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Prorrogação do prazo para pagamento de tributos federais, calamidade pública e coronavírus: salvação individual ou marcha da insensatez nas finanças públicas?

ANO 2020 NUM 443
Daniel Giotti de Paula (MG)
Doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, Procurador da Fazenda Nacional, Professor de Direito Financeiro e Tributário


27/03/2020 | 6602 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Em tempos difíceis, cobrar razão individual é tarefa hercúlea. Talvez ajamos individualmente como o típico homem econômico, que buscaria apenas minimizar seus custos e maximizar riquezas. Talvez isso fique mais grave agora, em que precisamos aniquilar custos e reduzir pobrezas. Cobrar a presença da razão pública também não é algo fácil. Razões de Estado podem se sobrepor às razões individuais e coletivas, ou não?

Sob essas premissas, analisa-se a Portaria do Ministério da Fazenda, n. 12, de 2012, que “prorroga o prazo para pagamento de tributos federais, inclusive quando objeto de  parcelamento, e suspende o prazo para a prática de atos processuais no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB) e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), na situação que especifica”.

 A situação que ela especifica está no artigo 1º: “as datas de vencimento de tributos federais administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), devidos pelos sujeitos passivos domiciliados nos municípios abrangidos por decreto estadual que tenha reconhecido estado de calamidade pública, ficam prorrogadas para o último dia útil do 3º (terceiro) mês subsequente”.

Tem-se defendido que essa seria uma portaria ainda vigente, de aplicação genérica e que, faticamente, todos os contribuintes, vivendo os efeitos econômicos da pandemia do coronavírus e do lockdown, poderiam dela usufruir, conseguindo decisões para suspender os prazos de recolhimento de pagamento dos tributos federais. As primeiras decisões foram desfavoráveis, todas dadas em caráter liminar, sob duas alegações.

A uma, como os pedidos envolvem suspensão de pagamento dos tributos federais, e isso nada mais é do que pedir uma moratória, uma moratória individual aliás, ela depende de lei, seja qual for sua modalidade. (v. Liminar indeferida em MS dada pela 25ª Vara Cível Federal de São Paulo no Processo 5004342-79.2020.4.03.6100.

A duas, pode-se entender que o decreto legislativo n. 06 de 2020 se restringe à aplicação do artigo 65, da Lei de Responsabilidade Fiscal, logo, como esse dispositivo “trata de assuntos como dívidas dos Estados, folha de pessoal, dentre outros temas, não abrangendo a suspensão de exigibilidade de tributos, tal como pretende a parte impetrante (...) não há  embasamento legal” para contemplar os pedidos dos contribuintes.

Em 26 de março de 2020, surgiu uma decisão favorável, entendendo que “embora dentro da boa e pura técnica do Direito Tributário, a pretensão deduzida nos autos se amoldaria na figura da moratória, regulada, em âmbito geral, no art. 152 e seguintes do Código Tributário Nacional (CTN), o que seria um pedido de moratória tributária”, poder-se-iam invocar “noções gerais de Direito Público”, para reconhecer “por analogia, a incidência da Teoria do Fato do Príncipe” e  “assim, pela via reflexa, alterar parcial (apenas quanto ao momento do pagamento das exações) e momentaneamente (enquanto persistir os efeitos da quarentena horizontal imposta ou até que surja a esperada regulamentação legislativa sobre o tema), a relação jurídica de natureza tributária mantida entre as partes e descrita na exordial, como forma de preservar a própria existência da parte autora e os vitais postos de trabalho por ela gerados”. (v. Liminar deferida em MS em decisão dada pela 21ª Vara Federal Cível do Distrito Federal no Processo n. 1016660-71.2020.4.01.3400”)

 Assim, passo a tratar de cada um dos argumentos que creio devam ser enfrentados em uma decisão sobre esse tema, sejam argumentos formais, sejam argumentos substanciais.

 Primeiramente, têm-se a natureza jurídica do prazo de suspensão do pagamento e os efeitos fiscais do instituto veiculado na Portaria n. 12 de 2012, em cuja ementa está expresso que ela “prorroga prazo de pagamento de tributos federais”, o que implica discutir se é conforme à jurisprudência uníssona, no sentido de que pode o prazo de recolhimento ser regulado por ato infralegal.

