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Desafios do Governo Temer para Recuperar a Regulação e as Parcerias: as respostas da MP 727

ANO 2016 NUM 173
Carlos Ari Sundfeld (SP)
Professor Titular de Direito Administrativo da Escola de Direito da FGV-SP. Doutor em Direito. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público. Advogado.


18/05/2016 | 7552 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

A providência imediata de Michel Temer, ao assumir a presidência após o afastamento de Dilma Rousseff, foi iniciar um movimento de melhoria da regulação e das parcerias de investimento em empreendimentos públicos (as concessões e seus similares). Por meio da medida provisória 727, de 12 de maio de 2016, criou o PPI - Programa de Parcerias de Investimentos, como sucessor do Programa Nacional de Desestatização, que vinha dos anos 1990. Há novidades quanto a orientações, órgãos e instrumentos, bem como quanto a papeis e deveres das autoridades.

O caminho é privatizar, de modo que o uso de parcerias deve ser ampliado (art. 1.º, caput). Mas hoje não há condições adequadas para isso.

Quais os problemas imediatos a enfrentar? O primeiro é a ausência de políticas estáveis e de planejamento de longo prazo para os setores de infraestrutura, gerando muita confusão e insegurança, com programas e parcerias inconsistentes e instáveis. O segundo é a desorganização estatal, impedindo que os diferentes órgãos unam esforços e agilizem tanto a estruturação e a licitação de parcerias, como a posterior liberação dos empreendimentos (com a expedição de licença ambiental, p.ex.). O terceiro problema é a má qualidade das estruturações: parcerias são licitadas com projetos incompletos, estudos econômicos duvidosos, contratos improvisados, etc. O quarto problema é o direcionamento de outorgas sempre para as mesmas empresas; a verdade é que a competição nas licitações tem sido muito baixa. O quinto problema é que as autoridades intervêm de modo excessivo e arbitrário na regulação setorial e na execução dos empreendimentos, gerando ineficiência, muita insegurança e seguidos aditivos contratuais.

A seguir, destaco as respostas iniciais da MP 727 a esses problemas.

Advirto que o PPI aproveitou-se parcialmente de diagnóstico, ideias e proposta legislativa que, em companhia de outros professores e autoridades, apresentei originalmente em 2015 como contribuição acadêmica (v. PPP MAIS: Um Caminho para Práticas Avançadas nas Parcerias Estatais com a Iniciativa Privada, Carlos Ari Sundfeld e Egon Bockmann Moreira, em Revista de Direito Público da Economia, BH, Fórum, vol. 53, janeiro/março 2016, págs. 9-49). Agora, na elaboração da MP 727, tive a oportunidade de, como acadêmico independente, apresentar sugestão para a adaptação daquela proposta ao novo contexto.

A nova medida não aborda todos os problemas, nem aprofunda o tratamento dos pontos que escolheu. É, portanto, apenas um esforço inicial, embora simbólico. A reforma terá que se ampliar. 


PARA FORTALECER AS PARCERIAS, AS POLITICAS SETORIAIS TERÃO DE SER FORMALIZADAS E MANTIDAS NO LONGO PRAZO

Como primeiro passo para se ter programas consistentes de parcerias, tornou-se obrigatória a formalização, por meio de atos jurídicos vinculantes das mais altas autoridades do poder executivo, das políticas e planos setoriais de longo prazo, com a definição e a programação no tempo dos empreendimentos a contratar. Essa política tem de se manter estável no longo prazo (arts. 3º-I, 4º e 6º-I).

A execução do programa de parceiras terá de ser transparente: a administração dará “divulgação ampla e sempre atualizada dos empreendimentos do PPI, com dados que permitam seu acompanhamento público e permanente, até seu encerramento” (art. 9º).

Ademais, a cada ano, as entidades de regulação terão de avaliar, quanto à sua “execução” e a seus “resultados”, as “medidas de regulação previstas nas políticas, planos e regulamentos” (art. 6º-V).

Portanto, quer-se um planejamento amplo, juridicamente vinculante, e avaliação profunda e constante de sua execução, com discussão pública.

Não se deve ter ilusões: tornar realidade esses comandos será um grande desafio. Vivemos até hoje a cultura do improviso nas parcerias. Planejamento de longo prazo e acompanhamento global constante de progrmas são novidade para nós. 


