Colunistas

Covid-19 e Eleições de 2020: um debate necessário para fugir do voluntarismo político

ANO 2020 NUM 452
Ana Claudia Santano (PR)
Professora do Programa de Pós-graduação em Direitos Fundamentais e Democracia do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Pós-doutora em Direito Público Econômico pela PUC-Paraná e em Direito Constitucional pela Universidad Externado, Colômbia. Doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, Espanha.


21/04/2020 | 2818 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

O surgimento da pandemia do Covid-19 está impondo grandes desafios ao mundo. Há muito em jogo diante do controle do vírus, como temas sanitários, econômicos e sociais. Há, em meio a tudo isso, um tópico em aberto e que está afetando muitos países: o impacto do vírus sobre as democracias.

Há muitas eleições previstas esse ano. Somente tomando em consideração a América Latina, mesmo após o “super-ciclo” eleitoral de 2018 e 2019 (expressão de Daniel Zovatto), 2020 guarda muitos pleitos importantes. Países como República Dominicana, Bolívia, Uruguai, Suriname, Peru, Costa Rica, Chile, Uruguai, México, Paraguai, Belize, sem falar na incerta Venezuela, possuem em seu calendário de 2020 algum tipo de eleições, segundo calendário do IFES. Algumas dessas eleições já foram realizadas, como as extraordinárias no Peru, na Costa Rica, as municipais na República Dominicana, que terminaram suspensas e realizadas logo após, e que outras já foram postergadas pelos respectivos governos, como o Chile e Bolívia, que já vem de um conturbado processo eleitoral realizado em 2019.

O Brasil encontra-se nessas duas listas, tanto de países que possuem eleições previstas para 2020, as municipais, quanto também já foi forçado a postergar uma eleição suplementar para Senador no estado do Mato Grosso, antes marcada para abril. No entanto, se a solução para esta última já foi dada com menos dificuldade (eventualmente por ser uma eleição suplementar), isso não é o contexto das eleições municipais, marcadas para outubro.

Rapidamente o debate sobre como proceder diante das eleições locais se transformou em outro, na direção da unificação das eleições, sendo um claro exemplo de voluntarismo político que distorce o real desafio e o debate público que deve haver. Nesse ponto, é importante destacar que o adiamento das eleições não é o mesmo que prorrogar mandatos atuais e unificar todos os pleitos em um só momento. Inclusive as possibilidades para um e para outro são distintas se analisado o marco constitucional em vigor.

Porém, o debate se repete. Recorda-se que em 2015 a proposta de unificação das eleições foi rechaçada pela Câmara de Deputados. Em 10/06/2015, o Plenário rejeitou, por 225 votos a 220, emenda constitucional que previa a coincidência das eleições municipais, das legislativas e da presidencial. Com isso, tem-se que esse debate que se trava nesse momento é repetido, não trazendo nenhum novo aporte, já que o panorama que o embasa também não mudou. O que sim mudou foi a existência de uma emergência pública, que pode fundamentar a decisão pelo adiamento das eleições. Porém, a emergência decretada não pode ser a base da unificação das eleições, por não terem conexão entre si. Trata-se da utilização de uma razão existente para uma providência alheia, como às vezes se verifica no Brasil principalmente no que se refere à legislação eleitoral ou aos casos concretos nessa esfera.

Por outro lado, há alguns projetos de emenda constitucional em trâmite na Câmara que trazem o tema para o debate. Até o dia 03 de abril de 2020 (dia da pesquisa por meio do site da Câmara dos Deputados) existem quatro Propostas de Emenda à Constituição, que foram apensadas a outras anteriores. A PEC 179/19 (autor Dep. Dagoberto Nogueira, PDT/MS) acrescenta dispositivos no ADCT propondo a unificação das eleições em 2022, prorrogando mandatos de prefeitos e de vereadores, afastando a possibilidade de reeleição; a PEC 214/19 (autor Dep. Wilson Santiago, PTB/PB) altera dispositivos constitucionais para unificar as eleições, retirar a possibilidade de reeleição, aumentar o mandato de vereadores e prefeitos e mudar a data das eleições, tendo como foco a proibição da reeleição; a PEC 56/19 (autor Dep. Rogério Peninha Mendonça, MDB/SC) que possui o mesmo teor que a PEC 49/19, da mesma autoria, que propõe acrescentar dispositivo no ADCT para unificar eleições e prorrogar os mandatos de vereadores e de prefeitos; e o PL 837/20 (autor Dep. Fábio Ramalho, MDB/MG) que diretamente cancela as eleições de 2020 devido ao Covid-19, alterando a Lei 9.504/97 para unificar as eleições.