Pela aplicação da praticabilidade, que visa reduzir a complexidade do fenômeno tributário, não se duvida de que o prazo de pagamento de tributo não deve ser matéria legal. O fato gerador pode ser simples, periódico e complexivo, e a própria Administração Tributária escolhe o prazo de recolhimento e do efetivo pagamento de cada um deles.

Entretanto, o Código Tributário Nacional coloca moratória como caso de suspensão de exigibilidade do crédito tributário e, sobretudo por essa razão, é havida como matéria de lei.

Além disso, pode-se cogitar que a gravidade dos fundamentos da moratória, tais como calamidades, catástrofes e conjunturas econômicas desfavoráveis, também seja uma razão para exigência da veiculação por lei. (cf. ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed., Forense: Rio de Janeiro, 2019, p.)

Sendo assim, como a moratória é a simples dilação do prazo de pagamento do tributo e como a portaria “prorroga prazo de recolhimento”, possivelmente inclusive para créditos já constituídos, ao consignar que ela se aplica “ao mês da ocorrência do evento que ensejou a decretação do estado de calamidade pública e ao mês subsequente”, tem-se uma moratória criada por ato infralegal, que não lei.

Deve-se refletir acerca de depender a moratória de lei, por uma previsão da Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 150, parágrafo sexto, e pelo artigo 14, da Lei Complementar n. 101/2000, pois, ainda que a literalidade dos dispositivos não abranja moratória como renúncia fiscal, o paragrafo primeiro do último é redigido com cláusula aberta para abarcar “outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado. Para Paulo Caliendo (Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 634), “a moratória pode ser entendida como uma espécie de renúncia fiscal”. 

Parece que todas as decisões já apontadas consideram os pedidos das partes como pedidos por moratórias individuais, a exigir previsão em lei (artigos 152 e 153, do CTN), daí que a portaria se mostra imprestável para os pedidos, seja por ela trazer uma moratória não prevista em lei, seja por se entender que os pedidos dos contribuintes são moratórias individuais e não a “mera postergação do pagamento”.

Ambos argumentos formais afastam a pretensão dos contribuintes.

Ademais, não vejo como deixar de considerar se a portaria é ou não autoaplicável. O artigo 3º da Portaria estabelece que “RFB e a PGFN expedirão, nos limites de suas competências, os atos necessários para a implementação do disposto nesta Portaria, inclusive a definição dos municípios a que se refere o art. 1º”. Seriam meros atos de execução ou atos necessários para a densificação da medida de “prorrogação o prazo para pagamento de tributos federais”?

A prática da Administração Tributária tem sido a de ser necessária essa densificação, sobretudo com a definição dos Municípios abrangidos, tomando-se como exemplo uma caso recente.

Tendo em vista o estado de calamidade pública declarado pelo governador do Estado do Espírito Santo por meio do Decreto nº 092- S, de 20 de janeiro de 2020, relativos aos municípios de Alfredo Chaves, Iconha, Rio Novo do Sul e Vargem Alta, em decorrência das fortes chuvas que os abateram, a Receita Federal do Brasil publicou a Portaria RFB nº 218, de 30 de janeiro de 2020, para prorrogar prazos para pagamento de tributos federais de contribuintes domiciliados naqueles Municípios, com base no artigo 3º da Portaria MF nº 12/2012.

Aplicar a portaria indistintamente, assim, implicaria retirar receitas tributárias da União por meses, sem que ela mesma faça o juízo de oportunidade e conveniência acerca da matéria, como indica a Portaria MF n. 12 de 2012. Tratando-se de uma calamidade pública nacional, e não simplesmente local ou estadual, ou se edita um ato normativo prorrogando o “prazo de recolhimento” para todos os contribuintes, atendendo às limitações constitucionais ao poder de tributar, ou somente por meio de lei se poderia instituir meios de suspensão e extinção dos créditos tributários.

A portaria não traz direito subjetivo do contribuinte, assim, mas envolve uma escolha discricionária da União.

