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A autonomia financeira da universidade pública

ANO 2017 NUM 344
Ricardo Lodi Ribeiro (RJ)
Mestre em Direito Tributário pela UCAM. Doutor em Direito e Economia pela UGF. Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT)


28/03/2017 | 8476 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Desde a sua origem medieval, a Universidade já nasceu autônoma em relação ao Estado, à Igreja e ao mercado.  Modernamente essa posição de relativa independência em relação ao aparelho do Estado, bem como à sua não subordinação aos recursos captados no mercado, conferem à Universidade um papel singular no desenvolvimento do ensino, da pesquisa e da extensão, a partir de uma perspectiva pluralista, democrática e emancipatória, em favor dos interesses permanentes da sociedade em suas várias manifestações e matizes.

Como garantia do cumprimento desse papel, a Constituição de 1988 consagrou a autonomia universitária, no seu artigo 207, desdobrando-a em três facetas indissolúveis: (i) didático-científica; (ii) administrativa; e (iii) de gestão financeira e patrimonial.   Deste modo, não se pode conceber na existência de uma sem as duas outras.  A primeira delas tem o conteúdo material, sendo o objetivo almejado pelo constituinte a fim de garantir o atingimento das missões constitucionais da Universidade.  As duas últimas constituem salvaguardas da primeira, uma vez que, de acordo com o dispositivo constitucional, a autonomia didático-científica não pode ser alcançada sem a autonomia administrativa e a autonomia de gestão financeira e patrimonial.  A penúltima destas assegura que as providências administrativas necessárias à autonomia didático-pedagógica sejam adotadas sem as amarras do aparelho burocrático central do Estado.  Esta última garante que os recursos destinados pela lei de orçamento à educação superior serão empregados nessas finalidades constitucionais, e sejam responsavelmente geridos pela Universidade.

Nesse contexto constitucional, a autonomia financeira e patrimonial encontra como um dos seus núcleos essenciais a competência para a elaboração da proposta orçamentária encaminhada ao Poder Legislativo, a garantia de recebimento dos recursos previstos na lei de orçamento, e a execução deste, a partir da gestão financeira desses valores.  Evidentemente que a autonomia orçamentária da Universidade, longe de se traduzir em afastamento dos deveres de submissão a todos os princípios que regem a administração fiscal responsável, confere à entidade, em momentos de escassez de recursos, a decisão sobre a eleição das suas prioridades.

É claro que essa moldura delineada pela Constituição Federal não coíbe que experimentalismos democráticos dos entes periféricos da Federação procurem dar maior efetividade à autonomia universitária, conferindo-lhe mecanismos que procurem assegurar a execução financeira de uma relação autônoma entre a Universidade estadual e o Estado.  Nesse sentido, por exemplo, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro assegurou dois mecanismos no §1º do artigo 309 (originalmente art. 306):   (i) a destinação de 6% da receita tributária líquida para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ);  (ii) a transferência dessas  dotações orçamentárias por meio dos duodécimos mensais.  Para regulamentar tal dispositivo da Constituição estadual foi promulgada a Lei nº 1.729/90, que, em seu art.1º, estabeleceu que dotações atribuídas à UERJ pelo artigo 309, §1º da Constituição Estadual deveriam ser transferidas mensalmente até o último dia de cada mês do exercício, observado os duodécimos da receita tributária de cada ano.

Porém, os referidos dispositivos, tanto o constitucional quanto o legal, foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 4.102/RJ.  Mas dos dois mecanismos que previstos pela legislação fluminense, um foi considerado materialmente incompatível com a Constituição Federal por violar o princípio da não afetação dos impostos, estabelecido pelo artigo 167, IV, da Constituição Federal, segundo o qual estes não podem ter as suas receitas vinculadas a despesas, órgãos ou fundos, salvo exceções previstas expressamente pelo próprio texto constitucional.  Ainda que se possa discutir a correção de tal decisão, uma vez que uma das exceções constitucionais é a afetação pelos Estados de 18% das receitas dos impostos para a educação, e não nos parece ser violador da Constituição que o ente federativo reserve um percentual deste ao ensino superior, é forçoso reconhecer que tal fundamento utilizado pela Corte Suprema não se presta para afastar o segundo mecanismo, o relativo às transferências dos duodécimos orçamentários mensais, tendo o seu comando normativo sido declarado inconstitucional por arrastamento, inclusive no que se refere à legislação ordinária, cuja sobrevivência tornou-se  inviável dado o seu expresso fundamento constitucional, e a vinculação que a solução normativa fluminense estabeleceu entre os  dois mecanismos.

