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Arbitragem e PPPs

ANO 2015 NUM 49
Egon Bockmann Moreira (PR)
Professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da UFPR. Professor Visitante na Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e nos Programas de Mestrado e Doutorado da USP e da FGV/RJ (2018). Mestre e Doutor em Direito. Especialista em Regulação Econômica (Universidade de Coimbra) e Mediação (Harvard Law School e Pepperdine Law School). Advogado. Árbitro.


20/12/2015 | 8158 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Como fica claro da leitura da Lei 11.079/2004 (a Lei das Parcerias Público-Privadas - PPPs), é facultado aos editais de licitação prever “o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.037, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato” (art. 11, inc. III).  Demais disso, em março de 2015, a Lei 9.037/1996 (a Lei da arbitragem) foi alterada para incluir, em suas disposições gerais, que “A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos materiais disponíveis” (art. 1º, § 1º). Essa conjugação é de extrema importância para que possamos compreender a arbitragem como cláusula indispensável nos contratos de PPPs. O interesse público primário está pautado legislativamente.

Em suma, o legislador brasileiro definiu uma conjugação que consolida a arbitragem como o meio legítimo para a composição de conflitos em contratos administrativos – em especial, nas parcerias público-privadas. Isso não importa dizer que os demais contratos administrativos – sejam aqueles celebrados pela Administração direta, sejam os pactuados com a Administração indireta – não possam recorrer à arbitragem. Nada disso: o que a Lei de PPPs fez foi franquear um incentivo a que os gestores incluam cláusulas de arbitragem nos editais dessa ordem de contratos administrativos. Isso devido a vários motivos relevantes. Em contrapartida, a cláusula da Lei de arbitragem é ampla, geral e irrestrita. Mas fato é que as PPPs demandam especial atenção quanto à arbitragem.

Por um lado, sabe-se que os contratos de PPPs são investimentos de longa maturação. O parceiro privado é instado a fazer significativos aportes em projetos de interesse público, os quais gerarão a respectiva amortização e os lucros depois de longo período. Não se assemelham às tradicionais empreitadas de obra ou serviço público, em que a pessoa contratada executa o contrato e, de imediato, obtém a respectiva remuneração. Os ganhos são realizados no longo prazo. Em contratos como esses, que envolvem projeções de receitas e despesas para 10, 20 ou 30 anos, qualquer erro ou desvio nos fluxos de caixa pode importar danos irreversíveis (um déficit mínimo no primeiro ano gera resultados exponenciais desastrosos no longo prazo). Logo, isso implica a necessidade de segurança jurídica reforçada, inclusive em casos de conflitos de interesses. Torna imprescindível a celeridade na resolução dos conflitos – preferencialmente, numa só instância decisória.

Ocorre que o Poder Judiciário brasileiro – quem diz isso é o próprio Conselho Nacional de Justiça – CNJ – está abarrotado de processos. São milhões de litígios, com as mais diversas configurações, os quais são unidos por três características comuns: a longa duração, os múltiplos níveis decisórios e a ausência de homogeneidade no tratamento das causas. Caso haja litígio entre poder concedente e concessionária e caso esse conflito de interesses se protraia no tempo, o resultado será trágico para o projeto de interesse público consubstanciado na PPP. De imediato, quem sofrerá severas perdas serão os usuários dos serviços e, depois de longo tempo, os contribuintes (que arcarão com os custos do precatório judicial). Isso sem se falar na confiança de futuros investidores em projetos dessa ordem. O que exige a institucionalização de soluções alternativas ao Poder Judiciário, a fim de que o projeto concessionário seja mantido íntegro e resista às intempéries.

A arbitragem nas PPPs, portanto, consubstancia legítimo e legal institutional bypass, por meio do qual a Administração pode garantir ao parceiro privado que o projeto não será afetado pelas disfunções hoje inerentes ao Poder Judiciário brasileiro.

