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A mudança de entendimento do STF sobre a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário

ANO 2016 NUM 81
Emerson Gabardo (PR)
Professor Titular de Direito Administrativo da PUC/PR. Professor Adjunto de Direito Administrativo da UFPR. Pós-doutor em Direito Público Comparado pela Fordham University School of Law. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo


17/02/2016 | 31561 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

No último dia 03 de fevereiro o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu que as ações de ressarcimento ao erário oriundas de atos ilícitos civis são prescritíveis. Por intermédio do julgamento no Recurso Extraordinário nº 669.069 foi revertido, com repercussão geral, o entendimento anterior que vinha sendo exarado casualmente em favor da imprescritibilidade. O debate recorrente nos tribunais pátrios girava em torno da redação do artigo 37, parágrafo 5º, da Constituição Federal: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. O STF, todavia, nunca havia enfrentado de forma verticalizada e abrangente esta questão.

O julgamento, ainda pendente de acórdão, aparentemente terá relatório do Ministro Teori Zavaski. Contudo, foi protagonista da decisão o Ministro Luis Roberto Barroso, cujo voto foi acompanhado pelos demais, com exceção do Ministro Luiz Edson Fachin. Ao final, Barroso devolveu (a meu ver equivocadamente) o relatório para o Ministro Teori, haja vista que seus posicionamentos não teriam sido divergentes. Data venia, penso que eram, sim, divergentes.

De todo modo, ao final, ambos reconheceram a prescritibilidade apenas para os ilícitos civis, sem entrar no mérito da questão em relação a atos não-civis (ou seja, penais e de improbidade). Ocorre que se Barroso não tivesse proposto a divergência, possivelmente o acórdão reconheceria, a contrário senso, a imprescritibilidade das ações de ressarcimento decorrentes de ilícitos penais e de improbidade. O que era de obiter dictum na decisão recorrida se tornaria o objeto principal do debate – felizmente isso não ocorreu (e espera-se que o acórdão retrate com fidelidade a decisão tomada).

O voto do ministro Dias Toffoli foi no sentido de reconhecer a prescritibilidade apenas para o caso concreto, ou seja, só para os acidentes de trânsito. Esta interpretação levou aos píncaros do exagero o comum entendimento dos ministros de que as repercussões gerais devem restringir-se processualmente apenas à situação em debate. Não só exagerada, a tese se equivocava quanto a qual era o caso jurídico.

Afinal, quando se tem em mente a repercussão geral, não se pode apenas voltar-se para o fato em si; é preciso focar o enquadramento jurídico dado a ele. E nesta repercussão geral, obviamente era de total irrelevância o fato de ser ou não um acidente de trânsito a causa do dano. O problema genérico reconhecido em 2004 decorria da divergência hermenêutica a respeito da extensão do artigo 37, parágrafo 5o (artigo este que trata dos atos ilícitos em geral). Neste julgamento, a figura “acidente de trânsito” não era o caso em si, mas apenas um exemplo. Em resumo, a pergunta a ser respondida pelo STF poderia assim ser descrita: “são ou não imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário oriundas de ato ilícito?” Felizmente, os demais ministros não tomaram conhecimento da tese de Toffoli (que a abandonou para acompanhar Barroso), o que tornaria quase inútil a repercussão e exigiria uma infinidade de outros julgamentos pelo STF em relação aos demais atos ilícitos possíveis – e atualmente sobrestados.

Como a questão referia-se a um ilícito civil, o ministro Barroso insistiu que a decisão não poderia ser abrangente a ponto de concluir pela imprescritibilidade de pretensões decorrentes de atos de improbidade e de natureza criminal. A conclusão decorreu de argumentos processuais e não materiais. Alguns ministros, como Gilmar Mendes e Marco Aurélio, pareceram desconfortáveis com a restrição. Em realidade, do ponto de vista teórico, esta limitação do espectro de abrangência não faz sentido. O artigo constitucional não cria distinção entre qualquer espécie de ilícito (ao menos neste ponto o Ministro Fachin estava correto em sua leitura). A impressão que se tem é a de que os julgadores preferiram uma decisão pragmaticamente mais palatável (haja vista que se o objeto compreendesse ações de outra natureza, talvez a polêmica fosse maior). E acompanharam Barroso.

