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Audiências Públicas Virtuais: possibilidades e limites durante a pandemia da Covid-19

ANO 2020 NUM 459
Alexandre Aragão (RJ)
Professor Titular de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo - USP. Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Árbitro. Advogado.


21/05/2020 | 5848 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

A etimologia do conceito de audiência está atrelada à ideia de audição, uma vez que o termo “audiência” se origina do termo latino “audire”, que significa ouvir. Nessa perspectiva, a finalidade das audiências públicas já é revelada: não é outra a não ser ouvir os cidadãos e os grupos sociais legitimados à atuação coletiva em matérias que lhes interessem, de modo que possam influenciar a tomada de decisão pela autoridade pública (MELO, 2016, p. 17).

O instituto da audiência pública entre nós remete à redemocratização do país, período no qual era pujante o clamor pela participação da sociedade civil nas decisões de interesse público. Foi consagrado pela Constituição de 1988, em seu art. 58, §2º, II, que prevê que às comissões do Congresso Nacional, em razão da matéria de sua competência, cabe: II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil”.

 Também foi prevista pela Lei nº 8.666/1993, nos ditames do art. 39, que estabeleceu: “Sempre que o valor estimado para uma licitação ou para um conjunto de licitações simultâneas ou sucessivas for superior a 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso I, alínea "c" desta Lei, o processo licitatório será iniciado, obrigatoriamente, com uma audiência pública concedida pela autoridade responsável com antecedência mínima de 15 (quinze) dias úteis da data prevista para a publicação do edital, e divulgada, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias úteis de sua realização, pelos mesmos meios previstos para a publicidade da licitação, à qual terão acesso e direito a todas as informações pertinentes e a se manifestar todos os interessados.

 Finalmente, a previsão também restou estabelecida na Lei nº 9.784/1999, conforme previsão do art. 32, que assim dispõe: “Antes da tomada de decisão, a juízo da autoridade, diante da relevância da questão, poderá ser realizada audiência pública para debates sobre a matéria do processo. No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a previsão é integralmente repetida na Lei Estadual nº 5.427/2009, a partir de seu art. 28.

As previsões normativas em referência destacam a importância da audiência pública, haja vista que esta objetiva proporcionar a participação social nos espaços institucionais, visando a promoção do diálogo e do caráter consultivo aos cidadãos, sobretudo naqueles temas considerados de interesse da coletividade, como no caso das licitações com valores elevados (art. 39, Lei nº 8.666/1993). 

Sobre o tema, podem ser destacados os ensinamentos do Professor Agustín Alberto Gordillo, para quem “a audiência pública apresenta, dentre outras, as seguintes vantagens, tais como: (i) garantia objetiva de razoabilidade na atuação do Estado; (ii) formação de consenso da opinião pública antes da tomada de decisão; (iii) garantia objetiva de transparência da relação estatal com os permissionários e concessionários; (iv) elemento de democratização do poder, pois, como explica Rivero, a democracia não é só um modo de designação do poder, mas também um modo de exercício do poder; (v) modo de participação cidadã no poder público, como exigido tanto por princípios políticos e constitucionais como pelas normas supranacionais” (GORDILLO, 2003, in, MELO, 2016, p. 24).

Nessa mesma toada, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, destaca a necessidade de participação política do cidadão, como fenômeno que garante legitimidade ao exercício do poder pelos governantes. Desta feita, como processo de legitimação, a audiência pública é viabilizada por meio da publicidade ampla dos atos públicos que, porventura, possam afetar a coletividade. Frisa-se que essa publicidade se dá anteriormente à edição do ato, a fim de que seja assegurada a manifestação daqueles interessados (MOREIRA NETO, 2001, p. 202).

Dessa forma, na medida em que a audiência pública retrata, conjuntamente com a consulta pública, um dos “instrumentos de participação das comunidades na tomada de decisões administrativas” (CARVALHO FILHO, 2018, p. 1.054), percebe-se, então, a existência de uma ligação intrínseca entre este instituto com os princípios da publicidade, da transparência e da participação popular.

