinha”) não se mostra mais adequado para dar conta da realidade subjacente às contratações públicas, seja porque nem todos os contratos administrativos veiculam a prestação de serviços públicos (o que impede a transposição da concepção Francesa tout court), seja porque relações verticalizadas entre o Estado e os administrados não se coadunam com Estados Democráticos de Direitos, seja, ainda, porque o poder público, no exercício das suas mais complexas funções, se vale de diversos módulos contratuais (o que desafia a concepção de um regime jurídico único).

Pois bem. O conceito de “custos de transação”, oriundo da Análise Econômica do Direito, também põe em xeque a manutenção de um regime jurídico único para os contratos administrativo, sob o prisma da eficiência econômica. Isto porque este regime gera incentivos inadequados para as partes contratantes (como bem exposto na tese de Leonardo Coelho Ribeiro a propósito da instrumentalidade do Direito Administrativo, enquanto caixa de ferramentas). Senão vejamos.  

De acordo com Oliver Eaton Williamson, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2009, os custos de transação têm lugar porque não se adquire bens e serviços somente pelos seus custos de produção, na medida em que, em toda relação contratual, estarão agregados os custos necessários à formação do ajuste e à sua manutenção. Ainda de acordo com o referido autor, no âmbito de uma relação contratual, os agentes incorreriam em custos na fase pré-contratual (ex ante) e, posteriormente, à sua celebração (ex post). Na fase pré-contratual, os principais custos de transação tem lugar: na redação do contrato, na definição do seu objeto, nas negociações para a obtenção das melhores condições para a contratação. Após a sua formação, os custos incidentes sobre tais avenças são os relacionados à fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais, à solução dos conflitos e à repactuação das condições inicialmente acordadas.

O regime jurídico dos contratos administrativos, tal como delineado pela Lei nº 8.666/1993, é um exemplo (quase que de manual) de como se celebrar um contrato com elevados custos de transação nas fases pré e pós contratual. Os elevados custos de transação começam na definição do objeto que será contratado. A Administração Pública – com razão – não detém expertise na especificação de objetos complexos. E o que é pior, nos quadrantes do regime da LGL, não pode se valer do auxílio da iniciativa privada para esse fim (pela instauração de uma PMI, por exemplo). Demais disso, se o poder público, ainda de acordo esse regime jurídico-administrativo, tem a prerrogativa de alterar tais contratos, unilateralmente, desde que seja a bem do interesse público (art. 65, § 2º, da LGL), qual o incentivo que ele tem para planejar, com zelo, as suas contratações? Nenhum. Se ele pode alterá-lo, a qualquer momento, albergado pelo “interesse público”, expressão dúctil, aberta e suscetível de ser preenchida pelo alvedrio do administrador, não há porque levar a sério a fase interna de licitações.     

Resultado: contratações púbicas sem qualquer planejamento, em violação à própria sistemática prevista na LGL (inciso IX do art. 6º da Lei nº 8.666/1993). Mas e se ele contratar um particular para a elaboração do projeto básico? Não terá melhor sorte. Uma vez que o contratado não executará o objeto contratual, não terá incentivos para elaborar um adequado projeto básico (o advento da Contratação Integrada, pelo RDC, bem retrata essa lógica). Ou seja, custos e mais custos de transação na fase pré-contratual...

Porém, infelizmente, não é só. O regime exorbitante ao direito privado também incrementa os custos de transação na fase pré-contratual, por institucionalizar o “calote” do Poder Público. É que as prerrogativas publicísticas fazem com que o licitante “precifique” o risco de contratar com o Poder Público. E não poderia ser diferente. A previsão do art. 78, inciso XV, da LGL, de acordo com a qual o Poder Público está autorizado a não cumprir com suas obrigações por 90 dias, faz com que o licitante provisione o custo por esse inadimplemento já autorizado pelo ordenamento jurídico. Não só esse, mas, também, os custos judicias para pleitear a rescisão deste contrato, em juízo. Afinal, ainda que tal exigência seja, em tese, despicienda (vide o excelente trabalho de Bernardo Strobel Guimarães publicado nesta coluna), qual empresa teria coragem de alegar exceptio non adimpleti contractus e suspender os serviços prestados para o Poder Público, considerando a possibilidade de ser sancionada com uma penalidade de declaração de inidoneidade? Resultado: o Poder Público paga mais caro do que qualquer empresa do setor privado na aquisição de bens e de serviços.

Durante a execução dos contratos administrativos, também sobejam custos de transação.

A primeira hipótese em que isso se dá tem lugar na sua “fiscalização”. Isto porque o contratado não tem incentivos para bem executar o contrato administrativo. A uma, porque ele não será contratado novamente por ter sido mais eficiente. Não há, de acordo com o regime delineado na LGL, a possibilidade de celebração de uma nova avença, sem a realização de procedimento licitatório, com o mesmo contratado, em razão da sua escorreita execução do objeto contratual. Isso contraria a sistemática econômica segundo a qual a frequência das transações tende a fomentar a cooperação entre os contratados, o que importa em contratações mais exitosas para as partes. A duas, porque a remuneração do contratado é realizada, pari passu, à execução do objeto contratual, independente do seu desempenho (o que já foi alterado nos regimes de contratação das PPPs e do RDC). Resultado: Administração Pública despende vultosos recursos para ter um robusto aparato fiscalizatório de seus contratos.