É importante salientar, contudo, que o contrário também não foi decidido. Ou seja, resta em suspenso o debate relativo à imprescritibilidade das pretensões de ressarcimento oriundas de atos de improbidade e inerentes à persecução penal. Este assunto irá retornar ao Supremo, haja vista a quantidade imensa de reparações de dano inclusas nestas outras duas categorias.

O voto divergente do Ministro Fachin foi decepcionante. Acompanhando posições conservadoras e fazendárias típicas dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, o Ministro defendeu a imprescritibilidade total das pretensões de ressarcimento ao erário. A fundamentação apresentada procurou fazer uma interpretação literal do artigo, acompanhada de citações do princípio republicano, do interesse público e, para total surpresa da plateia, da “dignidade humana”.

A retórica utilizada no voto divergente é exemplo concreto de como é possível manobrar argumentos relativos ao interesse público e aos direitos fundamentais para lá ou para cá, de forma racional, formalmente coerente, porém materialmente nonsense. O Ministro Marco Aurélio chegou a rotular como antidemocrática e “fascista” a tese da imprescritibilidade. O Ministro pode ter exagerado nos adjetivos, mas não no conteúdo de sua argumentação – realmente a tese ora refutada pelo STF é contrária aos direitos fundamentais. Não tem sentido imaginar que para ser garantida a dignidade humana o Estado tenha que receber a prerrogativa de ser um “cobrador perpétuo”. Veja-se que não se está a negar o direito de cobrar, mas simplesmente a se estabelecer um prazo para isso. Ora, nada mais republicano e justo que o estabelecimento de prazos para o exercício de direitos – e não há motivo para que isso não se aplique também aos agentes do Estado. Em se tratando de interesses patrimoniais dormientibus non succurrit jus.

Aliás, como já tive oportunidade de me manifestar em momentos anteriores, esta questão é exemplo ilustrativo do pseudoparadoxo que pode surgir quando contrapostos o interesse público de sancionamento (e recomposição do erário) e os direitos subjetivos fundamentais.

Até então, de forma um tanto apressada e sem uma profunda reflexão a respeito, a maioria da doutrina e da jurisprudência nacionais entendia que o conteúdo do artigo 37, parágrafo 5o, implicava o estabelecimento de uma cláusula de imprescritibilidade concernente às ações de ressarcimento ao erário. Ou seja, a qualquer tempo o Poder Público poderia ingressar com alguma medida a satisfazer o erário na recuperação de valores que tenham sido subtraídos irregularmente. Deve-se destacar que o argumento em geral utilizado é justamente a aplicação superficial do texto redigido pelo constituinte. É comum a leitura de autores que, embora lamentem tal opção registrada na Constituição, asseveram não poder escapar dos termos ali dispostos.

Todavia, não parece ser esta a visão mais acertada se realizada uma interpretação sistemática da Constituição, como bem afirmou a maioria dos ministros. Uma correta consideração do próprio princípio da supremacia do interesse público como um elemento que incorpora os direitos fundamentais em seu cerne deve concluir pela prescritibilidade. Tive a oportunidade de esclarecer esta relação em detalhes em minha tese de doutorado defendida na UFPR e publicada em 2009. Afinal, o principio da supremacia do interesse público é muitas vezes utilizado, mas poucas vezes explicado teoricamente – não surpreende que o recente livro do professor Daniel Wunder Hachem (de 2011) seja a primeira obra monográfica dedicada especificamente ao tema no Brasil.

