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Democracia à brasileira

ANO 2016 NUM 84
Adilson Abreu Dallari (SP)
Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Membro do Conselho Científico da SBDP. Ex-Secretário Municipal de Administração de São Paulo. Especialista em Direito Político pela Faculdade de Direito da USP. Consultor Jurídico.


21/02/2016 | 6234 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Há consenso, não obstante as diferenças ideológicas ou partidárias, de que  Brasil está em uma profunda crise econômica e política. Mas há também um segundo consenso, que funciona como compensação ou paliativo, no sentido de que as instituições estão funcionando e a democracia está preservada. Isso precisa ser questionado. Nos tempos da ditadura, os defensores do regime diziam que o Brasil, naquela ocasião, tinha a democracia possível. Os tempos mudaram, mas o déficit democrático permanece, não na mesma escala anterior, mas muito longe daquilo com o que sonharam os que lutaram pela restauração democrática.

Louva-se, ao máximo, a Constituição Federal em vigor, mas é preciso lembrar que ela teve origem espúria.  O Preâmbulo da Constituição começa com uma falsidade, pois não houve eleição de uma  Assembleia Nacional Constituinte. Convém recordar a gestação do texto constitucional em vigor. Para isso é  preciso retornar à Constituição de 1967, que convivia com os Atos Institucionais.  Esse texto foi logo substituído por outra constituição (completa e bem diferente), a qual recebeu a designação de Emenda Constitucional nº 1, de 17/10/69, portanto, ainda em tempos de ditadura.  Na vigência desse texto houve um esforço político bastante intenso, que levou à edição de uma emenda a essa Emenda nº 1, designada como Emenda Constitucional nº 26, de 27/11/85, a qual dispunha sobre a anistia e sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que, na verdade, viria a ser a eleição de Deputados Federais e Senadores, temporariamente investidos de poderes constituintes.

Esse Congresso Constituinte, que legislou para si mesmo, definindo os seus próprios poderes,  foi composto com base naquela negociação política, mediante eleições realizadas  com observância das regras impostas pela ditadura, sabidamente destinadas a falsear a representatividade. Entre os constituintes de 1988 estavam os chamados “senadores biônicos”, que jamais receberam um único voto.

Não é de se estranhar que tais representantes do povo estivessem muito mais preocupados em preservar suas posições e interesses, do que implantar uma verdadeira democracia. O fato é que o sistema político, eleitoral e partidário, que já nasceu ruim, só foi piorando ao longo do tempo. Apontam-se como “conquistas” o voto dos analfabetos e dos menores e a liberdade de organização partidária. Será que tais coisas fortalecem a democracia ?

Analfabetos e menores são pessoas politicamente frágeis, muito sujeitas à demagogia e à corrupção eleitoral, inclusive o inegável estelionato eleitoral causado pela marquetagem desbragada e por um assistencialismo estéril.  O voto dos analfabetos tem remédio: acabar com o analfabetismo. O dos menores é pura demagogia, mas os efeitos negativos podem ser minorados (desde que se afaste o preconceito)  pela restauração do ensino da disciplina educação moral e cívica, que é indispensável para o exercício da cidadania. Na ordem jurídica brasileira, menores, entre 16 e 18 anos, são desprovidos de discernimento entre o que é, e o que não é,  crime (um estupro, por exemplo), mas estão habilitados a escolher as pessoas que vão decidir sobre os destinos do país.

A desmedida  pluralidade de partidos ultrapassa os limites da  liberdade  e adentra o campo da  libertinagem.  A legislação tem regras frouxas para a criação de partidos, mas não tem exigências concretas quanto ao efetivo funcionamento.  A quase totalidade das siglas  nada representa, mas serve para negócios espúrios no tocante ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda eleitoral. Some-se a isso a reiterada e periódica  abertura para a mudança de partidos. Perdeu-se uma oportunidade valiosíssima, quando foi proscrita, pelo STF,  a chamada cláusula de barreira. Não há como corrigir essa anomalia  senão a edição de leis que, estabelecendo condições para a permanência das agremiações partidárias,  levem à extinção gradativa das legendas vazias.