Superada essa argumentação em torno da estrita legalidade e dos limites da portaria, pode-se avançar para a análise substancial do tema.

Não seria argumento igualmente válido para o pleito dos contribuintes argumentar que Estados têm conseguido suspender o pagamento de suas dívidas junto à União, como se deu por medida cautelar na ACO n. 3.363, pois o Supremo Tribunal Federal, considerando que confirme por seu Pleno a decisão cautelar, lidou exclusivamente com receitas públicas, decidindo se seria melhor, neste momento, mantê-las com os Estados ou direcioná-las à União.

O que a Corte fez, até agora, foi afastar a legalidade ordinária do Direito Financeiro para atender a uma ideia de continuidade de prestação de serviços públicos, uma das “noções gerais de Direito Público” para parcela da doutrina.

Ordinariamente, os Estados deveriam quitar suas obrigações com a União, mas se estando perante um estado de necessidade qualificado para os primeiros, pode ela ter de suportar arcar com o não-recebimento de parte do que lhe é devido por outros entes federativos. É dinheiro que deixa de sair do Estado para manter serviços públicos, e não um dinheiro privado que deixa de se transformar em receita pública.

Não se trata de defender que interesses públicos devam prevalecer sobre interesses privados, mas justamente evitar que o judiciário, de forma ativista, não pondere os interesses, desequilibrando mais ainda as finanças públicas.

Por último, enfrenta-se um argumento substancial relevante: o da capacidade contributiva, visto por muitos como o princípio-base do valor-fonte do Direito Tributário, que seria a capacidade contributiva (Para uma exposição crítica sobre essa tese, ver PAULA, Daniel Giotti de. A Praticabilidade no Direito Tributário: controle jurídico da complexidade. Rio de Janeiro: Multifoco, 2018, pp. 345-360).

Pode-se propor que a Portaria n. 12 de 2002 seja o reconhecimento de que a capacidade contributiva em casos de calamidade pública não existe e, daí, apoiando-se nela, poderiam os contribuintes, em casos pontuais, conseguir postergar pagamento de tributos ou, quem sabe, até conseguir “uma causa supralegal e temporária de não-pagamento do tributo”?

Isso exigiria um artigo exclusivo, mas não posso deixar de enfrentar a tese. Na esteia de Paulo Victor Vieira da Rocha, estou entre aqueles que defende que a capacidade contributiva funciona como bem privado, e aí seria propriamente um direito fundamental, mas também como bem coletivo, sem enfeixar direitos subjetivos e trazendo preocupações de distribuição do encargo tributário sob o prisma da justiça distributiva. (v. ROCHA, Paulo Victor Vieira da. Teoria dos Direitos Fundamentais em matéria tributária: restrições a direitos dos contribuintes e proporcionalidade. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 244.)

De qualquer forma, admito, mesmo me parecendo que o judiciário deva ser autocontido nesse aspecto pelos efeitos imprevisíveis e sistêmicos de suas decisões, que situações excepcionais possam, sim, configurar ausência de capacidade contributiva no sentido subjetivo, ou seja, indicar contribuintes que perderam sua capacidade de contribuir com as despesas públicas estatais.

O Direito Tributário já regularia alguns casos, como as faixas de isenções de imposto de renda, para muitos doutrinadores campo de não-incidência por ausência de capacidade contributiva ou de imunidade, à luz do mínimo existencial (v. TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Renovar: Rio de Janeiro, 2009). Haveria, então, espaços excepcionais não regulados a autorizar uma atuação jurisdicional?

Não vejo como defender que não haja, sobretudo para contribuintes que ainda exerçam suas atividades, ainda mais se isso for uma exigência governamental e estejam perdendo receitas e ampliando os custos de maneira que aniquilem sua atividade econômico, mormente se tiver um conteúdo social relevante e devidamente comprovado.