De fato, não se pode inferir da regra constitucional da não afetação dos impostos qualquer vedação a que os recursos que o legislador preveja no orçamento do Estado sejam transferidos por meio de mecanismo que seja adequado à autonomia financeira das Universidades.  Muito ao contrário. A Constituição Federal garante, como vimos, a autonomia financeira e patrimonial das Universidades Públicas e a transferência das dotações orçamentárias por meio dos duodécimos mensais é o instrumento mais adequado a dar cumprimento a esse ditame. Aliás, não se conhece outro mecanismo no direito positivo brasileiro para que se dê execução à aludida determinação constitucional.

Senão vejamos.  A Constituição confere autonomia financeira a cinco entidades ou órgãos públicos:

  1. Poder Legislativo – art. 51, IV (Câmara dos Deputados) e art. 52, IV (Senado Federal);
  2. Poder Judiciário – artigo 99, CF;
  3. Ministério Público – artigo 127, §§ 2º e 3º, CF;
  4. Defensoria Pública – artigo 134, §2º;
  5. Universidade Pública – artigo 207.

Com o exame comparativo da redação dos cinco grupos de dispositivos constitucionais se verifica que, do ponto de vista da literalidade do texto,  são autônomos financeiramente o Poder Judiciário e a Universidade.  O Ministério Público e a Defensoria Pública têm, de acordo com o texto constitucional, assegurados um dos principais aspectos da autonomia financeira, que é a iniciativa da sua proposta orçamentária, nos termos da lei de diretrizes orçamentárias.  À Câmara dos Deputados e ao Senado Federal é conferida a autonomia para disporem sobre suas próprias organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços, e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.

Na redação de todos esses dispositivos constitucionais é encontrada a autonomia administrativa, que está associada à auto-organização do órgão ou entidade, com a criação de regras que disciplinem o seu regular funcionamento. Porém, no que se refere aos aspectos financeiros dessa autonomia, por vezes a Constituição faz referência ao gênero autonomia financeira, como no caso do Poder Judiciário e da Universidade Pública.  Em outras faz menção apenas um ou mais dos elementos constitutivos dessa autonomia financeira.  No caso do Ministério Público e da Defensoria Pública, a Constituição garante a iniciativa da elaboração da proposta orçamentária.  No caso da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, assegura a iniciativa da lei para a fixação da remuneração dos seus agentes, bem como a criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços.

Deve-se destacar que a autonomia orçamentária é uma das manifestações, talvez a mais importante, da autonomia financeira.  É determinação constitucional que vai além da mera iniciativa de propor seu próprio orçamento, englobando também todas as etapas da sua execução do orçamento, incluindo a efetiva realização despesa, com o empenho, a liquidação e o pagamento.  No caso do Poder Judiciário, a autonomia orçamentária é garantida pela própria previsão constitucional da autonomia financeira, não necessitando de dispositivo constitucional autônomo.   Porém, no caso da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Ministério Público e da Defensoria Pública, instituições em que a Constituição só previu alguns dos elementos da autonomia orçamentária, como a iniciativa da proposta, a efetividade da gestão financeira autônoma depende de outros mecanismos constitucionais.