A independência e autonomia dos poderes do estado são condições indispensáveis para a existência da democracia. Quanto a isso,  o chamado presidencialismo de coalisão se apresenta como um retumbante fracasso. Coalisão é , na verdade, um eufemismo, para cooptação. O Executivo não tem saída senão comprar apoios, na melhor das hipóteses,  com sacrifício do planejamento e da racionalidade nas receitas e gastos públicos. Mas, em compensação, ganha inimputabilidade, pois, como se tem observado, a perda do mandato, pelo cometimento de crime de responsabilidade (que é fundamental no regime presidencialista) tem sido explorada como atentado à democracia, como se o voto popular garantisse a absoluta intangibilidade do governante improbo. Segundo a Constituição (Art. 1º, parágrafo único)  todo poder emana do povo, que o exerce diretamente  ou por meio de representantes eleitos, porém, a competência constitucionalmente conferida aos representantes tem sido enfraquecida, até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal.

Pondere-se, entretanto, que a culpa pelo enfraquecimento do Legislativo deve ser imputada à sua inoperância. O fato é que o Executivo, não só em sua chefia, mas por meio de órgãos, entidades e, especialmente, agências, tem legislado desbragadamente. No plano federal o abuso das medidas provisórias é escandaloso, com a conivência do Legislativo, que não cumpre seu dever de (Art. 62, da CF) examinar se estão presentes, em cada caso, os requisitos de relevância e urgência, que não são palavras vazias, desprovidas de conteúdo, nem, muito menos,  norma constitucional totalmente desprovida de eficácia.

Um aspecto, por sua inerência à democracia, merece destaque: o orçamento público.  As raízes do orçamento público se confundem com as raízes do estado de direito, pois ambos nasceram com a “Magna Carta”, de 1215. O funcionamento do governo depende de recursos financeiros, que são aportados ao erário pelos cidadãos, os quais são os destinatários da atuação governamental.  Dizendo em apertadíssima síntese, o orçamento, ao definir quanto se poderia arrecadar, conferia segurança jurídica aos contribuintes. Essa continua sendo uma função essencial do orçamento, que, ao longo do tempo evoluiu muito e, atualmente, contém todo um programa de governo.

A Constituição em vigor (Art. 165) traçou as linhas fundamentais do que deveria ser um sistema orçamentário, ligado a um processo de planejamento, com a  definição das políticas públicas. Porém,  isso tudo deveria ser delineado por uma lei complementar, que nunca foi editada. A elaboração e execução do orçamento continuam sob a regência de Lei nº 4.320, de 17/03/64. O resultado disso é que, o orçamento, no Brasil, é uma obra de ficção,  tanto em sua elaboração quanto, principalmente na sua execução, pois a preocupação dominante é com a obtenção de dividendos eleitorais (e, as vezes, financeiros, ilícitos). Obviamente, isso afeta a segurança jurídica e a soberania popular.

A tolerância com relação a isso é inaceitável, mas tem raízes profundas, desde os tempos do Brasil Colônia. O patrimonialismo, a utilização de recursos públicos para proveito pessoal, ou seja, a corrupção, é algo entranhado na administração pública, não obstante as mutações dos sistemas de governo. Há sim, uma legislação objetivando o seu combate, mas não há uma prática que leve a resultados concretos. É preciso reconhecer que, no momento atual, observa-se algum progresso.

Instrumentos importantes, como a responsabilidade das pessoas jurídicas e a colaboração premiada estou surtindo efeitos, mas já provocam reações por parte das pessoas afetadas, com acusações de vício de inconstitucionalidade. O avanço tecnológico leva à necessidade de evolução do direito. O crime evolui, especialmente a grande criminalidade, as organizações criminosas e os crimes contra a ordem econômica e financeira, inclusive no âmbito dos órgãos e entidades da administração pública; e preciso que os instrumentos de combate acompanhem essa evolução. Entretanto temos um exacerbado conceito de presunção de inocência e exercício do direito de defesa.