COMANDO CENTRAL PARA O PROGRAMA DE PARCERIAS

Para começar a reorganizar a atuação estatal, hoje muito descoordenada, um novo conselho de ministros (o conselho do PPI) sucederá o inoperante conselho nacional de desestatização. Será dirigido pelo presidente da república e por ele necessariamente ouvido para a fixação de todas as políticas setoriais federais, e também quanto ao fomento a parcerias estaduais e municipais (art. 7º).

Um novo órgão, a secretaria executiva do PPI, subordinado à própria presidência da república, coordenará esse programa de parcerias, procurando articular a atuação de todos os ministérios setoriais, entidades de regulação e entidades de fomento (arts. 8º a 12).  Para garantir suporte técnico a essa função, a Empresa de Planejamento e Logística – EPL, até então no Ministério dos Transportes, passou a vincular-se à secretaria executiva do PPI (art. 20).  

Será um desafio para a EPL adaptar-se a esse novo papel, mais amplo, não necessariamente circunscrito aos setores de logística. Além disso, também será um desafio fazer funcionar realmente o conselho e a secretaria. Não é tão fácil. O objetivo não é que eles substituam os ministérios, conselhos e  agências reguladoras setoriais, tanto que suas competências – e, quando o  caso, autonomia – foram integralmente respeitadas e mantidas. É, isto sim, que os novos órgãos façam algo que não vinha sendo feito nesses anos todos do programa de privatização: dar coerência e estabilidade à ações da chefia do executivo e do governo como um todo, em relação à proposta, análise e implementação das parcerias, nos vários setores. No fundo, são papeis ainda a serem inventados na prática.   


DEVER PÚBLICO DE COLABORAÇÃO PARA VIABILIZAR AS PARCERIAS

Na tentativa de mudar a postura frequentemente omissa ou reativa das autoridades de execução e controle, que têm atrasado ou sabotado a licitação e liberação de empreendimentos, previu-se inicialmente que “os empreendimentos do PPI serão tratados como prioridade nacional por todos os agentes públicos de execução e de controle da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (art. 5º). Esses agentes terão o dever de agir, não só obedecendo à “legalidade”, mas também com “qualidade, eficiência e transparência” (art. 4º-II).

Exemplo da nova orientação está no art. 18, ao impor o seguinte dever: “Os órgãos, entidades e autoridades estatais, inclusive as autônomas e independentes, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com competência de cujo exercício dependa a viabilização de empreendimentos do PPI, têm o dever de atuar, em conjunto e com eficiência, para que sejam concluídas, de forma uniforme, econômica e em prazo compatível com o caráter prioritário nacional do empreendimento, todos os processos e atos administrativos necessários à sua estruturação, liberação e execução.” A constituição desse dever, que vinculará órgãos ambientais, indígenas, urbanísticos, do patrimônio cultural e outros (§ 1.º), ocorrerá com a convocação da administração pública responsável pelo empreendimento (§ 2º). 

Outro exemplo: as entidades de regulação serão obrigadas a se articular “com os órgãos e autoridades de controle, para aumento da transparência das ações administrativas e para eficiência no recebimento e consideração das contribuições e recomendações” (art. 6º-VIII).

Encontrar os modos adequados para cumprir os deveres que lhes foram agora impostos será um grande desafio para todas essas autoridades. Embora desde o famoso decreto-lei 200, de 1967, se venha tentando, por meio de normas, dar estímulos para a organicidade da ação administrativa, fazendo as várias partes atuarem em conjunto, a realidade é que a administração foi se fragmentando mais e mais, e o poder hierárquico do presidente da república e dos ministros não é capaz de gerar unidade. Mesmo porque, além de entidades administrativas federais autônomas (agências reguladoras ou ambientais), também estão envolvidas aqui competências de órgãos de controle, com maior ou menor autonomia, e também de outras unidades da federação, que são totalmente autônomas. A MP 727 preferiu não indicar ela própria os instrumentos para a ação colaborativa. Mas a novidade que introduziu não é irrelevante: há agora o dever jurídico de colaborar, inclusive para Estados e Municípios.  Caberá aos juristas extrair daí as consequências pertinentes.     