Todas as propostas possuem um ponto em comum: a sua justificativa praticamente sobre motivos de economia de recursos públicos e funcionamento das políticas públicas entre uma eleição e outra. Somente o último PL traz a justificativa da pandemia, como é óbvio devido à data de apresentação da proposta.

Entendendo que o debate se faz necessário devido ao tempo que passa e o problema que se encontra no centro da sala, este artigo traz uma exposição sobre os argumentos que são trazidos pelos defensores da unificação das eleições. Trata-se de uma tentativa de abordar racionalmente as razões que costumeiramente são vistas para uma medida que tende a produzir grande impacto em sua aplicação. Não se irá tratar diretamente sobre a possibilidade de se unificar as eleições pelo ponto de vista jurídico, por entender que há um estreito espaço para esta providência, desde que não seja realizada em ano eleitoral devido ao art. 16 da Constituição Federal de 1988. O foco aqui será nas razões sócio-econômicas, políticas e institucionais que envolvem o debate.

Para iniciar a arguição, é necessário considerar o universo de candidatos que pode haver nas eleições, caso unificadas. Com dados de 2015, o ex-Ministro do TSE, Henrique Neves, apresentou em uma audiência pública realizada na Câmara dos Deputados naquele mesmo ano, um exercício aproximado desse cálculo. Considerando todos os cargos do país e todas as vagas, em âmbito federal, estadual e municipal, junto com a possibilidade de 32 partidos políticos apresentarem candidatos, chegou-se ao total de 3.195.584. Isso mesmo: são mais de três milhões de candidatos para presidente, vice-presidente, governador e vice, senador e suplente (1° e 2°), deputados federais, estaduais e distrital, além de prefeito, vice-prefeito e vereadores dos 5.570 municípios. Não foram consideradas no cálculo eventuais coligações, mas esse número provavelmente sofrerá alterações, caso refeito com dados de 2020, devido à posterior criação de partidos, seja pela possível alteração no número de vereadores em alguns dos municípios.

Um dos motivos mais recorrentes que alegam os defensores da similitude das eleições é a economia dos recursos públicos, ainda que sem apresentar dados. Os defensores da unificação afirmam que a organização das eleições custa muito e que, com a realização conjunta de todos os pleitos, os gastos para esse fim seriam diminuídos. Contudo, trata-se de uma conclusão simplista que não considera a realidade.

Em primeiro lugar, realizar eleições e ter democracia sempre vai ter um preço. É o preço de organizar o pleito (preparo das urnas, treinamento de mesários, campanhas institucionais de educação para o voto, recursos humanos, contratação de serviços correlatos, etc.), é o preço do financiamento das campanhas (com a respectiva propaganda, contratação de pessoal e de serviços,), é o preço para o horário eleitoral gratuito do abatimento fiscal dos valores dos meios de comunicação, dentre outros preços que movem a democracia. A democracia em sociedades massificadas como a brasileira custa, como em qualquer país. Boas democracias custam. Baratas são, na verdade, as autocracias. Nelas, não há gastos com campanhas, com eleições, com parlamentos, com nada. Portanto, a democracia exige investimento para ser funcional, requer recursos públicos, não cabendo o argumento de democracias “caras” ou “baratas”. Aliás, esse argumento não deveria pautar o debate sobre a unificação das eleições, sob pena de estar se precificando o exercício dos direitos políticos.