O Art. 5º da CF, abriga uma  pluralidade de incisos sobre  direitos e garantias,  dos acusados. Possivelmente essa exacerbada preocupação tenha decorrido de fatos do passado, dos sofrimentos experimentados e das injustiças praticadas contra os opositores daquela  ditadura militar. Mas hoje os tempos são outros e a apuração de crimes, tipificados na legislação, precisa ser atualizada. A infinidade de recursos, levando à prescrição,  precisa ser reduzida. A nulidade decorrente da produção de provas ilícitas não pode continuar sendo um remédio universal. O direito de mentir (uma distorção do direito ao silêncio) não se coaduna com os valores constitucionais, especialmente no tocante à administração pública. Convém deixar claro que não se pretende a abolição dos direitos dos acusados, mas, sim, uma adequação aos tempos modernos, pois, como se sabe (mas é preciso repetir) , o direito está sempre em constante evolução. A alternativa é conformar-se com a corrupção,

Em todos os setores  da vida social,  o crescimento das exigências da vida moderna, em boa parte decorrente  do processo de  urbanização e do desenvolvimento das comunicações,  sem a correspondente e adequada atuação do Executivo e do Legislativo, acabaram afetando o Poder Judiciário, que, desbordando de sua atribuição típica,  acaba legislando e até mesmo administrando. Tome-se como exemplo situações atuais ou recentes, como é o caso do aborto de anencéfalos (e agora microcéfalos),  da decisão do STF sobre a obrigação de proceder a reformas em presídios, e das costumeiras decisões sobre prestação de serviços médicos e fornecimento de medicamentos.

Não obstante o enfoque desta exposição esteja nos Poderes da República, uma palavra precisa ser dita sobre o exercício da advocacia, que também mudou muito ao longo do tempo. Sua inserção no texto constitucional (Art. 133) deixa fora de qualquer dúvida o “múnus” público prestado pelo advogado, mesmo em sua atividade privada.  O antigo advogado, que trabalhava isolado, de maneira artesanal, está sendo substituído por sociedades de advogados, que nem por isso se transformam em empresas, voltadas exclusivamente para o lucro. Advocacia sem ética  não pode existir. Cabe a cada advogado ser fiscal de sua conduta,  e aos órgãos incumbidos do controle do exercício profissional a supervisão do conjunto e a correção de eventuais desvios.

Esta observação é feita em decorrência de nota publicada, pela consagrada jornalista Mônica Bérgamo, na Folha de São Paulo, de 12/02/16  pg. C2, sobre a contratação de advogados, com o seguinte teor; “A ideia é formar um grupo sênior, com profissionais tarimbados e que estão acostumados a fazer não apenas o enfrentamento jurídico, mas também midiático e político de casos de grande repercussão”. Tal ideia é francamente disparatada e não pode ser recebida tranquilamente, pois contém uma grave acusação de desvio de conduta. O  exercício do trabalho profissional de advogado deve conter-se nos limites do jurídico e sempre com a ambição de colaborar com a realização da justiça. Só assim o advogado estará contribuindo para a manutenção e  o aperfeiçoamento das instituições democráticas.

Diante desse cenário, volta-se ao ponto de partida: é essa a democracia que queremos, ou estamos eternamente condenados à democracia possível? Este não é um momento para conformismo ou desânimo. Da mesma maneira pela qual aquela democracia,  então possível,  foi superada, é urgente  avançar no tocante à democracia que atualmente temos. Agora, como naqueles tempos difíceis, é essencial a coragem, a competência, a sensibilidade e a habilidade dos profissionais do direito. A ditadura não foi derrotada pela violência, que apenas prolongou sua duração e levou a reações inaceitáveis.

O que  levou à superação daquele estado de coisas foi a pregação, constante, insistente, incansável (não só dos profissionais do direito, mas principalmente por estes) da necessidade e das conveniências da restauração democrática.  Chegou-se a um resultado satisfatório, por meio de um processo de negociação, diante  da insatisfação, de todos os envolvidos, com a situação então reinante.

No Brasil de hoje a insatisfação é universal e ninguém mais acredita em soluções mágicas, principalmente pelo uso da força. O profissional do direito trabalha quase sempre em razão de um conflito, que precisa ser, de alguma forma, composto.  É preciso, portanto, utilizar esse talento, ou vocação, para buscar meios de, gradativamente, sair do impasse e caminhar  no sentido do aperfeiçoamento de nossa claudicante democracia.

Mas para que isso seja factível, é indispensável superar preconceitos e concepções puramente ideológicas. As opções políticas fundamentais já estão na Constituição Federal, onde não se encontra uma igualdade utópica,  nem um individualismo sem limites, mas, ao contrário, onde se encontra um equilíbrio entre os diferentes segmentos da sociedade, que afasta o conflito e o enfrentamento, e promove a sadia convivência.



Por Adilson Abreu Dallari (SP)

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