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Pressupostos interpretativos da Lei nº 13.303/2016: afinal, o que a governança tem a ver com os negócios das Estatais?

ANO 2016 NUM 288
Bernardo Strobel Guimarães (PR)
Doutor em Direito do Estado pela FADUSP. Professor da PUCPR. Advogado em Curitiba.


31/10/2016 | 4031 pessoas já leram esta coluna. | 5 usuário(s) ON-line nesta página

Por mais desacreditada na prática que esteja a summa divisio direito público/direito privado, ela ainda projeta seus efeitos na mentalidade dos juristas. O cacoete de separar o direito nos quadrantes público e privado resiste firme em nossa tradição, mesmo sendo impossível sustentar a existência de elementos estáveis para proceder a essa distinção. Como bem assinalou Charles Eisenmann, respondendo a um texto célebre de Savatier, uma distinção meramente curricular passou a ter um cunho propositivo que jamais, contudo, foi capaz de superar a unidade do fenômeno jurídico. A ideia de que haja um conteúdo axiológico na divisão não corresponde à análise concreta dos institutos.

O exame da nova Lei das Estatais dá renovado testemunho do hábito mental de dividir o direito em caixas estanques com os rótulos “direito público” e “direito privado”. Diz-se isso haja vista a lei conter dois corpos de regras aparentemente dissociados que parecem prestar culto a essa divisão. Com efeito, um rápido lance de olhos nas disposições da Lei faz parecer que ela está dividida em dois campos distintos que não se relacionam de modo substancial. Haveria assim uma parcela da Lei de “direito privado” sucedida por outra “de direito público”. Supõe-se assim que haveria duas leis numa só, unidas apenas por razões de economia legislativa. Dois espíritos distintos que ocupariam o mesmo corpo.

A Lei começa com a caixa do direito privado, estipulando uma série de preceitos relativos à governança nas estatais. Afinal de contas, estatais são empresas (embora os administrativistas não gostem lá muito disto) e se sujeitam às normas que disciplinam sua dinâmica interna como unidades de produção juridicamente organizadas a partir do conceito de empresa. Assim, do art. 2o ao 28o a Lei se dedica a tratar de uma série de normas que puxam para a racionalidade do “direito privado”. Em grandes linhas, a Lei cuida de estipular uma série de restrições para o exercício do poder de controle público, com vistas a preservar a autonomia decisória das estatais, que devem atuar tendo como foco não uma noção fluída de interesse público, mas sim os estatutos de documentos institucionais da empresa, como fio condutor da administração. Como acontece em toda estrutura empresarial complexa, a administração societária e o controle são cindidos, impondo-se uma dinâmica sofisticada entre os que são titulares do capital e aqueles que agem concretamente para dar substância aos objetivos da empresa. E como sabem os que militam no direito societário, frequentemente o interesse dos controladores e o da empresa não são coincidentes. Mais do que isso, o controle se exerce dentro dos modos e formas previstos nos estatutos. Daí ter a Lei nº 13.303/2016 contemplado uma série de instrumentos que visam a juridicizar o exercício do poder político detido pelo controlador público, exigindo que o funcionamento da sociedade seja pensado a partir dos instrumentos societários correlatos.

Nesse sentido, é nítido o viés da Lei em restringir as manifestações puramente políticas de ingerência na sociedade a partir de critérios de governança. Isso significa que para se legitimarem as deliberações políticas sobre e nas estatais, elas devem ser manifestadas de acordo com os objetivos e formas previstas na Lei e nos estatutos da empresa. Dito de outro modo, a Lei pretende domesticar o poder político, exigindo que ele se exprima de modo aderente aos objetivos da sociedade, que já não podem mais ser tomados como o simples interesse do titular do controle. Assim, por mais que a Administração encarne o interesse público, fato é que já não se pode mais promover atos voluntariosos no exercício do poder de controle das estatais. Elas ganham com a lei uma certa autonomia decorrente dos atos que levaram à sua criação, que deve ser respeitada pelos governantes. Assim, a decisão política deve se exprimir de modo aderente aos objetivos institucionais das estatais. E isto não equivale à vontade dos titulares do Poder Político.