Porém, qualquer que seja a sua configuração, não há que se cogitar em autonomia financeira sem o repasse regular de recursos orçamentários para o ente autônomo. Nesse sentido, a Constituição confere efetividade à autonomia financeira, e, como uma das suas principais manifestações, a autonomia orçamentária, por meio de um mecanismo contido no artigo 168: a transferência dos montantes referentes às rubricas orçamentárias destinadas às entidades financeiramente autônomas por meio dos duodécimos orçamentários, em dispositivo que inclui os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Assim, o instrumento que o direito positivo concebeu para conferir efetividade à autonomia financeira foi a transferência dos recursos previstos no orçamento por meio dos duodécimos mensais.  Com tal previsão, essas instituições podem fazer frente aos seus relevantes misteres constitucionais, independentemente da discricionariedade exercida pelo Poder Executivo na execução do orçamento.     Deste modo, em nosso direito positivo, a autonomia orçamentária e a transferência dos duodécimos mensais orçamentários são duas realidades indissolúveis.  É claro que o legislador poderia prever outros mecanismos diversos para efetivar a autonomia orçamentária, mas na ausência de uma sistemática específica para cada situação, a aplicação analógica dos duodécimos é remédio bem mais adequado do que a inexistência de efetividade da autonomia conferida pela Constituição.

Aliás, conforme já se viu acima, no caso da UERJ, levado à apreciação judicial do STF, o instrumento do pagamento dos duodécimos mensais foi previsto pelo próprio legislador fluminense, seja na Constituição estadual, seja na legislação ordinária. Esse foi a solução identificada como correta pelo legislador local para garantir a autonomia orçamentária.   As razões que levaram o STF a declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos estaduais, associadas ao princípio da não afetação dos impostos, não tem o condão de macular a solução adotada pelo Estado do Rio de Janeiro para assegurar a autonomia universitária.  Até porque, a solução adotada pelo legislador fluminense em nada discrepa das que a própria Constituição Federal conferiu aos outros órgãos financeiramente autônomos.

Aliás, estando a autonomia financeira umbilicalmente ligada ao pagamento dos duodécimos mensais, a ponto de entidades como o Ministério Público e a Defensoria serem dotadas da primeira com base na previsão constitucional que lhes garante a segunda, resta evidenciado que as Universidades Públicas têm direito aos duodécimos independentemente do comando do art.168, CF, já que este é elemento integrante da autonomia financeira que lhes é expressamente assegurada pelo art. 207, CF.

Por outro lado, a autonomia financeira não significa que os órgãos e entidades que a detêm estejam imunes às crises financeiras.  Ao contrário, em caso de frustração da arrecadação, há necessidade de limitação de empenho e movimentação financeira, o chamado contingenciamento orçamentário, que deve ser feito quando, os balancetes bimestrais de acompanhamento da evolução da receita verificam que esta não foi realizada em montante capaz de suportar  o cumprimento da meta primária fixada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), nos termos do artigo 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000).  No entanto, não pode o Poder Executivo promover diretamente o contingenciamento das despesas dos órgãos e entidades dotados de autonomia financeira.  Deverá, de acordo com o referido dispositivo legal, instar a que a instituição autônoma promova, por ato próprio, o contingenciamento, a partir do indicativo por ele apresentado.  Apenas diante da inexistência de contingenciamento pela entidade autônoma, quando instada a fazê-lo pelo Poder Executivo, é que poderia este último promover a limitação de empenho e movimentação financeira, nos termos que eram autorizados pelo § 3º do art. 9º da LRF.  No entanto, o referido parágrafo teve a sua vigência suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 2.238-5 MC/DF, que preserva a competência exclusiva dos entes autônomos para promover o contingenciamento dessas próprias despesas.

A necessidade do contingenciamento promovido pelo próprio ente autônomo não é apenas uma decorrência formal da autonomia financeira. É mecanismo que preserva a sua própria essência quando esta se faz mais necessária.  Nos momentos de crise financeira e de frustração de arrecadação, as instituições financeiramente autônomas preservam a possibilidade de eleger as suas próprias prioridades, cortando aquilo que pode ser cortado e preservando aquilo que lhe é essencial, em juízo que, por ser exclusivo da entidade autônoma, não pode exercido pelos órgãos fazendários do Poder Executivo, por se traduzir em decisão que reside no núcleo essencial da autonomia orçamentária.