Em segundo lugar, o argumento econômico é dissolvido quando se olham os números. Somente no que se refere à parte do custo das campanhas, não há razão para entender que haveria redução de custos. Em eleições simultâneas, todos os candidatos fazem campanhas juntos, o que aumenta, automaticamente, a demanda por serviços e pessoal característicos desse período. Com mais demanda, não se sabe se a oferta poderá corresponder, mas assumindo que não há tantas gráficas, tantas pessoas para contratar, tantos veículos para alugar, etc., os preços irão subir, fazendo que se gaste mais, mesmo não sabendo se a qualidade desses serviços poderá ser mantida. Aqui basta um raciocínio básico de oferta e demanda para verificar que a tendência é que subam os preços, exigindo ainda mais recursos de financiamento de campanha dos candidatos. Nesse sentido, ainda que se pense que o candidato não precisará ir atrás do financiamento para a sua campanha com tanta frequência, essa dificuldade será maior quando houver ainda mais candidatos disputando os potenciais doadores.

Nessa linha, deve-se mencionar o já bastante restringido regime de financiamento de campanhas no Brasil, que desde 2017 é eminentemente público. Naquele ano, foi destinado às eleições de 2018 o valor de R$ 1.716.209.431,00 (um bilhão, setecentos e dezesseis milhões, duzentos e nove mil e quatrocentos e trinta e um reais). Muitos candidatos já indicaram que, embora o montante seja vultoso, ainda é insuficiente para todos. Já para as eleições de 2020, foram reservados no orçamento geral o valor de 2 bilhões de reais, que serão divididos com as mesmas regras de 2018. Ou seja, mesmo com um montante maior, provavelmente também não será suficiente para todos os candidatos.

Em caso de unificação das eleições, deve-se considerar que a tendência dos aportes públicos para as campanhas, seja via fundo especial de financiamento de campanhas, seja fundo partidário, é aumentar, já que haverá mais candidatos. Portanto, não haverá economia e, ainda, demandará mais recursos.

Este é um tema sensível, justamente porque o debate sobre a unificação das eleições também se pauta sobre a necessidade de utilização desses valores referentes do FEFC e do fundo partidário para o combate à pandemia. No entanto, independentemente do perfil positivo que esta proposta possa ter, a nova destinação desses recursos não pode servir de fundamento para a unificação das eleições, nem mesmo se deve utilizá-los no combate à pandemia. Há tantos outros mecanismos para se conseguir dinheiro para esse fim, como a estrutura do BNDES, por exemplo, sugestão esta da economista Monica de Bolle. Existem também orçamentos de guerra que estão sendo acionados e aprovados. Direcionar os recursos do FEFC e do fundo partidário não fará nenhuma diferença no combate ao Covid-19 e inviabilizará campanhas para as eleições de 2020, mesmo adiadas, abrindo espaço para a eleição da minoria abastada, capaz de pagar as próprias despesas com recursos próprios, ou candidaturas pagas com recursos de origem corrupta.

Não se defende, aqui, o modelo do FEFC para o financiamento de campanhas. Na verdade, julga-se que foi uma péssima providência que aprovaram nos últimos anos, resultado de um debate feito às pressas, sem maiores reflexões, e que agora começa a surtir seus efeitos indesejados, como o aumento da crítica pública. O que ocorre é que a utilização desses recursos agora mais atende a uma proposta populista do que efetivamente humanitária.

Ainda sobre o argumento econômico – ou da suposta economia de recursos –, deve-se analisar o lado dos custos da Justiça Eleitoral. Para tanto, deve-se também considerar as razões institucionais para não adotar as eleições unificadas.

Pleitos simultâneos podem sugerir economia na sua organização, mas isso pode não ocorrer se for levado em conta o tamanho das eleições a se organizar. O custo da organização das eleições de 2018, segundo dados oficiais do TSE, foi de R$ 835.942.757 (oitocentos e trinta e cinco milhões, novecentos e quarenta e dois mil, setecentos e cinquenta e sete reais). A realização de 5.570 eleições municipais de prefeitos e vereadores, de 26 eleições estaduais para governador, deputados federais, senadores e deputados estaduais, de uma eleição distrital, junto com a nacional para a Presidência da República, numa mesma data ou em datas próximas, certamente demandará uma quantidade importante de recursos, na melhor das hipóteses, aproximado ao valor citado, ainda que sempre haverá aumento por causa de manutenção de urnas, por exemplo.

