Colunistas

O Impeachment como Ato Administrativo

ANO 2016 NUM 143
André Luiz Freire (SP)
Professor da Faculdade de Direito da PUCSP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUCSP. Doutorando (S.J.D.) em Filosofia do Direito e Master of Laws (LL.M.) pela Universidade de Virgnia (EUA). Pós Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Advogado.


15/04/2016 | 10923 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

 

1.Introdução. O impeachment, infelizmente, é o tema que está na pauta do dia. Digo “infelizmente”, dentre outras razões, porque essa discussão é provavelmente o ápice da crise política que o Brasil vive. Nesse debate sobre o impeachment, é possível encontrar pessoas defendendo a ideia de que este seria um ato político, fundado numa conveniência política. Aliás, talvez seja essa a visão do cidadão comum, sem qualquer formação jurídica. Para ele, o impeachment é como uma forma de “demissão sem justa causa” do Presidente, que teria como base a sua incompetência política de gerir o país.

No entanto, embora seja possível encontrar afirmações de autores no sentido de que o Senado se transforma num “Tribunal Político”, sob uma perspectiva mais técnica, o que se discute é se o impeachment consiste ou não num ato jurisdicional do Poder Legislativo. Tratar-se-ia de função atípica do Poder Legislativo. Note-se que, quando se defende essa natureza, a rigor, estaríamos perante um ato que não se submeteria ao controle do Poder Judiciário.

Mas, afinal, qual é a natureza do impeachment? Por que saber isso é importante? São justamente essas as duas questões que pretendo, de forma objetiva, responder nesta coluna.

Como indica o próprio título, vou defender que se trata de ato administrativo e, para mostrar a relevância dessa conclusão, indicarei a diferença de regime. E, tendo em vista os propósitos deste espaço, o farei numa linguagem mais simples, sem referências doutrinárias.

2.O impeachment como ato jurídico. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o chamado impeachment é a designação dada para o ato jurídico que introduz uma norma individual e concreta cuja hipótese atesta a prática de um “crime de responsabilidade” por um certo tipo de autoridade (art. 52, I e II, e art. 85, caput, da Constituição) e que, no seu consequente, impõe a perda do cargo e a inabilitação do exercício de função pública de tal autoridade pelo período de 8 anos (art. 52, parágrafo único, da Constituição). A declaração da prática dessa infração não afasta outras sanções, a serem aplicadas pelo Poder Judiciário, se for o caso (art. 52, parágrafo único).

Quando falo aqui em “natureza” do impeachment, pretendo indicar se esse ato é jurisdicional ou administrativo. As definições de “ato jurisdicional” (ex.: a sentença) e “ato administrativo” (como, por exemplo, a multa de trânsito, a sanção do direito de licitar e contratar, a autorização de uso de bem) são simples. No primeiro caso, trata-se de todo ato jurídico (portanto, ato introdutor de normas jurídicas) praticado no exercício de função jurisdicional. No segundo, de ato jurídico praticado no exercício de função administrativa. O problema, na verdade (e isso é mais polêmico), consiste em saber o conceito de função jurisdicional e de função administrativa. Isso passa pela definição das funções estatais no direito brasileiro.

3.Os critérios que diferenciam as funções estatais. Não é o caso aqui de enfrentar neste espaço toda a discussão sobre o tema, o que fiz em outro trabalho, publicado na RDA 248, em 2008. Mas, apenas para dar um panorama, existem, basicamente, dois critérios de diferenciação das funções estatais: o subjetivo e o objetivo. Este último pode ser material ou formal. Vou deixar de lado o critério subjetivo e tratar apenas do objetivo (material e formal).

3.1. Critério material e impechment. Quando se adota um critério material, fundado nas características das atividades analisadas, a função jurisdicional é aquela voltada ao julgamento de conflitos de interesse, mediante a aplicação do direito positivo. Por sua vez, a função administrativa seria a atividade concreta e prática destinada a satisfazer de forma direta e imediata os interesses da sociedade confiados ao Estado. Com base nesse conceito material de função jurisdicional e de função administrativa, de fato, deveríamos chegar à conclusão de que o impeachment é um ato jurisdicional do Senado. Afinal, o art. 52, I e II, da Constituição faz menção às palavras “processar e julgar”. A consequência disso residiria na impossibilidade de o Poder Judiciário rever esses atos, seja sob o ponto de vista formal, seja sob o ponto de vista material. O Prof. José Afonso da Silva, em seu Curso de direito constitucional positivo, citando o ex-Ministro Paulo Brossard, parece seguir a linha da impossibilidade de revisão do impeachment pelo Poder Judiciário.