O BNDES PODERÁ SER CONTRATADO PARA, COM CONSULTORES PRIVADOS, PRESTAR SERVIÇOS TÉCNICOS DE ESTRUTURAÇÃO

Além das confusões política e administrativa, há outro fator que atrapalha a elevação da qualidade dos projetos, editais de licitação e contratos de parceria. É a extrema dificuldade de os órgãos de execução contarem com apoio contínuo dos melhores especialistas do setor privado. Eles são indispensáveis: para trazerem as novas soluções e também o conhecimento das melhores práticas nacionais e internacionais dos vários setores.  Mas a legislação de contratações públicas, em especial a lei 8.666, de 1993, praticamente inviabiliza contratos bons e rápidos com esses especialistas privados.

Na tentativa de superar o problema – mas sem rever a lei 8.666, de 1993, o que seria inviável no momento – a MP 727 adotou uma solução bastante focada. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES criará um fundo privado autônomo (Fundo de Apoio à Estruturação de Parcerias) que, mediante contratos celebrados sem licitação com a administração federal, estadual ou municipal competente, atuará como provedor de serviços técnicos especializados de estruturação (art. 16). Para tanto, usará especialistas privados contratados pelo Fundo por meio de “regime de contratação a ser instituído” (art. 17 § 1º), os quais atuarão sob a coordenação dos agentes públicos do Fundo (art. 17, caput). 

A aposta é que o BNDES, uma entidade estatal consolidada e com pessoal técnico de qualidade, desenvolva uma unidade que acumule e dissemine, entre os vários setores e as várias administrações públicas, um vasto conhecimento técnico sobre a estruturação de parcerias. E também que possa constituir relações de qualidade com consultores privados. Grandes desafios para o BNDES.           


PARA AMPLIAR A COMPETIÇÃO, UM NOVO PAPEL PARA O  CADE E ESTRUTURAÇÕES INDEPENDENTES E TÉCNICAS

A diretriz fundamental está no art. 2º-III: o estado tem de promover a “ampla e justa competição na celebração das parcerias e na prestação dos serviços”. Portanto, é preciso aumentar de verdade a competição nas licitações de parcerias.

Para propiciar isso, e mudar a cultura vigente nos órgãos de execução, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, atuando em sua função de advocacia da concorrência, cooperará com o comando central do PPI, fazendo “contribuições técnicas visando à adoção das melhores práticas nacionais e internacionais de promoção da ampla e justa competição na celebração das parcerias e na prestação dos serviços” (art. 10). É um ator técnico – e totalmente independente, afastado da política – influindo ainda na fase de elaboração de políticas e de preparo da licitação, para criticar direcionamentos e propor medidas de abertura à competição.    

Além disso, na execução do programa, as entidades de regulação também devem se articular com o CADE “para aumento da eficiência e eficácia das medidas de incentivo à competição” (art. 6º-VII).

Portanto, a MP 727 deu uma grande missão e um enorme desafio também para o CADE. A novidade é bem importante: até agora, os movimentos em matéria de licitação pública – novas normas, novas soluções – ocorreram mais na esfera política (tem-se legislado muito sobre isso, nas últimas décadas), no nível dos órgãos contratantes (que inventam minutas de licitação e contrato) ou do controle (as decisões do TCU, p.ex.). Debates amplos, baseados em estudos técnicos e independentes, sobre os modelos capazes de ampliar a competição sem afetar a eficiência, não vêm ocorrendo regularmente nestes anos todos. O CADE, que nos últimos tempos tem feito grande esforço para compreender o mundo das licitações e combater cartéis, amadureceu bastante e pode agora ocupar o espaço vazio. A partir de agora, o CADE poderá influir de verdade na construção dos modelos de licitação para parcerias. Se ele for bem sucedido, muita coisa pode mudar.  

De outro lado, foi criada a figura do Procedimento de Autorização de Estudos – PAE (art. 14-I), por meio do qual a administração poderá contar com consultoria independente única, não vinculada a empresas com interesse na posterior licitação (art. 14 § 1º), para fazer a estruturação integrada do empreendimento, da licitação e do contrato (art. 14 §§ 2º e 3º). Nessa modalidade, a consultoria será ressarcida das despesas e poderá receber uma recompensa, a cargo do ganhador da licitação, na forma prevista no art. 21 da lei 8.987, de 1995 (Lei de Concessão). 

