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A Renovação do Prazo da Concessão em Tempos de Crise

ANO 2016 NUM 117
Bernardo Strobel Guimarães (PR)
Doutor em Direito do Estado pela FADUSP. Professor da PUCPR. Advogado em Curitiba.


23/03/2016 | 6040 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

O cenário brasileiro para os projetos de infraestrutura é delicado. Por um lado, permanece a necessidade de investir no setor para resolver problemas estruturais da economia brasileira. Por outro, os recursos para tal são, neste instante, escassos. Não bastasse o cenário de um PIB recessivo e o desequilíbrio das contas públicas, os principais grupos empresariais do país enfrentam problemas graves com a Justiça. Mesmo o BNDES outrora grande fomentador do mercado de concessões não tem mais a mesma capacidade de investir. Projetos licitados que contavam com recursos do BNDES têm tido dificuldade para receber os valores esperados. Nem mesmo os investidores estrangeiros parecem ter apetite para investir aqui (não ao menos nos níveis demandados). Não bastasse o cenário ser hostil à participação dos investidores diretamente, o rebaixamento do nosso rating afugenta os capitais estrangeiros.

Nesse grave cenário, uma das alternativas cogitadas pelo Governo para garantir recursos no setor de infraestrutura é, precisamente, repactuar os contratos já celebrados garantindo novos investimentos em troca da extensão do prazo assinalado. O modelo vem sendo praticado no setor de rodovias e elétrico. Algumas concessões já tiveram seu prazo renovado e outras estão em fase de estudo. A adoção dessa técnica permite, por um lado garantir investimentos em prazo curto por intermédio das concessionária já existentes e, por outro, repactuar as taxas de retorno antigas de modo a adequá-las às atuais premissas econômicas. Cuida-se, portanto de estipular a repactuação do ajuste originário em novas bases, com vistas a garantir recursos em setores chaves de nossa de nossa economia.

Veja-se, em que pese as vantagens para os envolvidos, o modelo deve ser analisado sob a perspectiva jurídica, notadamente tendo em vista que a regra geral para a celebração de contratos de concessão é a licitação. E tal procedimento promove quando menos dois valores: a isonomia no acesso das oportunidades contratuais junto ao Estado e a seleção da proposta mais vantajosa, a partir do critério de seleção eleito como adequado à promoção do interesse público.

Em primeiro lugar, registra-se que tanto a Constituição (art. 175, I) quanto a Lei de Concessões (8.987/95) permitem a prorrogação contratual, sendo que esta inclusive prevê como essencial aos contratos de concessão cláusula especificando suas condições de prorrogação (art. 23, XII). Portanto, nada obstante a licitação ser a regra há fundamentos normativos expressos a autorizar a renovação do prazo contratual. Logo, a tentativa de negar, pura e simplesmente, a possibilidade de renovação implica argumentar contra a literalidade dos textos legais.

Disto decorre a visão habitual que indica que a chave de compreensão da questão é o contrato. Usa-se dizer que se a repactuação não estiver prevista de modo expresso no contrato, ela é inviável. O requisito parece excessivo, todavia.

Como se sabe, o contrato administrativo é concebido, precisamente, para impedir que as disposições contratuais sejam limitadoras das competências administrativas orientadas ao atendimento de finalidades públicas. Daí porque o contrato administrativo ser mutável por excelência (jus variandi), sendo a concessão exemplo mais típico desse ideia. Concessão é uma relação de longo prazo em que o instrumento contratual precisa ser sempre calibrado para se manter aderente ao interesse público. Assim, a capacidade de o contrato limitar a satisfação concreta de um interesse público é, propositalmente, restrita. Com efeito, poucas coisas são verdadeiramente imutáveis numa relação contratual de longo prazo.

Por trás da afirmação desse requisito parece estar a premissa de que o prazo do contrato é elemento caracterizador do seu objeto e, portanto, não caberia a alteração futura, sob pena de desnaturar o vínculo original. O raciocínio parece correto, mas contém um evidente non sequitur. Isso porque embora o tempo de vigência seja, de fato, elemento definidor do objeto do contrato, a prorrogação não se confunde com o prazo ele mesmo. São coisas parecidas, mas distintas. O prazo é, em verdade, objeto do contrato, pois ele é o balizador da equação econômico-financeira (e esse é o elemento estável da contratação). Os investimentos realizados e o resultado a ser percebido são, portanto, avaliados numa perspectiva definida de tempo. Já a prorrogação é elemento alheio a essa realidade, que nela não se integra. Cuida-se de uma possibilidade futura e, por tal razão, não constitui o próprio objeto contratual entendido como o corpo de obrigações recíprocas das partes.

Aliás, se assim não fosse, o projeto deveria ser sempre modelado tomando-se em consideração o prazo já com a renovação prevista. E isso equivaleria, à toda evidência, a dizer que o prazo não comportaria extensão! O paradoxo demonstra o ponto: dizer que a renovação integra o objeto do contrato é negar a ela qualquer utilidade ou autonomia. Em outras palavras: é da natureza da renovação não constituir o que se entende por objeto do contrato, exatamente, por ela ser futura e incerta. Cuida-se de possibilitar a juízo da Administração (usualmente discricionário) a de opção ao final do contrato pela renovação do prazo, podendo igualmente o particular aderir ou não a tal deliberação.