Sobre o princípio da publicidade, ressalta-se: “Indica que os atos da Administração devem merecer a mais ampla divulgação possível entre os administrados, e isso porque constitui fundamento do princípio propiciar-lhes a possibilidade de controlar a legitimidade da conduta dos agentes administrativos. Só com a transparência dessa conduta é que poderão os indivíduos aquilatar a legalidade ou não dos atos e o grau de eficiência de que se revestem.  É para observar esse princípio que os atos administrativos são publicados em órgãos de imprensa ou afixados em determinado local das repartições administrativas, ou, ainda, mais modernamente, divulgados por outros mecanismos integrantes da tecnologia da informação, como é o caso da Internet (CARVALHO FILHO, 2018, p. 22). 

Acerca do princípio da transparência: Consagra-se nisto o dever administrativo de manter plena transparência em seus comportamentos. Não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relação aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida(MELLO, 2015, p. 117). 

Coaduna-se à participação popular, a ideia do “Estado em rede”, na qual: “A teoria do ‘Estado em rede’ foi criada como uma tentativa de aperfeiçoamento no modelo da administração pública gerencial. Superando a simples busca por resultados, o Estado em rede visa realizar uma gestão para a cidadania, transformando os indivíduos de destinatários das políticas públicas em ‘protagonistas na definição das estratégias governamentais’. Seu principal desafio é incorporar a participação da sociedade civil organizada na priorização e na implementação de estratégias governamentais, fomentando a gestão regionalizada e a gestão participativa, por meio de institutos como consultas e audiências públicas” (MAZZA, 2018, p. 04).

Sendo assim, observando esses princípios de forma teleológica, bem como as instruções normativas que versam sobre o instituto, a audiência pública está pautada no binômio: ampliação da cidadania e fortalecimento democrático-institucional. Isto porque, conforme destacado anteriormente, sua finalidade é a promoção da ampla participação direta da sociedade civil nos projetos institucionais.

Em uma democracia, a participação do cidadão não se restringe ao voto, sendo livre a manifestação popular pelas mais diversas formas, como manifestação do pensamento (art. 5º, IV, CRFB), reuniões populares (art. 5º, XVI, CRFB), etc. Recentemente, esses canais de manifestação têm se estendido àqueles presentes na rede mundial de computadores. Com a profusão da tecnologia, que se faz cada vez mais presente no dia-a-dia dos cidadãos e até mesmo do poder público, a participação da sociedade não se dá apenas presencialmente, como antigamente, mas também por meio das redes sociais, que constituem, hoje em dia, importante canal de comunicação e de manifestação política – Ilustrativamente, o Estatuto das Estatais contém sete referências à divulgação de atos dessas entidades da Administração Indireta através da rede mundial de computadores.

Nesse sentido, mediante as facilidades da conectividade, como por exemplo a possibilidade da realização de videoconferências, entende-se que a realização de audiências públicas em situação de isolamento social não precisa ser restrita ao comparecimento presencial dos interessados ao ambiente em que ela será realizada. A participação popular pode ser assegurada sem que, necessariamente, o cidadão se faça presente fisicamente, desde que cuidados e garantias adicionais se façam presentes.

Assim, o indivíduo pode perfeitamente participar virtualmente, por meio de recursos tecnológicos, através dos quais podem ser realizados comentários, sugestões, defesas ou críticas a um determinado projeto estatal submetido ao crivo da coletividade.

Note-se que, mesmo após cessada a calamidade pública e o isolamento social decorrentes do COVID-19, seria até recomendável que, além da possibilidade de presença física, fosse franqueada também a participação remota em audiências públicas, ainda mais quando envolvessem regiões distintas do Ente federativo ou todo o seu território.

Aqui é importante ressaltar que o conteúdo se sobrepõe à forma. Ainda que preferencial e costumeiramente as audiências públicas sejam realizadas de maneira presencial, desde que seja assegurado o caráter axiológico e normativo do instituto, a sua finalidade sereia alcançada mesmo se fosse realizado virtualmente, intermediado por alguma tecnologia simples, de fácil acesso e gratuita de videoconferência. 