Isso gera pressão sobre o custo da organização dessa eleição não só para o preparo das urnas, mas principalmente sobre os recursos humanos da Justiça Eleitoral, seja em sua atividade administrativa ou jurisdicional. A estrutura da JE, por mais qualificada que seja, já vem sofrendo com o orçamento limitado que possui. Já há déficit de funcionários de distintos setores sem a possibilidade de nova contratação devido ao teto de gastos aprovado em 2017. Cada um dos 3.195.584 candidatos calculados anteriormente exigirá um alto nível da capacidade institucional da Justiça Eleitoral, ou seja, cada um dos candidatos para esses cargos terá que ter o seu registro de candidatura analisado e deferido, além de ter que ter as contas apresentadas e analisadas a tempo para a diplomação (art. 30, §1°, Lei 9.504/97). Pode-se alegar que os atos praticados pelos candidatos já estão informatizados e que alguns procedimentos de análise também. Porém, do lado da Justiça Eleitoral, faz-se necessário um número importante de recursos humanos e adjacentes.

Somente a título de exemplificação, cite-se o caso da Assessoria de Exames de Contas Eleitorais e Partidárias (ASEPA), no Tribunal Superior Eleitoral. Este setor de fiscalização conta, atualmente, com 11 funcionários para toda a verificação das contas dos diretórios nacionais dos partidos, além das contas eleitorais dos candidatos à presidência. Com dados de 2017, cada um desses funcionários deveria verificar a veracidade de informações sobre 2 milhões de reais. A situação é ainda mais dramática nos Tribunais Regionais Eleitorais, que se complicou muito com a adoção do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, que injetou quase 2 bilhões de reais nas eleições de 2018 sem que houvesse um robustecimento na capacidade institucional do TSE para realizar a fiscalização dos recursos. O número de funcionários permanece o mesmo, ainda que o volume de dinheiro tenha aumentado exponencialmente.

Este esforço por mensurar o impacto institucional sobre a Justiça Eleitoral deve ser feito envolvendo outras de suas prerrogativas, como a sua própria atividade jurisdicional antes, durante e após as eleições. Ou, sobre o aspecto organizacional das eleições, estima-se que a Justiça Eleitoral teria que gastar mais de um bilhão de reais somente com as urnas eletrônicas, em caso de eleições unificadas, considerando a sua manutenção, preparo e testes próprios de segurança. Essa afirmação também foi feita na audiência pública realizada na Câmara dos Deputados em 2015.

Portanto, o argumento de que haveria economia com a unificação das eleições não prospera quando confrontado com a realidade. Economia não deve pautar debates sobre democracia, da mesma forma que não deve embasar discussões sobre saúde, como vem ocorrendo com a pandemia. Inclusive, o debate econômico deve sim fazer parte de um esforço para uma maior segurança no exercício do voto e da realização das eleições. Sem recursos, não há como ter democracia, abrindo espaço para a convulsão social e instabilidade.

Por outro lado, é um fato de que os partidos políticos sempre são preocupações constantes nas democracias, sendo muito acusados de sua deterioração. A comumente afirmada crise de representação é indicada como um resultado do mau comportamento das agremiações, desconsiderando outros elementos que incidem sobre esse momento de questionamento da própria democracia.

Adilson de Abreu Dallari afirmou em artigo recente que a unificação das eleições responde ao modelo partidário escolhido pela Constituição (caráter nacional), colaborando para que não mais se falsifique a representação com eleições regionais. Além disso, as eleições simultâneas desmotivam a criação de “legendas de aluguel”, e por correspondência diminuiria a corrupção, a demagogia e a negociação obscura advindos pelo que ele chama de “arranjos de conveniência”. Isso já foi discutido em artigo de resposta próprio no site “Consultor Jurídico” e, por isso, pede-se vênia para trazer aqui os argumentos expostos.