Entretanto, o critério material apresenta muitos inconvenientes. Ao se seguir essa posição, o julgamento das contas dos administradores pelos Tribunais de Contas (art. 71, I, da Constituição) também seria função jurisdicional (aliás, alguns autores, coerentes com a utilização do critério material, defendem essa linha). Mas há outros: o julgamento de um ato de concentração pelo CADE seria jurisdicional; o julgamento de um recurso administrativo numa licitação também o seria; o julgamento pela ANTT de um conflito entre usuários e concessionários de transporte ferroviário também. Usei a palavra “julgamento” propositalmente de forma repetida para destacar que esse é o elemento material determinante para a conceituação da função jurisdicional. Mas, a prática do direito administrativo mostra – e quanto a isso não há dúvidas – de que esses atos citados aqui são todos reputados como administrativos, submetendo-se, portanto, ao controle do Poder Judiciário.

Como se pode perceber, pelos inconvenientes acima indicados (e outros poderiam ter sido citados, inclusive os concernentes à definição de função legislativa), o critério material não é útil e deve ser afastado.

3.2. O critério formal e a impossibilidade de o impeachment ser ato jurisdicional. Em vista disso, há os defensores do critério formal, sendo o maior expoente dessa linha, o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello. Eu também me filio a esse entendimento, ainda que com leves divergências deste ilustre Professor. O critério formal deixa de lado as características intrínsecas da atividade e procura identificar a diferença de regime jurídico existente entre as funções. E isso demanda uma análise do direito positivo de cada Estado. 

No referido artigo de 2008, defendi que a função jurisdicional é aquela em que o Poder Judiciário (e somente ele) edita atos jurídicos com o atributo da definitividade. Os dois elementos definitórios formais são: Poder Judiciário e definitividade.

No direito brasileiro, apenas o Poder Judiciário exerce função jurisdicional. Isso fica claro ao se ler o art. 5º, XXXV, da Constituição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (grifei). Note-se que se trata de dispositivo de direito fundamental. E, como se costuma (corretamente) sustentar, à sua interpretação deve ser dada a máxima eficácia. Assim, pela Constituição, não há lesão ou ameaça de lesão que possa escapar à apreciação do Poder Judiciário. É essa a sua função típica.

Além disso, apenas as decisões do Poder Judiciário são definitivas (alerto que estou deixando em suspenso o problema da arbitragem, porque ele não é determinante aqui). Há quem assevere que apenas as decisões judiciais são dotadas do efeito da “coisa julgada”. Embora isso esteja correto, fato é que nem todas as decisões judiciais possuem esse efeito. Não há coisa julgada em sentenças cautelares, por exemplo. Mas a “coisa julgada” é o grau máximo de uma característica das decisões jurisdicionais: a sua definitividade, ou seja, a imunização dos efeitos dos atos já realizados. E a sua desconstituição somente ocorrerá pelo próprio Poder Judiciário e basicamente no âmbito do mesmo processo, nos termos do direito processual.

A partir disso, parece-me claro que o impeachment não é um ato jurisdicional do Poder Legislativo. Isso porque a Constituição foi clara ao prescrever que nenhuma lesão ou ameaça de lesão será subtraída da apreciação do Poder Judiciário. Somente este órgão exerce função jurisdicional.

3.3. A função administrativa sob a perspectiva formal: características relevantes para a análise do ato de impeachment. Mas, se o impedimento não é ato praticado no exercício de função jurisdicional, o que ele é? A reposta é a seguinte: ato praticado no exercício de função administrativa.

3.3.1. Características da função administrativa. Função administrativa é a atividade em que o Estado, ou quem lhe faça as vezes (ex.: concessionários, notários etc.), emite — no seio de uma estrutura e regime hierárquicos — atos jurídicos complementares à lei e, excepcionalmente e em caráter vinculado, à Constituição, os quais estão sujeitos a controle de juridicidade pelo Poder Judiciário. Desse conceito, destaco dois elementos, determinantes aqui: submissão à lei e controle de juridicidade pelo Poder Judiciário.

