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Licitações, questões de ordem pública e preclusão

ANO 2016 NUM 139
Egon Bockmann Moreira (PR)
Professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da UFPR. Professor Visitante na Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e nos Programas de Mestrado e Doutorado da USP e da FGV/RJ (2018). Mestre e Doutor em Direito. Especialista em Regulação Econômica (Universidade de Coimbra) e Mediação (Harvard Law School e Pepperdine Law School). Advogado. Árbitro.


11/04/2016 | 12004 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

A licitação é o processo administrativo por meio do qual a Administração Pública, obediente à isonomia, seleciona a proposta mais vantajosa e que melhor atenda ao princípio do desenvolvimento nacional sustentável. Ao invés de atribuir competência para que os agentes públicos escolhessem os contratados de forma personalíssima, o legislador definiu que a seleção deverá ser por meio de julgamento objetivo: o edital precisa estabelecer critérios certos que permitam a habilitação daqueles que comprovarem ser aptos, seguidos da efetiva comparação entre as propostas dos diversos interessados. Se isso não for faticamente possível, instala-se o dever de decretar a inexigibilidade da licitação e efetivar a contratação direta.

Assim, a licitação consubstancia uma sequência de atos e fatos jurídico-processuais destinados à prática do seu ato final: a adjudicação da proposta vencedora, a permitir que o agente competente celebre o respectivo contrato administrativo com o particular classificado em primeiro lugar. Antes de cumprida essa sequência de atos (fase interna; edital; esclarecimentos e impugnações; exame dos documentos de habilitação; comparação entre os preços; recursos administrativos; homologação) e fatos (o decurso do tempo e o dever de instalar a fase subsequente) processuais, o ato de adjudicação não pode ser realizado e a contratação está proibida de ser feita.

Por isso que a licitação convive com o conceito jurídico-processual de preclusão, sob seus três aspectos ou dimensões (cronológica, lógica e consumativa). A preclusão é o impedimento de que se pratique determinado ato processual, em razão do decurso de tempo (aspecto cronológico ou temporal); em razão da prática de ato incompatível com o que se pretende praticar (aspecto lógico); ou em razão da prática de determinado ato que exauriu a faculdade ou o ônus processual (aspecto consumativo). Como o processo é um caminhar para frente, exige-se que não retroceda. Caso transcorra em branco o tempo previsto legislativamente para a prática do ato, a parte perderá a faculdade de fazê-lo (preclusão temporal). Caso a parte declare formalmente que está de acordo com o edital, não poderá impugná-lo (preclusão lógica). Caso pretenda concorrer em um lote e abdique do outro, não poderá depois pretender inovar e misturá-los (preclusão consumativa). Tudo isso com escopo de ordem pública: permitir que o processo avance de modo independente.

Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça – STJ já decidiu que “A partir da publicação do edital de licitação, nasce o direito de impugná-lo, direito que se esvai com a aceitação das regras do certame.” (REsp 402.826/SP, Min. Eliana Calmon, DJ 24/3/2003). Em outras palavras, preclusão processual.

Porém, fato é que existem alguns temas inibidores da incidência da preclusão. Há determinadas normas de ordem pública regedoras da licitação – principalmente as relativas à habilitação dos interessados – que não podem ser transpostas seja pelo decurso de tempo, seja pela prática de ato anterior incompatível ou que tenha exaurido o que se pretende praticar. As exigências de habilitação são de ordem pública, cujo cumprimento nem a Administração Pública nem os particulares podem declinar. Isto é, aquelas normas licitatórias que definem as condições mínimas sem as quais a Administração Pública está proibida de celebrar o contrato administrativo. Normas cujo descumprimento consubstanciará vício insanável para o certame. Afinal e como o nome já diz, a habilitação se presta a permitir que aquele interessado seja apto a celebrar o contrato definido no edital. O art. 27 da Lei 8.666/1993 determina que sejam exigidos dos interessados a documentação comprobatória da habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, regularidade fiscal e trabalhista, bem como o cumprimento ao art. 7º, inc. XXXIII, da Constituição.