No que se refere ao caráter nacional escolhido pela Constituição Federal de 1988, a razão dessa exigência é que a ordem constitucional não desejava que debates ou influências políticas ficassem confinados a rincões regionalistas, considerando a trajetória histórica da política brasileira, em que muitos dos episódios de insurgência vieram de partidos regionais, sendo, portanto, uma medida para fomentar a unidade nacional. No entanto, aqui cabe a doutrina de Orides Mezzaroba, que traz em seu clássico livro sobre Partidos Políticos que o conceito de “caráter” empregado pela CF/88 não significa “âmbito” nacional. O que se tem como “caráter” é que o partido deve ter propostas nacionais, para todo o território do país. Contudo, ao regular a criação de partidos na Lei n° 9.096/95, o requisito do caráter nacional para a criação de partidos foi resumida a partir do conceito de âmbito, a partir de uma fórmula matemática que distribui o suposto apoiamento de eleitores entre os estados do Brasil. Os partidos, na verdade, já são considerados a partir de suas estruturas nacionais para outros fins, como o tamanho de sua bancada na Câmara de Deputados para fins de cálculo de financiamento eleitoral e horário eleitoral gratuito. No entanto, é um erro pensar que a política brasileira se resume a Brasília, quando o país conta com 5.570 municípios.

Na verdade, as eleições municipais possuem características próprias, pois estão muito mais próximas dos eleitores, há mais contato e, provavelmente, reflita mais a vontade da soberania popular do que as nacionais. Em muitos casos, a participação popular nas eleições municipais é mais alta que nas nacionais, justamente por causa da aproximação do processo com as pessoas. As pautas municipais são totalmente distintas que as nacionais, pois atendem às demandas que são próprias de cada municipalidade e região do país. A forma de fazer campanha é diversa, bem como a forma da decisão pelo voto, sendo tudo isso já trabalhado no campo da Ciência Política. Diante disso, os partidos brasileiros, mesmo tendo esse âmbito nacional, não se comportam igual em seus diferentes níveis, e isso nem deve ocorrer, devido à autonomia partidária. Partidos são também entes estrategistas quando buscam a vitória das urnas.

Os partidos se direcionarão conforme a sua chance de vitória for maior, pois também agem racionalmente, conforme ensina Anthony Downs. Na Ciência Política, há pesquisas empíricas indicando que, em caso de eleições simultâneas, a eleição que é percebida pelo eleitorado como a mais importante vai influenciar diretamente as demais. Isso é possível de ser verificado pelo efeito arrasto, ou seja, quando a opção de voto para a eleição tida como a mais importante pelas pessoas condiciona o voto para as demais, gerando um tipo de uniformização nessa decisão. A tendência é que a eleição para a presidência seja entendida como a mais relevante pelos votantes, sufocando as demais eleições. Isso faz com que os candidatos a presidente influenciem diretamente sobre a decisão de voto para os cargos inferiores, que resulta em uma concentração de votos e, após algumas eleições, em uma diminuição no número de partidos justamente por causa dessa concentração. Isso também impacta sobre a formação de maiorias parlamentares, o que tende a excluir paulatinamente as minorias e também confere um respaldo importante ao presidente eleito, já que os eleitores tendem a votar em seus aliados nas casas legislativas, o que pode comprometer o controle com base nos freios e contrapesos próprios da dinâmica dos poderes. Trata-se de uma tendência extraída da obra sobre desenho eleitoral de Shugart e Carey (1992).

Todo esse cenário pode levar a uma situação de nacionalização da política. Nacionalização de uma eleição – ou de um sistema de partidos, como trabalhou Schattschneider (1960) -, e isso significa uma grande influência politica do nível nacional da política. As eleições locais, os partidos locais e até as demandas locais perdem seu espaço para o debate nacional, a partir de uma agenda também nacional que não considera as particularidades que possam existir no âmbito local (estadual ou municipal). Esta medição da influência de eleições multinível alcança o eleitorado (o reflexo do voto em sua uniformização ou não), as estratégias partidárias e até mesmo a elaboração da agenda pública que será debatida durante a campanha. A tendência, em havendo eleições simultâneas, é que ocorra a sua nacionalização, em que as pautas municipais ou regionais desaparecem perante a magnitude e força da agenda nacional. Até porque, até mesmo a propaganda eleitoral dos níveis inferiores cederá diante da agenda nacional que se impõe, pois a distribuição do horário eleitoral gratuito, por exemplo, além de ser dividido entre mais candidatos, os partidos apostarão cada vez mais em quem tem mais chance de vitória e nas pautas mais apelativas.