Por outro lado, os contratos de PPPs albergam significativas complexidades técnicas – tanto em termos econômico-financeiros (os fluxos de caixa; a Taxa Interna de Retorno; a alocação de riscos e suas consequências etc.) como em razão da expertise demandada para esta ou aquela obra ou serviço (modelagem dos projetos; engenharia sofisticada; tecnologia de informação; melhores práticas setoriais; soluções estratégicas etc.). O que significa dizer que os conflitos de interesse em PPPs normalmente não dizem respeito a assuntos jurídicos em sentido estrito nem a questões de trato usual nas faculdades de Direito. Ao contrário: o que está em jogo são outras ciências, com as quais o jurista tem pouca afinidade. Claro que litígios dessa ordem podem ser resolvidos por meio de perícias técnicas, mas isso só aumenta os custos de transação e a possibilidade de captura na relação agente – principal (os peritos, porque de confiança do juiz, produzem documentos que, ao mesmo tempo são irrestritamente prestigiados pelo magistrado, não geram a responsabilidade imediata dos experts: afinal, eles só opinam e quem decide é o juiz).

Para conflitos dessa envergadura, melhor é acentuar a responsabilidade imediata daquele que profere a decisão, sem intermediários. Os árbitros estão diretamente expostos aos juízos que adotarem em suas decisões – e, devido a esse fato, precisam se inspirar nas melhores práticas e desenvolver esforços equivalentes para que o laudo arbitral venha a efetivamente compor a controvérsia. Por isso, devem assumir a condição de árbitro apenas e tão-somente em causas que representem o núcleo duro de sua especialidade. Ninguém em sã consciência – e nenhuma câmara arbitral que se respeite – indicará árbitros que não sejam os mais prestigiados, detentores de conhecimento específico que legitime a sua futura decisão naquele caso concreto. Além disso, o tempo e os demais custos serão concentrados na própria instância arbitral: ao invés de tomar tempo e dinheiro do Poder Judiciário e dos peritos, cria-se um só foro de interação, com imputação imediata da responsabilidade pelo conteúdo decisório.

De igual modo, é de se rejeitar as eventuais críticas decorrentes da ideia de que a arbitragem em PPPs seria proibida porque incidente sobre bens e serviços extra commercium. Com todo respeito àqueles que pensam em sentido contrário, a tese prova demais: se são bens e serviços extra commercium, como podem ser objeto de contratos? Se são indisponíveis, como se pautar pela combinação do edital com a proposta vencedora? A bem da verdade, está-se diante de uma comercialidade diferenciada, pautada pelo Direito Administrativo Econômico e pela disponibilidade dos direitos postos em conflito. Uma coisa é a indisponibilidade da função administrativa; outra, completamente diversa, é a disponibilidade condicionada do próprio contrato (e da quantificação monetária do seu objeto). Assim, o que se merece ressaltar é que esta comercialidade de Direito Público está submetida a diversos níveis, em vista a ampla heterogeneidade das coisas públicas: basta se contrastar o mar territorial aos livros da biblioteca pública; a praça à estação de metrô; os “aeroshoppings” aos museus. Os diferentes graus de afetação da coisa implicam o corresponde plano de incidência de sua exploração econômica (em intensidade e extensão). Mas uma coisa é certa: a tese da extracomercialidade não é apta a inibir a incidência da arbitragem nas PPPs.

Por fim, é de se frisar que a arbitragem não precisa consubstanciar uma despesa previamente quantificada e alocada nas contraprestações e no fundo garantidor da PPP. Não é um custo orçamentário presente e certo, mas é futuro e incerto. Pode ou não ocorrer. A cláusula de arbitragem é como um seguro de vida: existe para dar conforto aos signatários, a fim de que o conflito não se instale – e não para ser usada no cotidiano do contrato administrativo. Por isso, é uma despesa extraordinária, contingencial, que não pode – e não deve – ser quantificada e alocada na matriz econômico-financeira do contrato (sobretudo como uma “despesa obrigatória” do parceiro público). Mesmo porque tais cálculos são faticamente inviáveis para um contrato de 30 anos. A cláusula de arbitragem não depende, portanto, de quantificação e alocação prévias no orçamento público.

Em conclusão, o que se espera é que, cada vez mais, o incentivo instalado pela Lei de PPPs e pela Lei de Arbitragem seja prestigiado pela Administração Pública brasileira. Uma vez que existem tais previsões legislativas, seria um equívoco aos editais suprimir essa possibilidade de composição de conflitos em sede de PPPs – transmitindo aos interessados uma sinalização bastante negativa a propósito do projeto concessionário e da postura cooperativa da Administração Pública.



Por Egon Bockmann Moreira (PR)

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