3.3.2. O princípio da legalidade. A submissão à legalidade é a característica mais marcante da função administrativa, não apenas no Brasil. O princípio da legalidade (cujo sentido se extrai do art. 5º, II, art. 37, caput, e art. 84, IV, da Constituição) consiste no dever da Administração (órgãos e entidades vinculados ao Poder Executivo e demais órgãos inseridos na estrutura administrativa do Poder Legislativo, Poder Judiciário, Tribunais de Contas e Ministério Público) de atuar em conformidade (formal e material) com as normas jurídicas veiculadas por meio de lei (ou melhor, ato legislativo, cujas modalidades estão previstas no art. 59, II a VII, da Constituição). Assim, os atos jurídicos que lhe seguirem não poderão ultrapassar os limites traçados pelas normas introduzidas por atos legislativos.

Vale um esclarecimento: as normas introduzidas pela lei (ou melhor, pelos atos legislativos) são o resultado de uma atividade interpretativa que já deverá levar em consideração as demais normas do sistema, em especial, a Constituição. Toda intepretação da lei deverá ser conforme à Constituição.

É importante lembrar que os atos administrativos – que se fundam diretamente nas normas legais (introduzidas por atos legislativos) – podem ser “vinculados” ou “discricionários” (em verdade, é o exercício da competência para a sua edição que é vinculada ou discricionária).

No primeiro caso, não há espaço de apreciação subjetiva do administrador público; a produção e o conteúdo desse ato deverão ser exatamente aqueles previstos nas normas legais. É o que ocorre, por exemplo, no caso de demissão de servidor público com base na Lei 8.112/1990. O ato de demissão é uma sanção administrativa decorrente da prática de determinadas infrações previstas no art. 132 da referida Lei. E o seu conteúdo também está determinado: a retirada compulsória do servidor infrator dos quadros da Administração.

O ato será discricionário se houver algum espaço de escolha do sujeito competente para praticar o ato. Esse espaço de escolha subjetiva (chamado de “conveniência” e “oportunidade”), também chamado de “mérito do ato”, existirá se assim previsto nas normas legais e em vista das circunstâncias do caso concreto. Assim, observadas as normas legais e diante da necessidade administrativa concreta, usualmente remanesce ao administrador público um espaço para definir as condições para uma contratação administrativa. Por isso é que se diz que o edital de licitação (que estabelece todas essas condições, inclusive em seus anexos) é um ato discricionário.

A principal utilidade da distinção de atos vinculados e discricionários reside no controle. Atos vinculados são totalmente sindicáveis pelo Poder Judiciário, seja quanto à forma, seja quanto ao conteúdo. Por sua vez, os atos discricionários não são passíveis de sindicabilidade pelo Poder Judiciário quanto ao mérito do ato. Isto é, aquele aspecto de escolha subjetiva (deixado pelas normas legais e remanescente no caso concreto) não pode ser modificado pelo Poder Judiciário. Apenas aspectos vinculados do ato discricionário podem ser revistos pelo órgão judicial. Por isso, na verdade, o correto seria dizer que o ato discricionário também é passível de controle judicial, salvo quanto ao seu mérito.   

Em suma, todo ato administrativo deverá ter fundamento em normas legais. Estas, por sua vez, terão fundamento direto na Constituição (aliás, essa é a característica marcante da função legislativa; os atos legislativos inovam em caráter originário). Assim, sem ato legislativo, não é possível juridicamente praticar o ato administrativo; se isso acontecer (e isso ocorre com os “regulamentos autônomos” no direito brasileiro), deverão ser declarados inconstitucionais por ausência de fundamento em lei. Se houver lei, mas o ato administrativo ultrapassar os seus limites, o ato será ilegal.  

Note-se que, na definição acima, fiz menção ao fato de que há atos administrativos que podem ser fundados diretamente na Constituição. E, nesse caso, esses atos serão atos de natureza vinculada. Convém exemplificar: vamos supor que não exista qualquer lei (ordinária ou complementar) dispondo sobre a aposentadoria compulsória dos servidores públicos. Há apenas o art. 40, § 1º, II, da Constituição, que prevê a idade de 70 e 75 anos, a depender da hipótese. Nesse caso, se um servidor do Poder Executivo atingir 70 anos de idade, mesmo diante da ausência de lei, a autoridade administrativa competente deverá aposentá-lo compulsoriamente com base direta no art. 40, § 1º, II. Esses casos de atos administrativos vinculados com base em norma constitucional são atos administrativos. A questão será diferente se houver espaço de discricionariedade: aqui, estará em pauta ou um ato legislativo (isto é, ato praticado no exercício de função legislativa) ou ato político (ou de governo), isto é, ato praticado no exercício da função política (ou de governo) – tal como a declaração de estado de sítio.