A segunda hipótese em que os custos de transação são elevados é na “resolução de conflitos”. Aqui, o desperdício de recursos públicos chega a ser abusivo. Esses custos tem origem, por exemplo, em quatro situações.

A primeira delas está relacionada ao fato de o particular não participar da formação do contrato administrativo. De fato, os licitantes, tão somente, aderem aos termos pré-fixados pela entidade contratante. Esse modelo desconsidera a lógica econômica de acordo com a qual a participação dos agentes econômicos na formação de decisões tende a reduzir o seu inconformismo ex post.

A segunda tem de ver com o do fato de ser exigido que os licitantes apresentem seus custos para a execução do contrato (para o que a entidade contratante se vale de sistema de preços oficiais, SICRO, SINAPI, entre outros), sem qualquer preocupação com a sua adequada gestão. Nesse quadrante, avultam pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro, cada vez que os preços dos insumos utilizados para a execução do contrato aumentam. Hipótese em que se incrementam, ainda mais, os custos de transação na execução do contrato, sobretudo pela prática do conhecido “jogo de planilhas”.  

A terceira se relaciona com as duas primeiras. Considerando que o particular apenas adere aos termos do contrato administrativo, nos pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro, elevam-se os custos de transação discutindo-se se um evento se configura como “álea ordinária”, de responsabilidade do contratado, ou, como “álea extraordinária”, de responsabilidade da Administração Pública (em atendimento ao disposto no art. 65, II, d, da LGL). E isso porque esse regime jurídico-administrativo fixou uma repartição de riscos, ex lege, segundo a qual os riscos decorrentes da “álea extraordinária” serão sempre suportados pelo Poder Público. De acordo com esta sistemática, não se possibilita o estabelecimento de uma matriz de risco contratual, por meio da qual poderiam ser estabelecidos, ex ante, a quem caberá suportar os efeitos econômicos de fatos supervenientes à celebração do contrato, nos quadrantes das capacidades dos agentes absorverem esses riscos a um custo menor.   

A quarta tem lugar por que, a despeito de a Lei n° 13.129/2015 ter encerrado a polêmica a propósito da arbitrabilidade subjetiva no que tange à resolução de controvérsias envolvam o Poder Público, na prática, não se vê a inserção de cláusulas compromissórias em contratos administrativos regidos pela LGL. Fato que tem origem na cultura de que a Administração Pública tem de ter uma sobranceira superioridade em face dos particulares, o que a interdita de com eles estabelecer relações de cooperação (como muito bem retratado por Gustavo da Rocha Schmidt, em trabalho de fôlego sobre essa temática), resultando em que a resolução de conflitos e a repactuação desses ajustes desaguem no Poder Judiciário.

Aí, os “custos de transação” aumentam. E muito. Abre-se mão de um procedimento de resolução de controvérsia mais célere (já que, de acordo com a Lei de Arbitragem, quando não houver estipulação entre as partes, os árbitros deverão proferir o laudo arbitral no prazo máximo de seis meses). Mais flexível, considerando que as partes podem eleger procedimentos, bem como estabelecer se a arbitragem será de direito, ou por equidade. Julgado por experts, pois a escolha do árbitro, geralmente, recai sobre profissionais com aprofundado conhecimento no campo específico de direito em controvérsia, ou em outras áreas relacionadas ao litígio, como economia, administração, engenharia etc. E mais confiável, porquanto, à medida que as próprias partes escolhem quem resolverá o conflito, as decisões proferidas tendem a ser mais acertadas e menos contestáveis. Todas essas características dos procedimentos arbitrais importariam numa significativa redução de custos de transação, ex post, para os contratos administrativos.

Essas são algumas situações da realidade que indicam que a “caixinha” do regime jurídico-administrativo delineado na LGL, à luz da Análise Econômica do Direito, não mais comporta as contratações de que a Administração Pública é parte. Mais que isso, indicam que forcejar a sua utilização vem importando no desperdício de recursos públicos, seja porque a elevação de custos de uma contratação pública fomenta a prática de atos de corrupção para a sua redução, seja porque esses valores poderiam estar sendo investidos em saúde, educação, segurança, dentre outras rubricas orçamentárias mais caras à sociedade. Mas, não. Vêm sendo utilizados para a manutenção de um entendimento doutrinário que tem origem no início do século XX, o qual, se é que deveria ter sido transposto da França para o Brasil como foi, resulta em contratações publicas ineficientes à luz do incremento dos “custos de transação” nos contratos públicos. E quem acaba pagando esses custos? Nós.



Por Rafael Véras (RJ)

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