Ademais, ressalta-se que, tanto a lei que regula processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, a Lei nº 9.784/1999, quanto a lei que estabelece normas sobre atos e processos administrativos por exemplo Em âmbito estadual podemos citar, a Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 5.487/2009, quando tratam de audiências públicas não especificam a necessidade da realização de algum rito pré-determinado. A única determinação que subsiste consiste na necessidade de lavratura da respectiva ata de audiência, com as devidas informações, conforme os ditames do art. 35, Lei nº 9.784/1999 e do art. 31, Lei Estadual nº 5.487/2009.

Segundo tal perspectiva, é importante ressaltar que não é completamente novo no âmbito do Direito Administrativo que reuniões e audiências públicas sejam realizadas virtualmente com auxílio de tecnologias. Algumas agências reguladoras adotam esta prática – a título de exemplo destacamos as seguintes: (i) Agência Nacional de Aviação Civil: o Art. 36 da IN nº 154/2020 autoriza a participação presencial ou à distância em audiências públicas, bem como as reuniões de diretoria também podem utilizar videoconferência, segundo o art. 9º da IN nº. 33/2010; (ii) Agência Nacional de Saúde Suplementar: segundo os ditames do art. 15 da Resolução Normativa nº 242/2010, a audiência pública pode ser realizada em ambiente virtual; (iii) Agência Nacional de Transportes Terrestres: tal qual expresso no art. 29 da Resolução DG/ANTT/MTPA nº 5.624/2017, as audiências públicas e reuniões participativas poderão ocorrer com o auxílio de tecnologias de informação e comunicação; e (iv) em sede estadual, verbi gratia a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado do Rio de Janeiro - ARSERJ: de acordo com o art. 63, § 4º da Lei Estadual nº 8.344/2019, havendo viabilidade técnica e econômica, a audiência pública poderá ser transmitida ou receber contribuições por videoconferência ou internet.

Podemos transcrever esse dispositivo face ao seu detalhamento: “Art. 63. Sem prejuízo da adoção de outras formas de participação, são mecanismos de observância obrigatória nos casos previstos nesta Lei e nos atos normativos da ARSERJ: (...) II - Audiência pública. (...)  § 4º A audiência pública poderá ser realizada no curso do prazo da consulta pública, será gravada e poderá, em havendo viabilidade técnica e econômica, ser transmitida ou receber contribuições por videoconferência ou internet, assegurado aos interessados o direito à obtenção de cópia da gravação, observados os procedimentos da ARSERJ, anexando-se o áudio e a transcrição ao processo correspondente”.

Os requisitos constantes deste parágrafo devem inclusive ser por analogia incluídos nos requisitos para a realização de audiências públicas em modalidade exclusivamente virtual no âmbito do respectivo ente federativo. Reparamos que o dispositivo trata de participação virtual em audiência pública que de toda sorte remanesce sendo presencial. Por essa razão as exigências por ele consignadas nos parece necessárias, mas não suficientes para audiências públicas das quais se poderá participar apenas remotamente.

Ainda a título de exemplo, destaca-se que no Estado de São Paulo, através do Parecer CJ/SIMA n.º 158/2020, exarado no âmbito do Processo Administrativo SIMA.014048/2020-79, restou consolidada a possibilidade jurídica da realização de audiências públicas virtuais em dois projetos de concessão de uso de bem público, nos casos do Zoológico e Jardim Botânico do Estado de São Paulo e do Caminhos do Mar, ambos em andamento na Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente daquele ente federativo.

Logo, no atual contexto, à luz do isolamento social imposto pela pandemia de COVID-19, a possibilidade de utilização em geral destas tecnologias na realização de audiências públicas se intensifica e se faz mais necessária. Sendo evidente o risco de contaminação nas aglomerações físicas, a utilização de tecnologias que propiciem a comunicação humana sem contato físico passa a ser um instrumento de preservação da vida humana – bem maior do ordenamento jurídico brasileiro.  