3.3.3. O controle de juridicidade pelo Poder Judiciário. A segunda característica da função administrativa que gostaria de destacar aqui é a possibilidade de controle de juridicidade pelo Poder Judiciário. No caso do controle do Poder Judiciário sobre a função legislativa, o parâmetro do controle será sempre e somente a Constituição. Por isso, o controle judicial sobre a função legislativa é sempre um controle de constitucionalidade.

No caso do controle judicial sobre a Administração Pública, o parâmetro do controle será sempre o ato legislativo ou, a depender do caso, a própria Constituição. Assim, o parâmetro de controle do ato de demissão será, principalmente, a Lei 8.112/1990; no caso de ato administrativo fundado em “regulamento autônomo”, a própria Constituição. Por vezes, o Poder Judiciário reputa que o ato administrativo é fundado em ato legislativo inconstitucional e, por isso, ele é inválido. Isso também ocorre com frequência.

Por ser possível o controle com base em ato legislativo e na Constituição, o controle sobre a Administração Pública foi aqui denominado de “controle de juridicidade pelo Poder Judiciário”.

4.O impeachment como ato administrativo. Com base no que foi exposto acima, agora fica mais claro porque afirmei (no título deste artigo e no trabalho publicado em 2008, muito antes da crise atual) ser o impeachment é um ato administrativo.

4.1. A necessidade de lei para a definição dos crimes de responsabilidade. Em primeiro lugar, o impeachment é ato que deverá observar o princípio da legalidade. O art. 85, caput, da Constituição estabelece que são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (i) a existência da União; (ii) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; (iii) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; (iv) a segurança interna do País; (v) a probidade na Administração; (vi) a lei orçamentária; (vii) o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Por sua vez, o parágrafo único do mesmo art. 85 deixa claro que os crimes de responsabilidade demandam definição legal. Convém transcrever o dispositivo: “Esses crimes [de responsabilidade] serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento” (grifamos).

Portanto, a partir da leitura da Constituição, é possível chegar à seguinte conclusão: caberá ao Poder Legislativo – a partir dos parâmetros fixados no caput do art. 85 (atentado contra existência da União, livre exercício dos Poderes etc.) – estabelecer quais são as infrações passíveis de responsabilização por crime de responsabilidade. Se não houver lei ordinária estabelecendo as condutas tipificadas como crime de responsabilidade, não há que se falar em impeachment.

Aliás, ainda que não houvesse o parágrafo único do art. 85, seria difícil chegar a outra conclusão. Isso porque o art. 5º fixa um regime jurídico para a aplicação de sanções (penais e administrativas) pelo Poder Público. Há a necessidade de lei prévia para a definição das condutas infratoras (do que decorre a tipicidade das infrações), devido processo legal, motivação, culpabilidade etc. Trata-se do regime de direito público sancionador, do qual são espécies o regime de direito penal e o regime de direito administrativo sancionador.

Contudo, no caso da definição dos crimes de responsabilidade, há lei ordinária. Trata-se da Lei 1.079/1950. Se essa lei atende (ou não) a todos os parâmetros constitucionais é outro problema. Não é essa a análise a ser feita aqui. Fato é que existe uma lei, a qual define os crimes de responsabilidade.

Como se pode perceber, o impeachment é um ato sujeito integralmente ao princípio da legalidade. Sem a Lei 1.079/1950 (ou qualquer outra), seria juridicamente impossível sancionar o Presidente da República e o Vice pela prática de crime de responsabilidade. Pela Constituição, é competência do Congresso Nacional dizer quando certas condutas ofendem ou não os valores consagrados nos incisos do art. 85.

4.2. O controle de juridicidade pelo Poder Judiciário sobre o ato de impeachment. Além disso, a partir da definição dada acima de função jurisdicional, não há dúvida de que o impeachment está sujeito a controle de juridicidade pelo Poder Judiciário. Ora, nos termos do art. 5º, XXXV, nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito será subtraída da apreciação do Poder Judiciário. Nem mesmo a lei poderá fazer isso. Se isso é verdade, então não há razão para excluir o ato de impeachment desse controle.