Essa nova solução legal surge para desestimular que a administração continue empregando os PMIs - Procedimentos de Manifestação de Interesse em que as próprias empresas interessadas na licitação oferecem seus estudos durante a estruturação. PMIs têm servido, em vários casos, para direcionar licitações e reduzir competição, sem que essa colaboração privada na preparação do projeto traga reais ganhos de qualidade para os empreendimentos.

Quando a estruturação for feita com o apoio do Fundo do BNDES, também incidirá uma restrição, para impedir que interesses de empresas específicas contaminem a licitação e o contrato: as consultorias privadas utilizadas não poderão ter vínculos com essas empresas (art. 17 § 2º). Aqui está mais um desafio da MP 727, agora para as consultorias privadas: elas terão que desenvolver uma cultura de independência, para poderem atuar como o grande suporte da administração pública na execução do programa de parcerias. 


PARA OS PARCEIROS PRIVADOS: MÍNIMA INTERVENÇÃO ESTATAL, MÁXIMA SEGURANÇA E TARIFAS ADEQUADAS

A MP 727 procurou tornar ilegais os excessos de burocracia e de regulação, isto é, o dirigismo estatal que ignora custos e impede as empresas de atuar com eficiência e de perseguir a lucratividade normal.

Tem de ser “mínima” a intervenção dos órgãos estatais, inclusive dos órgãos de regulação setorial, nos “negócios e investimentos” (art. 2.º-IV), devendo esses órgãos promover a “eliminação de barreiras burocráticas à livre organização da atividade empresarial” (art. 6º-VI).  

Um exemplo da nova orientação, contrária ao dirigismo: a modicidade tarifária deixou de ser um objetivo a ser perseguido pelo estado, trocada que foi por outro paradigma: o das “tarifas e preços adequados” (art. 2º-II).

Além disso, o estado tem de garantir “estabilidade” e “máxima segurança jurídica” aos particulares envolvidos (arts. 2º-IV e 3º-III).

Aqui o desafio é para o conjunto de autoridades públicas: desenvolver práticas de regulação realmente compatíveis com um bom ambiente de negócios, de modo a atrair empresas privadas que não sabem ou não estão dispostas a atuar em meio à arbitrariedade estatal.  As normas da lei, embora fortes e claras, tem efeito imediato mais no nível principiológico. É preciso tempo para saber se as autoridades de execução e controle vão ou não levá-las a sério no plano mais concreto. De qualquer modo, são normas jurídicas, que evidentemente terão seu peso nos debates regulatórios. 

A seguir, como conclusão, indico algumas soluções concretas com que a MP 727 procurou induzir as autoridades a seguirem essas novas práticas de regulação.  


REGULAÇÃO: AUTÔNOMA, COM ESTUDOS DE IMPACTO E CONSULTA PÚBLICA PRÉVIA

A MP 727 procurou combater a contaminação política e o voluntarismo na regulação. Desde logo, a “autonomia das entidades estatais de regulação” foi reafirmada como princípio (art. 2º-V).

Para garantir a transparência da regulação e permitir a ampla participação dos interessados em sua formulação, a generalidade das entidades de regulação está agora obrigada a fazer “consulta pública prévia quando da edição ou alteração de regulamentos e planos regulatórios setoriais” (art. 6º-IV). Algumas agências já o faziam regularmente, outras de modo esporádico. Agora, o dever de fazer consulta pública é geral.

Ademais, para assegurar que a regulação seja resultado de visões técnicas e não de arroubos e improvisos, a “análise de impacto regulatório” se tornou obrigatória quando da “edição ou alteração de regulamentos, planos regulatórios setoriais e outros atos setoriais” (art. 6.º-II). É uma exigência forte, inspirada nas melhores práticas internacionais, que até agora não havia se disseminado nas agências brasileiras.

As entidades de regulação terão o grande desafio de se adaptar rapidamente a essa nova forma de decidir. Se elas se dispuserem com sinceridade a atuar nesse caminho legal, a regulação brasileira subirá imediatamente de patamar e uma nova etapa se abrirá. Caso não, os conflitos vão aumentar, pois agora haverá mais elementos para os regulados e consumidores combaterem, inclusive na Justiça, as arbitrariedades regulatórias. 



Por Carlos Ari Sundfeld (SP)

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