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A PEC dos Tribunais de Contas e a proposta de unificação de regras processuais

ANO 2016 NUM 234
Angélica Petian (SP)
Especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP. Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Doutora em Direito pela PUC-SP. Professora de Direito Administrativo. Membro do Instituto Paulista de Direito Administrativo - IDAP. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura - IBEJI. Advogada na Rubens Naves Santos Jr. Advogados.


15/08/2016 | 4698 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

No dia 13 de julho, data em que se realizou a derradeira sessão deliberativa do Senado, antes do recesso parlamentar, o Senador Ricardo Ferraço apresentou a Proposta de Emenda à Constituição n.º 40/2016, que objetiva acrescentar disposições acerca da organização e atuação dos Tribunais de Contas.

Os Tribunais de Contas, instituições destinadas ao exercício do controle externo, que têm a missão constitucional de zelar pela legalidade, legitimidade e economicidade dos atos realizados por quem maneje recursos públicos, têm sido protagonistas de importantes decisões, cuja efetividade tem impactado ações governamentais.

É por todos sabido que o exercício do controle dos atos praticados pelos Poderes do Estado é um dos pilares do Estado de Direito. Assim, dentro do sistema que se convencionou chamar de checks and balances, o papel do controle é limitar o exercício do poder, para que se mantenha submisso à lei.

A inserção do dever-poder de controle reflete um enorme avanço do Estado, que passa a não só ditar o Direito, mas também a se submeter a ele. É bem verdade que na origem do controle externo a noção de legalidade era bem diferente da que se tem hoje. A legalidade era vista sob um aspecto meramente formal. A evolução do Estado de Direito e a intensa produção científica sobre o tema revelaram a importância de se exercer um controle voltado não apenas aos aspectos formais da ação administrativa, mas também ao conteúdo da mesma.

Por esta razão, o domínio do princípio da legalidade foi fortemente ampliado, passando a exigir do administrador uma conduta não apenas em consonância com a lei, mas com o Direito, como tão bem prescrito pelo artigo 2º, parágrafo único, II, da Lei federal n.º 9.784/99.

O controle externo vem, então, desempenhando um papel duplamente relevante, primeiro, porque coibi atividades que desbordam dos limites da lei ou não satisfaçam as finalidades por ela impostas e, em segundo lugar, porque exerce função pedagógica ou orientadora, imbuído na missão de prevenir a prática de atividades irregulares.

Se, antes os Tribunais de Contas eram encarados como instituições auxiliares do Poder Legislativo, destinadas a subsidiar o controle realizado pelo Parlamento, hoje, ampliaram seu espectro de atuação, haurindo suas competências diretamente do texto constitucional.

Assim, não obstante as atribuições das Cortes de Contas não tenham sido alteradas pela Lei Maior, os próprios Tribunais de Contas têm lançado mão de novas atribuições, por meio de atos normativos próprios, muito especialmente seus Regimentos Internos.

Basta uma breve análise do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União para constatar que aquela Corte está autorizada a exercer amplo poder geral de cautela (artigos 273 a 276), bem como a realizar controle incidental de constitucionalidade de lei ou ato normativo (artigo 16, VI).

Para exercer as competências que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal, que desaguam em decisões imperativas e exigíveis, os Tribunais de Contas devem obediência à cláusula do devido processo legal, o que se dá por meio da instauração e instrução de processo administrativo que, dentre outros direitos, garanta aos controlados o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa, além de observar a duração razoável do processo.

O exercício do controle, como típica manifestação da função administrativa, deve ser feita debaixo da lei, com cumprimento das formalidades essenciais e garantia dos direitos daqueles que terão de cumprir a futura decisão.

Não obstante essas afirmações parecem decorrer naturalmente do texto constitucional, especialmente da cláusula do devido processo legal em seu sentido adjetivo, ainda nos dias de hoje é possível encontrar nas Cortes de Contas certa resistência em observar rigorosamente um rito processual, que sirva de garantia tanto dos direitos do controlado, como da validade da decisão.