Portanto, se o Senado Federal decidir pelo impeachment de uma das autoridades previstas no art. 52, I e II, da Lei Maior, caberá ao STF adotar uma das seguintes decisões:

(i)              declarar a validade do ato de impeachment pelo Senado, por não haver violação à ordem jurídica;

(ii)             declarar o ato de impeachment inválido, pelos seguintes fundamentos possíveis:

(a)  invalidade formal;

(b)  invalidade material:

(b.1.)   por não configuração de crime de responsabilidade definido pela Lei 1.079/1950;

(b.2)    por não configuração do crime de responsabilidade, em razão da inconstitucionalidade da previsão da Lei 1.079/1950, a qual serviu de fundamento para a decisão do Senado.

(b.2)    ainda que configurado o crime de responsabilidade com base na Lei 1.079/1950, por ter havido a imposição pelo Senado de sanção além dos limites juridicamente admitidos (ex.: inabilitação da função pública por prazo superior a 8 anos, ou aplicação de multa).

4.3. O impeachment é uma manifestação da função administrativa. Como se pode perceber, uma vez adotadas as premissas aqui fixadas (isto é, os conceitos de função jurisdicional e de função administrativa), parece-me difícil adotar outra conclusão quanto à natureza do impeachment. Este é um ato jurídico praticado no exercício de função administrativa. Por conseguinte, trata-se de um ato administrativo.

5.Qual a relevância dessa conclusão? A pergunta que alguém pode fazer aqui é a seguinte: qual é a utilidade em se designar o impeachment como ato administrativo?

Em primeiro lugar, há uma clara diferença de regime jurídico (afinal, esse é o critério que distingue as funções estatais aqui adotado). O ato é infralegal e sujeito a controle de juridicidade pelo Poder Judiciário. Mas há outros aspectos que merecem ser destacados.

5.1. O impeachment pertence a qual categoria de ato administrativo? Por ser um ato administrativo, o impeachment se enquadra em determinadas categorias dentro da teoria geral dos atos administrativos.

5.1.1. Impeachment: ato restritivo sancionador. Em primeiro lugar, não há qualquer dúvida de que o impeachment é um ato restritivo da esfera jurídica, e não ampliativo. E, dentro da categoria dos atos restritivos, o impeachment consiste num ato administrativo sancionador. Trata-se de ato administrativo sancionador porque as consequências dele decorrentes (perda do cargo e inabilitação da função pública por 8 anos) são respostas do ordenamento jurídico à prática de certas infrações administrativas: os crimes de responsabilidade.

Afirmar que um ato administrativo é “sancionador” significa que, a este ato, é aplicável todo o regime de direito administrativo sancionador. Incidem os princípios da tipicidade, anterioridade, culpabilidade, dentre outros. Neste ponto, remeto o leitor à doutrina que, com grande qualidade, tem tratado do tema no Brasil. A título de exemplo, cite-se: Daniel Ferreira, Rafael Munhoz de Mello, Régis Fernandes de Oliveira, Fábio Medina Osório e Heraldo Garcia Vitta.

5.1.2. Impeachment: ato vinculado. Até mesmo por se tratar de ato administrativo sancionador, o ato é praticado no exercício de competência vinculada.

A situação é, sob o ponto de vista jurídico, praticamente idêntica à demissão de um servidor público. Em primeiro lugar, é preciso apurar se houve ou não infração. Dada a potencial infração, deverá ser instaurado um processo administrativo disciplinar. Após o devido processo administrativo, a autoridade competente emitirá a decisão pela demissão (ou não). A parte poderá recorrer para a autoridade superior, ou, se não houver, apresentar um pedido de reconsideração.

Todos esses atos – que culminam na decisão final de demissão – são vinculados. Não há espaço para uma escolha do agente público. Se há infração, deverá ser aplicada a sanção. Quanto aos atos administrativos sancionadores, poderá haver algum espaço de discrição apenas quanto à dosimetria da sanção; mas isso só ocorre quando, por exemplo, a lei prescreve que a sanção será de 2 a 4 anos. Isso não ocorre na demissão do servidor público, tampouco no impeachment.

De igual modo, todos os atos relativos ao processo de impeachment devem ser vinculados. Não há que se falar em espaço de escolha pelos membros do Poder Legislativo.