Quando há eleições em anos distintos, intercaladas por um intervalo, esse efeito diminui consideravelmente, servindo como um instrumento de accountability ou de responsabilidade ao representante que continua no cargo. Há a oportunidade de crítica por parte do eleitorado sobre os eleitos e, principalmente, sobre a maioria da situação. Com a unificação das eleições, as estratégias partidárias ficarão ainda mais acentuadas, retirando da cidadania esse poder de se pronunciar contra a situação, podendo causar o afastamento das pessoas em torno a temas políticos, devido ao tempo que se tomará entre os pleitos, conforme já ilustraram Dias, Silveira e Falcão, em manifesto escrito no âmbito da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, ABRADEP.

Já a criação de “legendas de aluguel” não será impactada, porque não se alterarão as regras para isso. O que pode ocorrer, e isso já contrapõe o que também Dallari alega, é que as estratégias partidárias em torno da vitória das urnas fomentarão ainda mais os discursos demagógicos e os negócios obscuros, pois, dentro de uma lógica racional, as agremiações adotarão medidas que possam maximizar as suas chances de sucesso eleitoral, não havendo um código de ética a ser seguido. A demagogia, assim como o populismo, poderão contaminar ainda mais os debates políticos, colocando em risco a própria ideia de democracia diante da provável falha na implementação das promessas feitas. O populismo, que já vem sendo indicado como uma das razões para que exista um descontentamento tão grande com a democracia como se verifica na atualidade, fará parte das estratégias dos partidos que nada terão a perder em caso de que assim procedam.

Portanto, esta alegação de que a unificação das eleições tem o condão de melhorar os partidos vai contra as evidências colhidas em décadas pela Ciência Política. Na verdade, aparenta ser uma fuga dos partidos, outra mais, no lugar de realmente se enfrentar o problema da democracia interna das agremiações ou outros fatores que provocam a erosão democrática.

Outra razão presente na proposta da unificação é que a políticas públicas, bem como o funcionamento da Administração Pública, não seria interrompido por uma eleição, ou pelo ocupante do cargo tentar a sua eleição para outro, seja pela troca de visão e de equipe, durante um mandato. Conecta-se bastante com a governabilidade.

No entanto, novamente a realidade é implacável. Segundo Dias, Silveira e Falcão, existe a reclamação de que a legislação eleitoral impõe uma série de restrições que impactam na Administração Pública, como pode ser os convênios. Contudo, eleições simultâneas podem fazer que o tempo de espera pelos estados e municípios de verbas frutos de transferências voluntárias ou de convênios mesmo possa ser ainda maior, justamente por causa das disputas políticas que podem existir e se perpetuar por mais tempo. Isso tende a agravar a situação dos municípios, que já é notoriamente complicada, principalmente quando há a eleição coincidente de adversários políticos da chefia do Executivo local e em outros âmbitos. Um poderia bloquear o outro em diversos temas políticos, como já acontece. O agravante é que, com a unificação das eleições, esse “bloqueio” recíproco será mais longo.

Na verdade, a questão das políticas públicas passa por outros aspectos, como estabilidade e qualificação dos servidores públicos e valorização do serviço público. E isso não irá mudar com a unificação das eleições, podendo até piorar. Nessa linha, a possibilidade de que a pessoa já eleita se apresente para outro cargo durante o mandato é uma questão de regra eleitoral. Não se apresentam, até o momento, motivos razoáveis que justifiquem uma vedação nesse sentido, pelo contrário. É democrático e bom que a pessoa já eleita, comprovando sua capacidade para ocupar cargos eletivos, vá diversificando a sua atuação. A sua eleição para outros cargos demonstra que o eleitorado já o conhece, provavelmente já confia nele, ajudando a construir pessoas públicas. A unificação das eleições, além do impacto sobre a formação de maiorias já mencionado, poderá dificultar a oxigenação do âmbito político, já que os que se apresentam por primeira vez terão grande dificuldade de construir um capital político ao permanecer tanto tempo longe da arena eleitoral, demandando mais e mais recursos, além do fato de diminuir paulatinamente a presença das minorias na Administração Pública. A renovação se verá prejudicada e o descontentamento com a política, iminente.