Quanto ao caso específico, é importante rememorar que o tempo é um condicionante fundamental da realidade dos homens e várias de suas relações têm início ou se encerram em razão de seu decurso. Embora se tenha conferido, historicamente, muito valor ao fator espaço, notadamente em decorrência da firmação dos Estados Nacionais e de sua monopolização da produção legislativa, o Direito não existe sem o tempo. Todo o ordenamento constitucional está implicado pela sustentação dos fatos passados e seus efeitos, pela estabilidade do presente e pela garantia de um futuro previsível. Esta estruturação, essencialmente jurídica, está intimamente ligada a outro direito fundamental presente na Constituição Federal de 1998: a ampla defesa.

Em geral, a doutrina que defende a aplicação do princípio da prescritibilidade tem como fundamento nuclear o princípio da segurança jurídica. Luis Roberto Barroso é exemplo desta corrente, destacando que se o princípio é a prescritibilidade, é a imprescritibilidade que depende de norma expressa, e não o inverso. No mesmo sentido, o professor Romeu Felipe Bacellar Filho sempre destacou que a inexistência de lei versando sobre o prazo prescricional jamais poderia levar à imprescritibilidade. Não se discorda das razões apontadas, seja utilizando-se a analogia a outras leis de Direito público, seja utilizando-se das normas gerais do Código Civil sobre a matéria para resolver a carência de um prazo expresso.

Porém, o argumento da ampla defesa, mais do que um simples reforço, foi definitivo na decisão do STF e particularmente de alguns ministros, como foi o caso de Cármen Lúcia Antunes Rocha. Nesta seara, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello foi muito citado, notadamente porque esta é uma das questões em que o administrativista maior de nosso país assumiu ter mudado de posição. Até 2009, defendia, ainda que “com desconforto”, a imprescritibilidade. Entretanto, após ouvir a minha exposição no Congresso Mineiro de Direito Administrativo defendendo a prescritibilidade como atributo necessário à ampla defesa, resolveu que passaria a sustentar a prescritibilidade.

O professor Celso não precisava, mas fez questão de atribuir a mim a sua mudança de posição – um ato de extrema generosidade e que foi citado por Marco Aurélio durante seu voto. E aqui cabe uma reparação à argumentação da Ministra Cármen Lúcia, que atribuiu ao Sexto Congresso Mineiro de Direito Administrativo a conclusão pela tese da prescritibilidade a partir do argumento da ampla defesa. Isso não está correto. No congresso, esta tese foi por mim explicitada de forma isolada e minoritária. No painel em que eu estava e era composto pela então Ministra Eliana Calmon e pela brilhante professora Raquel Urbano de Carvalho, ambas reiteraram a tese da imprescritibilidade.

É relevante salientar que a Constituição não afirma expressamente a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário (como o faz no artigo 5º, incisos XLII e XLIV), e em sendo assim no mínimo seria possível estabelecer uma dúvida a respeito do significado da expressão “ressalvadas”. Afinal, não se contesta que todos os dispositivos da Constituição possuem eficácia, inclusive o artigo 37, inciso 5º. Parece bastante razoável supor, entrementes, que a melhor leitura da segunda parte desta regra, a partir de um Estado de Direito, seja a de inferir que a ressalva refere-se apenas à impossibilidade de inclusão do prazo prescricional das ações de ressarcimento na mesma lei que estabelece o prazo relativo à penalização para os atos ilícitos. Afinal, são realmente questões distintas e já na oportunidade existia regulação própria dada à matéria no Código Civil.

As normas constitucionais não devem ser entendidas topograficamente ou literalmente. Elas dependem do sistema como um todo e do relacionamento interno e externo entre os princípios e direitos fundamentais incidentes. No caso, embora seja um interesse público relevante o ressarcimento, há um valor maior que deve ser considerado: o direito real (efetivo) de o indivíduo se defender de qualquer imputação de responsabilidade que lhe atinja, realizado o devido processo legal. E não é crível imaginar que o cidadão terá condições de se defender sem que possua um prazo certo no qual sabe que possam lhe ser cobradas explicações em face dos seus atos. Se a passagem do tempo muitas vezes torna impossível ao cidadão provar seus direitos perante o Poder Público, quanto mais se defender de acusações (considerando, inclusive, o atualmente tão desvalorizado, mas importantíssimo, princípio da presunção de inocência).