5.2. A extensão do controle judicial. A consequência dessa conclusão é a de que o Poder Judiciário pode controlar todos os aspectos de uma decisão relativa ao processo de impeachment. A instauração do processo, a sua fase instrutória e, principalmente, a decisão final do Senado. Não há, aqui, mérito do ato. O Senado não deveria decidir com base em critérios de conveniência ou oportunidade política, porque isso inexiste aqui. Ou as autoridades do art. 52, I e II, da Constituição praticaram o crime de responsabilidade e, por consequência, devem sofrer as consequências previstas no art. 52, parágrafo único, ou não praticaram o crime de responsabilidade. E, em qualquer situação, caberá ao Senado motivar adequadamente essa decisão. 

Por isso, não é possível concordar com a decisão do STF no âmbito do MS 20.941/DF. Aqui, o STF decidiu (por maioria) que, embora a autorização para a sua instauração e a decisão final sejam medidas de natureza predominantemente política – cujo mérito é insuscetível de controle judicial – a regularidade processual está sim sujeita a controle.

Ora, dentro dos pressupostos aqui defendidos (e não foram esses os constantes na decisão judicial citada), é logicamente impossível chegar a essa conclusão. Do mesmo modo que o Poder Judiciário pode determinar a reintegração de um servidor demitido ilegalmente, ele também pode determinar a reintegração da autoridade declarada impedida pelo Senado (caso, evidentemente, essa decisão seja inválida). A extensão do controle do ato de impeachment, portanto, é ampla, porquanto se trata de ato administrativo sancionador e vinculado.

6.A natureza política do impeachment. Por fim, um último comentário. O senso comum – como já destacado acima – leva à ideia de que o impeachment é um ato político. No entanto, procurei demonstrar que, sob a perspectiva jurídica, o impeachment é um ato administrativo sancionador e vinculado. Ele se assemelha a um ato de demissão (que é uma sanção disciplinar) de servidor público. Essa minha conclusão foge, portanto, desse senso comum da natureza política desse ato e pode gerar algum desconforto.  

Esse tipo de sentimento não é sem sentido. Isso porque, enquanto realidade sociológica, o impeachment possui uma significação política muito mais intensa do que uma demissão de servidor público. Afinal, trata-se de um ato que afasta o Presidente e o Vice-Presidente da República, que foram eleitos pelo povo. Há impeachment em face de outras autoridades, mas o que vem à mente das pessoas é o crime de responsabilidade do Presidente e do Vice (principalmente neste momento político).

Por isso o desconforto. Mas, repare que o impeachment possui – em vista dessa significação política diferenciada – um regime jurídico relativamente diferenciado em relação à demissão de servidor público. E essa diferença reside justamente no órgão competente para decidir: o Poder Legislativo. Em primeiro lugar, a Câmara, formada pelos representantes do povo, analisa se os requisitos de admissibilidade estão presentes. Depois, o Senado – formado pelos representantes dos Estados, também eleitos – processam e julgam.

Como se pode perceber, o exame de admissibilidade e o julgamento são feitos por órgãos colegiados cujos membros também foram escolhidos pelo voto popular. E, até mesmo por isso, são órgãos colegiados cujos agentes atuam, no seu dia a dia, na arena política. Esse é o campo natural de ação desses agentes e é como eles raciocinam cotidianamente. É difícil imaginar, por exemplo, um deputado federal tecendo considerações jurídicas profundas na tribuna da Câmara. Aliás, dada a composição heterogênea das Casas Legislativas, dificilmente isso ocorrerá.

Porém, se isso é verdadeiro enquanto realidade político-sociológica, sob a perspectiva jurídica, o cenário é outro. É próprio do regime instituído pela Constituição de 1988 que o impeachment seja realizado e controlado com base nas normas de direito público, em especial do direito público sancionador. Se o Poder Legislativo atuará ou não dessa forma, isso é outro problema. Certamente, sua atuação indevida estará sujeita a censura pelo Poder Judiciário. E, desse órgão (em especial do STF), espera-se uma atuação dentro dos limites da ordem jurídica, e não como órgão político. Espera-se sempre que os julgadores atuem como magistrados, e não como parlamentares. E isso significa não ceder aos seus desejos políticos pessoais (o que toda pessoa tem), mas atuar com base naquilo que determina a ordem jurídica. Afinal, esse é o espírito do princípio do Estado de Direito.



Por André Luiz Freire (SP)

Veja também