Lembro, porém, que a análise da capacidade contributiva deva verificar a situação individual do contribuinte, como já teve ocasião o STF de afirmar, quando analisou a não atualização da tabela das faixas de imposto de renda:

“ a vedação constitucional de tributo confiscatório e a necessidade de se observar o princípio da capacidade contributiva são questões cuja análise dependem da situação individual do contribuinte, principalmente em razão da possibilidade de se proceder a deduções fiscais, como se dá no imposto sobre a renda”. (BRASIL, STF, Pleno, RE 388312, Rel. p/ ac. Mina. Carmén Lúcia, j. em 01.08.2011, DJ em 10.10.2011)

No RE “a vedação constitucional de tributo confiscatório e a necessidade de se observar o princípio da capacidade contributiva são questões cuja análise dependem da situação individual do contribuinte, principalmente em razão da possibilidade de se proceder a deduções fiscais, como se dá no imposto sobre a renda.

Por isso, parece-me criticável a decisão dada pela 21ª Vara Federal Cível do Distrito Federal no Processo n. 1016660-71.2020.4.01.3400, que não menciona expressamente a questão da capacidade contributiva em nenhum momento – só mencionando uma “reduzida capacidade financeira” da impetrante -, fundamentando-se em “noções gerais de Direito Público”, como a “teoria do fato do príncipe”, em eventual sinalização do STF de que “as atenções de todos devem estar voltadas à preservação das condições mínimas de bem estar do ser humano” e na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Para mim, ela não vence o especial ônus argumentativo que a jurisprudência do STF indica na análise da ofensa à capacidade contributiva individual ou subjetiva.

No caso concreto, o juízo fixou um critério para conceder, liminar excepcionalmente, “o diferimento do recolhimento dos tributos federais indicados na exordial (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS)”: a manutenção dos cinco mil postos de trabalho narrados na inicial.

O critério universalizável, então, seria as pessoas jurídicas manterem seus postos de trabalho? E, se além de diferirem pagamento de tributos, precisarem cortar postos de trabalho, aí não caberia? 4.999 postos de trabalho autorizariam a mesma decisão? No caso de empresários individuais, se a atividade empresarial que ele tem lhe garante a subsistência, mas ele perdeu parte dos clientes, logo de sua renda ou receita, a ele se aplica? Uma empresa com 100 mil postos de trabalho, mas que continua distribuindo penhora sobre lucros e dividendos a acionistas, pode ser contemplada?

Não se sabe, pela leitura, qual o impacto que isso gerará para os cofres públicos, que precisam de receita para conter os efeitos econômicos da própria pandemia: manter serviços públicos, afinal.

Como algo que  envolve as finanças pública, creio que seja melhor uma regulamentação por lei, via os institutos próprios da remissão, anistia e moratória.

A judicialização da matéria, conforme se percebe nesses últimos dias, recomenda atuações imediatas do Legislativo e do Executivo, quanto mais porque é habitual que o Judiciário, pelas limitações institucionais que tem, verifique as consequências em um caso concreto, sem poder medir as consequências gerais que a decisão pode gerar e a universalização dos critérios criados em decisões singulares.

Há que se tomar cuidado também com o emotismo, a tentativa de convencer o destinatário da informação, não com base na razão, mas na emoção, limitando opções de solução, “quando frente a um problema de interpretação constitucional, se apresentam apenas duas soluções, normalmente dois extremos de um espectro com muitas variações, sem a indicação de posições intermediárias que poderiam igualmente resolver a divergência, ainda que de forma diversa”.(v. ÁVILA, Humberto. Constituição, Liberdade e Interpretação. Sâo Paulo: Malheiros, 2019, p. 70) .

Estamos perante um momento duro, terrível, aterrador, tanto do ponto de vista sanitário, quanto econômico, e dele sairemos pela razão.  Como está na bela passagem de Jon Elster, em Ulisses Liberto, a Constituição, e posso dizer o direito, é o mastro ao qual nos acorrentamos para não ouvir cantos de sereia, os gritos de emoção.

Se é crucial que Administração e Legislativo vejam os efeitos da redução das atividades econômicas para os contribuintes, sopesando esses interesses privados com as necessidades públicas de gastos estatais, deve o Judiciário ser minimalista e autocontido em decisões, salvo casos excepcionais.

Senão, buscando cada um sua tábua de salvação jurídica, nestes mares revoltos, poderemos ir certeiros para o caos das finanças públicas, em verdadeira marcha da insensatez.

 



Por Daniel Giotti de Paula (MG)

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