O Ministro Fachin ressaltou que a prescritibilidade favoreceria a impunidade dos detratores do interesse público que se locupletariam da passagem do tempo. Este argumento, todavia, não procede. A Administração tem o dever de cobrar, mas tem um tempo pra isso. E este tempo é, inclusive, um marco para que os agentes públicos competentes para a apuração da responsabilidade e ingresso com as ações de ressarcimento efetivamente cumpram com a sua obrigação, sob pena de eles estarem cometendo uma falta. Se não têm prazo, tais agentes jamais estarão em mora. Portanto, a imposição da prescritibilidade nos casos de ressarcimento não favorece a impunidade. Ao contrário, é imposto um prazo (até então inexistente) para que os responsáveis pela cobrança exerçam seu mister. Ou seja, caso o agente responsável pela apuração não o faça, passa a ser ele o requerido do ressarcimento (além das penalidades administrativas possivelmente incidentes). Este é um forte incentivo para que tenhamos mais cobranças, e não menos, com a adoção da tese da prescritibilidade – fiquei surpreso em verificar que nenhum ministro se atentou a este argumento.

É preciso extrair interpretações equilibradas do sistema jurídico e, notadamente, do conceito de interesse público incidente. Conceito este que necessita compreender uma interpretação extensiva dos direitos fundamentais, a partir de suas condições concretas de realização probatória. Afinal, os sujeitos, seus filhos, seus netos, não podem ficar eternamente à mercê de investidas administrativas e judiciais – até porque a demora pode ser utilizada justamente para, futuramente, o Poder Público intentar se locupletar de quem já não tem como reagir.

Ademais, presumir que o Poder Público sempre estará correto em suas pretensões ressarcitórias seria um total absurdo – mas esta talvez seja a premissa implícita de alguns, não todos, defensores do erário (cada vez mais há aqueles que defendem que vale a pena condenar alguns inocentes para o “bem maior” que é a luta contra aqueles que seriam os inimigos do interesse público). Daí, talvez, justifique-se a expressão “disparate” utilizada por Celso Antônio ao referir-se à imprescritibilidade – e que serviria para vários outros casos típicos de caça às bruxas no Brasil atual; uma interpretação tosca e perigosa da moralidade, mas que vem ganhando um espaço surpreendente.

Enfim, “a ampla defesa é incompatível com a eternidade”. Venho dizendo esta frase em várias oportunidades e fiquei feliz em ver que o STF a reconheceu por intermédio da Ministra Cármen Lucia. Portanto, a prescritibilidade não é só uma questão de segurança jurídica ou de garantia de direitos ou interesses particulares. É uma questão de justiça inerente ao interesse público primário – este sim, típico de um Estado de Direito. Espero que o Supremo mantenha-se nesta linha e que seu próximo passo seja o efetivo reconhecimento da prescritibilidade também para as ações de improbidade e para os ilícitos penais (estes últimos, desde que não tenham a imprescritibilidade como sua regra expressa constitucionalmente, como no caso do racismo, por exemplo). Afinal, ubi eadem est ratio, ibi idem jus.

Ainda, espero que o Poder Legislativo utilize-se de suas prerrogativas e edite uma lei específica trazendo prazo para o exercício da pretensão ressarcitória da Administração – que penso deva ser o de cinco anos. Embora tais prazos possam ser extraíveis do Código Civil ou de legislação esparsa análoga, creio que seria oportuna a existência de uma regra própria regulamentadora da situação. E tal legislação também deve estabelecer as penas para os agentes públicos que não exercerem sua responsabilidade no ingresso com as respectivas ações de cobrança.



Por Emerson Gabardo (PR)

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