Já na segunda parte, a Lei se ocupa das relações contratuais das estatais. Além de sistematizar modelos contratuais e certos entendimentos que já eram usuais em matéria de estatais (notadamente os que criam maior competição de modo a gerar eficiência), busca reforçar sua capacidade de estruturar negócios estratégicos com empresas privadas. Assim, um dos campos em que houve substancial reforço da autonomia das estatais como entes que agem em regime de mercado diz respeito às hipóteses de contratação direta, notadamente as que se estruturam ao influxo daquilo que a Lei chama de “oportunidades de negócio”. A análise, portanto, da contratação direta na lei das estatais demonstra que houve uma abertura grande para a tendência já verificada na prática de o setor empresarial público estruturar joint ventures com empresas privadas, dotando as relações contratuais das estatais de uma complexidade que vai muito além da simplicidade conceitual do DL 200/67. A partir da Lei, fica clara que a dinâmica de mercado das empresas estatais pode conduzir à celebração de parcerias estratégicas de diversas ordens, o que reforça sua posição como unidades econômicas autônomas que agem empresarialmente em setores estratégicos com vistas a gerar os resultados que justificaram sua própria criação. E antes que isso cause espécie, parece ser exatamente este o sentido da opção constitucional de dotar as estatais de personalidade privada e, mais do que isso, obrigá-las a atuar em regime de mercado, competindo com agentes econômicos privados.

Na sua primeira parte, a Lei é um prato cheio para os estudiosos do direito societário afeitos ao exame das normas referentes ao exercício do poder de dirigir a companhia, assim como à análise da estrutura empresarial. Por sua vez, os que não estão acostumados ao modo de ser do direito privado, tendem a pular essa parte mais árida e irem diretamente para a parte da Lei que cuida das normas de licitação e de contratação, em que estão acostumados a orbitar. Na segunda parte, portanto, parece que a Lei se destina ao exame dos versados nos modos e usos do direito administrativo. E, assim, celebra-se o divórcio entre os diferentes aspectos da Lei. Celebra-se aquele velho cacoete metodológico de pensar o direito a partir da summa divisio. Contudo, o que parece escapar aqui é o fato de ambas as dimensões da Lei serem complementares e inter-relacionadas. Como diria Eros Grau, não se pode interpretar o diploma “em tiras”.

Com efeito, a maior liberdade contratual para haver a estruturação de negócios e o reforço nas regras de governança são faces de uma mesma moeda. Isso porque só pode se conceber maior liberdade para as empresas estruturarem os seus negócios de modo menos regulado se houver a certeza de que a tomada dessas decisões se foca em análises que buscam o bem da sociedade (com a consequente implementação do interesse público). E isto só será possível na justa medida em que as estatais ficarem alheias ao aparelhamento político. Ou seja, o pressuposto da norma é reforçar a autonomia das estatais por meio de regras estritas de governança. Deste modo, pretende-se gerar decisões empresariais que sejam, efetivamente, capazes de buscar, dentro da lógica do funcionamento empresarial, os melhores resultados para a estatal. Assim, é pressuposto estruturante dessa maior liberdade contratual que se verifica no que se refere às parcerias estratégicas, que haja – de fato – autonomia decisória das empresas, garantida por regras de governança capazes de orientar o funcionamento da empresa para a efetiva busca de seus objetivos. Daí porque ser inviável olhar para os diferentes quadrantes da Lei sem perceber sua íntima e indelével conexão.

O problema aqui, como costuma acontecer no Brasil, diz menos respeito à lei do que à sua aderência social. Afinal, nunca podemos nos esquecer de que no Brasil existe uma classificação muito peculiar das leis, que as divide naquelas que “pegam” e naquelas que “não pegam”. Com efeito, cumpre à sociedade e, notadamente, aos órgãos de controle, exigir que se implementem padrões efetivos de governança, sob pena de não apenas se frustrarem os objetivos da nova Lei, mas, especialmente, criar um ambiente pernicioso de relacionamento entre Estado e privados, raiz de muitos de nossos males.



Por Bernardo Strobel Guimarães (PR)

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