Além disso, por força do princípio da continuidade das atividades administrativas, todas as funções administrativas, em maior ou menor grau, também devem ser prestadas de modo ininterrupto (ARAGÃO, 2013, p. 100), de tal forma que “o atendimento eficiente do interesse público não se coaduna com atividades administrativas descontínuas, desiguais ou imunes à evolução social” (OLIVEIRA, 2018, p. 45).  Nessa visão, não seria admissível que o interesse relacionado à participação social nos espaços institucionais e à própria eficiência das decisões a serem eventualmente tomadas pudessem ser prejudicados por uma questão de descontinuidade na realização de audiências públicas devido à impossibilidade de realizá-las presencialmente, quando pode haver tecnologias disponíveis que possibilitam sua realização segura e efetiva. Desta feita, vê-se que é de interesse geral que as atividades administrativas continuem.

Contudo, há de se ressaltar que a audiência pública em ambiente virtual deve ser instruída de forma tal que promova a ampla participação direta da sociedade civil, a fim de cumprir integralmente com as finalidades do instituto. O acesso à informação, portanto, é essencial. Dessa forma, a realização da audiência deve ser divulgada de forma extensiva, em diversos canais de comunicação, com fins de favorecer maior participação popular.

Mister ainda que seja escolhida uma tecnologia capaz de favorecer o pleno acesso ao cidadão, bem como que a audiência possa ser transmitida ao vivo, disponibilizada permanentemente na internet e que possa permanecer gravada para eventuais consultas. Logo, a plataforma tecnológica que será disponibilizada deve permitir acesso amplo, direto e interativo dos cidadãos interessados, inclusive por telefone celular.

Nesse viés, é ainda necessário que sejam tomados alguns cuidados com a realização da audiência pública em âmbito virtual. Retomando o precedente paulista citado anteriormente, para a realização de suas audiências públicas em ambiente virtual foram previamente determinadas algumas instruções: (i)  quanto à participação – foi determinado que o cidadão interessado poderia participar assistindo online a referida audiência, sem necessidade de inscrição e, mediante inscrição, com possibilidade de manifestação e colaboração com perguntas e sugestões em ambiente virtual, sendo certo que poderiam também ser enviadas perguntas via e-mail durante a audiência, tanto por participantes, quanto por espectadores; (ii) deveria ser realizado um cadastro prévio do participante, com nome completo, RG, órgão ou entidade que representa, telefone e endereço de correio-eletrônico; (iii) a audiência pública deveria ser constituída por uma mesa diretora, tribuna virtual e um plenário virtual, nos quais, a tribuna corresponde ao espaço destinado aos oradores devidamente inscritos e identificados para fazer uso da palavra, transmitidos em ambiente virtual e, o plenário seria composto pelas pessoas cadastradas ou ouvintes da audiência pública; e (iv) prévia divisão das partes da audiência e dos tempos de fala destinados a cada manifestação.

Ademais, no edital de convocação da audiência pública em ambiente virtual devem ser disponibilizadas todas as instruções pertinentes ao acesso à plataforma tecnológica, à forma de cadastro e participação do cidadão, bem como seja planejada a divisão das partes da audiência e sua organização temporal.

Por derradeiro, caso na data da audiência pública, a situação do isolamento social decorrente do COVID-19 já tenha se normalizado, ela deverá ser realizada presencialmente, mas também com o acesso garantido na forma do edital de convocação que pressupunha ser realizada apenas na forma virtual, o que também deverá ser consignado neste edital.

Temos assim, diante do contexto da pandemia, atendidas as garantias expostas, uma salutar combinação entre, de um lado, os princípios da publicidade, da transparência e da participação, e de outro, o princípio da continuidade das atividades estatais.

 

Referências Bibliográficas

ARAGÃO. Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2018.

MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015.

MELO, Cristina Andrade. Audiência pública na função administrativa. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações no Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.



Por Alexandre Aragão (RJ)

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