Provavelmente o maior impacto da unificação das eleições recai sobre o eleitorado, justamente porque a mudança causa alterações no comportamento eleitoral dos cidadãos e na sua visão do processo eleitoral como um todo.

Além do efeito arrasto já mencionado (concentração de votos em distintos níveis para um mesmo partido), as consequências da unificação atingem aspectos da educação ao voto e percepções sobre a democracia. Há um automático afastamento da cidadania durante o período em que não houver eleições, o que pode resultar em falta de interesse pela democracia e até vulneração da importância do ato de votar. Uma pessoa que tem o primeiro voto aos 16 anos, por exemplo, voltará às urnas somente aos 20 ou 21, e esse período de afastamento compromete a educação ao voto, justamente quando o eleitor é jovem e deve ser incentivado a participar. Ou, o que pode acontecer, é que o jovem vá votar diretamente em idade que o voto é obrigatório, sendo-lhe sonegado o período do voto facultativo (16-17 anos), como prevê a lei. O afastamento dos jovens de uma presença maior em processos eleitorais pode ter efeitos negativos sobre o próprio exercício da cidadania, além de facilitar que os valore democráticos entrem em crise a partir de um questionamento direto. Há, paralelamente a isso, risco às instituições democráticas, considerando que o debate político será concentrado entre atores que já se encontram na esfera política, dificultando que ele envolva a sociedade de forma mais ampla.

Por outro lado, a compreensão do eleitor sobre o processo eleitoral unificado também resta prejudicada. Dias, Silveira e Falcão chamam a atenção para o ponto. Além do fato de que os diferentes cargos serão eleitos a partir de fórmulas eleitorais distintas e que já são de difícil entendimento para grande parte da população, há a questão da repartição de competências existente no Brasil, que por si só já é complexa e será ainda mais complicada diante da diversidade de propaganda eleitoral em um mesmo momento, mesclando pautas nacionais, estaduais e municipais, bem como confundindo as agendas e, portanto, impactando na decisão do voto. Nesse sentido, cabe até a alegação de que a propaganda eleitoral se tornará pouco efetiva, para além do seu atual comprometimento, ou seja, haverá uma alta oferta de candidatos para os mais variados cargos, com um volume importante de propostas, em um mesmo momento. A mensagem tem probabilidade de não ser inteligível para muitos cidadãos, o que prejudica a sua decisão de voto. Isso pode causar frustração das pessoas, causando novamente danos à democracia.

A unificação das eleições, por outro lado, exigirá mais da Justiça Eleitoral no que se refere à educação para o voto eletrônico. Ainda é possível verificar que há eleitores que se equivocam na ordem dos cargos que tem de votar, dificuldade que tende a se intensificar com o aumento de cargos a eleger. Isso demandará mais atenção da Justiça Eleitoral a fim de não comprometer a legitimidade dos resultados.

Diante do que foi exposto, a unificação das eleições é desaconselhada pelos impactos que causa na esfera política e social. As alegações utilizadas pelos defensores têm uma considerável probabilidade de não se concretizarem, causando inclusive efeitos contrários ao que se espera. Trata-se de uma má escolha a unificação no contexto brasileiro e que não deve ser tomada.

Como parâmetro de comparação, na América Latina, somente Guatemala, Panamá e Nicarágua adotam eleições simultâneas (consideradas as presidenciais, legislativas e locais), o que sugere certa influência do paradigma centro-americano (considerando que El Salvador deixa em aberto a possibilidade de celebração simultânea dos pleitos). Os demais países (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela) celebram eleições presidenciais, legislativas e municipais em anos distintos. Há mais coincidência entre eleições presidenciais e legislativas, mas há uma tendência à separação dos pleitos municipais, tal como ocorre no Brasil.

Em momentos de crise como a pandemia, prudência é um bom conselho. A democracia brasileira já bem sofrendo há um tempo. Não há necessidade de que a façamos sofrer mais. Unificação, não.



Por Ana Claudia Santano (PR)

Veja também