Imagine-se uma concorrência em que não tenha havido recursos administrativos contra a habilitação dos licitantes. Todos foram habilitados e nenhum se valeu do recurso previsto no art. 109, inc. I, al. a), da Lei 8.666/1993. Desta forma, pelo decurso de tempo, a licitação seguir incólume para a fase seguinte. Contudo, depois do julgamento das propostas de preço, os licitantes descobrem que o classificado em primeiro lugar já havia sido condenado, antes da proclamação do resultado, por explorar trabalho de crianças menores de 14 anos (Constituição, art. 7º, inc. XXIII). Ou que a comprovação da boa situação financeira apresentada continha erros de cálculo, outrora não detectados. Ou que o licitante estava em situação irregular perante o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS. Ora, é evidente que a Administração Pública está terminantemente proibida de celebrar contratos com sociedades que explorem trabalho infantil, ou que não possuam as mínimas condições econômico-financeiras ou que estejam em situação irregular com o FGTS. A não ser que haja ordem judicial suspendendo os efeitos de tais irregularidades, não há como transpor tais vícios dos documentos de habilitação. Caso tenha havido a habilitação, ela padece de nulidade, pois se habilitou o inabilitado. Nulidade essa que decorre da própria razão de ser da habilitação.

Tal como tive a oportunidade de consignar em obra escrita em co-autoria com o Professor Fernando Vernalha Guimarães, o “dever de salvaguarda do interesse geral imposto ao administrador público impede que a contratação administrativa se desenvolva descurando-se de avaliação prévia acerca da idoneidade dos candidatos.” (Licitação Pública. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, pp. 289-290). Trata-se de exigências sem as quais a Administração não terá qualquer garantia quanto à fidedignidade da contratação. Por isso, a legislação define o mínimo indispensável, aferível de modo objetivo, a fim de que o contrato possa ser celebrado. Aqueles interessados que não preencherem os requisitos de habilitação são legislativamente tidos como inidôneos para aquela licitação em específico. Em outras palavras, são objetivamente inaptos e a lei proíbe que sua proposta de preço seja sequer analisada.

Ou seja, o ato da habilitação não é discricionário, nem outorga à livre disposição do agente público a escolha ou modulação a propósito das exigências previstas em lei e consubstanciadas no edital. Nada disso. A habilitação é valor absoluto, que não comporta graus: ou o interessado preenche os requisitos ou não preenche. Por isso que todos os habilitados são detentores de direito equivalente à apresentação de propostas de preço – que são examinadas de modo independente em relação aos documentos de habilitação.

Porém, o que dizer de licitante que não recorre da habilitação de outro concorrente e, depois da divulgação do resultado dos preços, descobre que o classificado em primeiro lugar não preenchia os requisitos legais para ser habilitado? Incide a preclusão? Ele está proibido de apontar à Comissão de Licitação que a habilitação do primeiro colocado é nula? Se o fizer, o a Comissão está impedida de examinar e prover o recurso? A toda evidência, as respostas são negativas. A preclusão não incide em questões que envolvam deveres indeclináveis da Administração Pública e dos licitantes. Em outras palavras, não há preclusão para questões de ordem pública e para as nulidades absolutas, incidindo aqui o art. 53 da Lei 9.784/1999 (“A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade...”) e as Súmulas 346 e 473, ambas do Supremo Tribunal Federal – STF (“A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” e “A Administração Pública pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos...”, respectivamente). Mesmo se inseridos no processo administrativo, tais atos jurídico-processuais devem ter a nulidade decretada.

Em conclusão, se é fato que a licitação é um processo administrativo orientado à consecução do seu resultado final – a adjudicação e o futuro contrato -, qualificado pela ideia de preclusão, não é menos importante a noção de que os requisitos de habilitação precisam ser obrigatória e objetivamente cumpridos. Logo, não incide a preclusão para recursos – ou notícias ou o exercício do direito de petição – pertinentes a vícios da habilitação que impeçam a adjudicação e futura celebração do contrato. A Administração tem o dever de conhecer e, se forem efetivas as imputações de nulidade, dar provimento ao pedido de inabilitação, mesmo se formulado depois de decorrido o prazo recursal.



Por Egon Bockmann Moreira (PR)

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