Essa e outras críticas dirigidas aos Tribunais de Contas, que passam pela forma de escolha dos seus componentes, o excesso de cargos em comissão, a ausência de controle de seus atos e a morosidade no julgamento dos processos, levaram à realização de inúmeras propostas de leis dispondo sobre essas instituições, incluindo diversas propostas de emendas à Constituição.

A mais recente delas, de nº 40, de 2016, foi formatada pela Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil e pela Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União.

Segundo as associações que arquitetaram a propositura de alteração do texto constitucional, o objetivo é estabelecer um padrão mínimo de atuação para os 34 Tribunais de Contas do Brasil.

Dentre as alterações sugeridas, uma diz respeito especificamente ao processo de controle, sua instauração, instrução e decisão.

Trata-se da previsão do código nacional de processo de controle externo, a ser observado pelos 34 Tribunais de Contas, padronizando os procedimentos a serem realizados, no exercício de suas atribuições.

A inexistência de lei geral que discipline o exercício do controle externo, de fato, permite que os diversos Tribunais de Contas, em âmbito federal, estadual e municipal, estabeleçam, cada qual, procedimentos autônomos para tramitação dos processos de sua competência, procedimentos esses que nem sempre se curvam ao império dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Há Tribunais mais atuantes que se arvoram de competências, inserindo nos respectivos regimentos internos e atos normativos por eles expedidos, ações que não são realizados por outros Tribunais de igual natureza.

Essa falta de uniformização dos processos realizados pelos Tribunais de Contas dificulta sobremaneira a atuação perante eles. Os advogados que frequentemente atuam junto às Cortes de Contas bem poderão corroborar essa informação.

Parece, pois que a edição de um código nacional de processo de controle externo seria bem-vinda, não houvesse óbice imposto pela própria Constituição Federal.

Tenho defendido, em diversas oportunidades, que os processos instaurados pelos Tribunais de Contas são típicos processos administrativos, ou seja, espécie desse gênero e por isso o seu regime jurídico é conformado pelos princípios do gênero.

Nesses termos, a edição de uma lei que estabelece normas padronizadas para todos os Tribunais de Contas, colocando sob a mesma plêiade de regras, processos de âmbito federal, estadual e municipal parece, a princípio, ofender a Constituição da República.

Entendemos que os entes federados têm competência concorrente para legislar sobre processo administrativo. A nosso ver, essa assertiva encontra fundamento no fato de a matéria em comento constituir interesse próprio de cada unidade, impedindo a edição de legislação nacional, sob pena de ofensa ao princípio federativo. De acordo com esse princípio, apenas a própria Constituição da República pode excepcionar a competência legislativa dos Estados-membros e Municípios, por meio da reserva de competência privativa.

Não encontramos dispositivo constitucional que limite a competência para dispor sobre processo administrativo à União, razão pela qual não nos convencemos da constitucionalidade de um código nacional de processo de controle externo, que imponha procedimentos a todas as Cortes de Contas.

Não olvidamos a existência de um conteúdo mínimo a ser observado pelas leis infraconstitucionais de processo administrativo editadas pelos diversos entes federados. Aliás já anotamos em obra monográfica sobre o tema que há uma pauta constitucional da matéria, a qual fixa os princípios constitucionais que presidem o instituto.

Assim, nenhuma lei, seja de que âmbito for, pode disciplinar o processo administrativo sem dar estrito cumprimento aos ditames do devido processo legal, publicidade, eficiência, impessoalidade e duração razoável do processo, entre outros, sob pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade. Mas poderá, em prestígio à autonomia dos entes federados, regular de forma diversa das demais leis o desenrolar dos processos administrativos, quais serão suas fases, os prazos para executá-las, quais serão os recursos cabíveis, dentre outros pontos.

Tudo que se disse aqui sobre competência para legislar sobre processo administrativo, como gênero, se aplica às suas espécies, razão pela qual a pretendida lei processual unificada para os Tribunais de Contas nada mais poderia do que estabelecer normais gerais, desdobramentos que objetivam densificar os princípios constitucionais do processo de controle, sem adentrar em especificidades de rito.



Por Angélica Petian (SP)

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