Nesta perspectiva, a questão da renovação do prazo contratual se mostra como uma opção a ser exercida pela Administração dentro de um contexto completamente desconhecido por ensejo da formação do contrato. Logo, a capacidade de o contrato balizar a renovação é limitada, devendo ele investir em criar procedimentos para o exercício dessa opção. Assim, segundo pensamos, o juízo da Administração sobre a renovação não está restrito ao que dispõe o contrato, notadamente quando houver fatos novos desconhecidos no momento da celebração do contrato (e costumeiramente os há). Pretender que o contrato possa proibir, no momento de sua celebração, uma deliberação que será tomada no futuro é desconhecer que os vínculos com a Administração são concebidos como meio de atender o fim público. Note-se, inclusive, que nada obstaria que a possibilidade de renovar o contrato fosse inserida pela via de aditivo no contrato. Afinal, o aditivo possui o mesmo status normativo que o contrato original e poderia promover a inovação no melhor estilo lex posterior derrogat priori.

Em verdade, como a prorrogação tem expressa previsão legal ela integra o arsenal de medidas à disposição da Administração Pública para manter a relação alinhada com o que se entende por interesse público, hic et nunc. Dito de outro modo, cuida-se de uma competência que se lastreia em lei e sua aplicação deve ser analisada num contexto concreto acerca do interesse público. Se ela estiver integrada já ao contrato, melhor. Contudo, se não houver previsão contratual nada obsta que o procedimento seja adotado, pois as competências da Administração na qualidade de contratante decorrem da lei, e não do contrato. Valer-se do contrato para limitar prerrogativas que a lei reconhece à Administração parece subverter a própria lógica estatutária do contrato administrativo.

Esclarecidos os aspectos vistos acima, cumpre analisar o ponto verdadeiramente sensível em matéria de prorrogação. É que embora haja a competência de renovar o prazo da concessão, o exercício concreto dessa atribuição deve se dar observando certas circunstâncias concretas. Afinal, como já dizia o Apóstolo Paulo "Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm". O ponto sensível é, precisamente, compreender as condições materiais que conduzem à possibilidade de prorrogar. E aqui as questões são mais delicadas, pois se sai do plano do direito e adentra-se à realidade. Com efeito, a fundamentação da renovação deve se dar a partir de argumentos idôneos e não a partir de invocações retóricas do interesse da Administração – que em nada se confunde com o real interesse público.

A chave para compreender o raciocínio é haver condições efetivas que indiquem objetivamente que a renovação será capaz de gerar condições mais vantajosas do que as que seriam encontradas na realização de uma licitação. Isso implica estudar a sério, de modo transparente e sob o escrutínio dos órgãos de controle o momento atual do mercado e a capacidade de os seus players participarem da licitação, contrastada com a efetiva possibilidade de o contratado que detém o vínculo a ser prorrogado transferir em favor do projeto concessionário a eficiência adquirida na execução daquele contrato. Em termos teóricos, a fundamentação deve investigar as circunstâncias ora indicadas e responder de modo favorável que os benefícios oferecidos pelo atual concessionário são superiores aos que se esperam obter numa licitação. E não se pense que licitar projetos de infraestrutura é fácil. A experiência brasileira é cheia de exemplos de licitações que deram muito errado. A par dos custos para tal serem vultosos, muitas vezes erros na concepção dos projetos acarretam severas perdas para a Administração. Por outro lado, muitas vezes a Administração torna-se refém dos licitantes e pode vir a ser premida a celebrar maus contratos. Com isso não se quer significar que a licitação é per se ruim, mas sim que ela também apresenta riscos a serem ponderados. Deste modo, o que se põe a necessidade de ponderar de modo efetivo os dois cenários e eleger qual é o que melhor atende às expectativas da Administração. Não há resposta correta a priori.

Embora haja a tendência no atual cenário econômico de a prorrogação ser vantajosa, fato é que cada caso deve ser objeto de uma validação específica. Em regra, as licitações realizadas anteriormente e as PMIs em curso são capazes de dotar a Administração de um benchmarking sobre o mercado, gerando modelos a serem superados pelo particular. Com efeito, a uma deve haver um modelo dos ganhos esperados com a licitação referenciados a partir de dados efetivos. A duas, esse modelo deve ser superado pelo particular. Sem critérios comparativos claros, as opções entram no âmbito do decisionismo puro e simples, o que não é dado à Administração. Sem esses elementos, a licitação deve ser prestigiada.

Note-se que estudos efetivos respondem favoravelmente ao duplo teste que se põe às licitações. Por um lado, indicam (com base nos fatos até ali conhecidos) que se está prestigiando a melhor oferta. Por outro, preserva-se a isonomia. Ora, se só o particular já contratado pode oferecer as vantagens buscadas pela Administração, fato é que ele está em situação singular, a excluir a realização do certame.

Em suma, a opção pela renovação demanda uma justificativa tecnicamente sólida que seja capaz de demonstrar que é, de fato, o interesse público que está sendo prestigiado. Sem isso, nada há além de retórica.



Por Bernardo Strobel Guimarães (PR)

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