Por outro lado, a discricionariedade empregada no exercício do contingenciamento é limitada pelo §2ºdo art. 9º da LRF, que estabelece parâmetros formais e materiais ao seu exercício. Assim, o contingenciamento, seja exercido pelo Poder Executivo, seja pela própria entidade autônoma, encontra como limitação formal a sua adequação aos critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.  Do ponto de vista material, o contingenciamento não poderá atingir as despesas obrigatórias, assim entendida as que são as previstas na Constituição e nas leis.

Deste modo, as Universidades Públicas, por gozarem de autonomia financeira conferida pelo art. 207, CF, têm direito a receber as receitas previstas nas dotações que lhes são atribuídas pela lei orçamentária anual.  Apenas em caso de não obtenção da meta primária prevista na lei de diretrizes orçamentárias, poderá haver contingenciamento, por ato próprio da Universidade, de suas de despesas discricionárias, de acordo com os parâmetros previstos na própria lei de diretrizes orçamentárias.  Nesse sentido, indispensável que sejam mantidos os recursos necessários para o cumprimento dos objetivos constitucionais da Universidade como a preservação do ensino público gratuito nos estabelecimentos oficiais de ensino, assegurado pelo art. 206, IV, CF.

A preservação do ensino superior gratuito depende do pagamento da remuneração de seus servidores, bem como para o pagamento das demais despesas correntes, que são indispensáveis ao funcionamento da Universidade.  Dentro desse critério, podem ser contingenciadas por ato da própria Universidade, de acordo com as suas prioridades e com os limites apresentados pelos órgãos de administração financeira do Estado, as despesas discricionárias, notadamente de investimentos, inversões financeiras e as transferências de capital, de acordo com a categorização apresentada pela Lei nº 4.320/64, que estabelece normas gerais de direito financeiro.

A continuidade do serviço público de educação superior, assegurado o seu caráter gratuito, depende da garantia do pagamento da remuneração dos servidores da Universidade, bem como das suas demais despesas correntes, como as  relativas à manutenção dos prédios afetados às suas atividades.   A preservação desses recursos, a partir da gestão  do contingenciamento pela própria Universidade, constitui o conteúdo mínimo da autonomia universitária que não pode deixar de ser tutelada.

Por outro lado, a utilização de recursos gerados pela própria Universidade para pagamentos de obrigações do próprio Estado, como se verifica em casos de arrestos judicial de recursos da instituição superior de ensino em ações ajuizadas contra o Estado constitui não só uma afronta à autonomia financeira, mas principalmente à autonomia de gestão patrimonial, bem como à própria personalidade jurídica própria que lhe foi conferida pelo ordenamento jurídico.   A utilização de recursos da Universidade decorrentes de dotações orçamentárias do Estado destinados à Universidade para pagamento de obrigações daquele já seria violador dos citados preceitos.  Com muito mais razão, quando se analisa o mesmo fenômeno em relação aos recursos gerados pela própria instituição de ensino superior, em situação desprovida da mais tenra gota de juridicidade.  Aliás a própria circulação de recursos gerados pela Universidade no Caixa Único do Tesouro já revela uma promiscuidade financeira maculadora da autonomia patrimonial da entidade.

Deste modo, as Universidades Públicas, em decorrência da sua autonomia financeira têm direito ao pagamento dos valores correspondentes às suas despesas previstas no orçamento, por meio da transferência dos duodécimos mensais.  Em caso de frustração da arrecadação, o Poder Executivo instará todos os órgãos financeiramente autônomos, inclusive as Universidades Públicas, a promover, por ato próprio, o contingenciamento de despesas discricionárias, sendo preservadas as despesas correntes, incluindo o pagamento de seus servidores e a sua manutenção, uma vez que são indispensáveis à manutenção do ensino público e gratuito a que estão constitucionalmente obrigadas  a fornecer, respeitados os parâmetros definidos na lei de diretrizes orçamentárias.



Por Ricardo Lodi Ribeiro (RJ)

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