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Netflix e Lava Jato: Deus Escreve Certo por Linhas Tortas

ANO 2018 NUM 395
Emerson Gabardo (PR)
Professor Titular de Direito Administrativo da PUC/PR. Professor Adjunto de Direito Administrativo da UFPR. Pós-doutor em Direito Público Comparado pela Fordham University School of Law. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo


24/04/2018 | 6326 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

No início eu estava resistente em ver a série “O Mecanismo”. Mas acabei cedendo e assistindo os oito capítulos de uma vez. Depois que comecei não consegui mais parar. E, confesso, gostei. Sou um fã de séries da Netflix e, realmente, esta é outra que não decepciona. Não deverá, entretanto, fazer grande sucesso internacional, considerando a natural comparação com outras séries muito melhores. Não chega nem perto da viciante “La Casa de Papel”, ou da espetacular “Suburra”, mas vale a pena.

Enfim, a polêmica em torno da Lava Jato é recorrente. Trata-se de um fenômeno histórico sem precedentes no Brasil e merecedor de tal deferência por parte dos nossos cineastas. Estar a favor ou contra a operação praticamente define o brasileiro tanto quanto ser de um ou outro time de futebol. Para a série, assim como para os cidadãos torcedores, a realidade é um detalhe. Então, vamos para a ficção – e aqui vem spoiler.

Tenho lido algumas críticas a respeito, principalmente sobre a série falsear a realidade em alguns pontos. Já fala-se em processar a Netflix. E a ex-presidenta Dilma chegou a dizer que o diretor, José Padilha, teria promovido um “assassinato de reputações”. Há outros críticos que insistem em destacar que existe um conjunto de mentiras na trama.

Não é bem assim.

É típico da literatura de fundo histórico fazer tais retratos fáticos da vida por intermédio de mudanças bruscas do que se entende por realidade. Recordo-me da “Tragédia do Rei Ricardo II”, escrita por Shakespeare e cuja resenha de Antônio Cândido eu utilizo na abertura do primeiro capítulo do meu livro “Eficiência e Legitimidade do Estado”. Uma obra defenestrada pelos historiadores, mas absurdamente importante para a representação simbólica do período.

Por outro lado, a arte é tradicionalmente manejada para o engajamento político. A série “O Mecanismo” é tudo isso: um romance politicamente engajado e uma proposta artística de fundo histórico. Ver isso como ruim é, do ponto de vista ético, algo estranho. Ademais, qualquer tipo de censura seria algo reprovável juridicamente – em que pese nada impeça a posterior reparação de danos (se existirem).

Mesmo que reste um bom espaço de discussão a respeito dos limites da liberdade de expressão, ainda assim, em qualquer outra ocasião veríamos esta série de maneira natural, ou seja, a partir de um juízo estético – ou se gosta, ou se desgosta; ou se concorda, ou se discorda. Para aqueles que desgostam ou discordam sempre há a alternativa de não assistir, ou como pretendem os mais radicais, cancelar o serviço da Netflix. Tudo bem, para estes há opções como assinar a Amazon ou voltar para a Rede Globo.

Mas é possível que a grande discussão a respeito do caso decorra de certa postura paradoxal, tanto dos criadores quanto dos críticos, de proclamar ou exigir certa neutralidade artística em relação aos fatos; o que, efetivamente, não existe. Por um lado, estamos falando de uma série tradicional, com mocinhos e bandidos bem estabelecidos, além de uma proposta clara de exaltação da Lava Jato; por outro lado, o próprio roteiro utiliza nomes de pessoas e instituições com referências óbvias às suas correspondentes na vida real. Então, simplesmente afirmar no início da sessão que a obra foi “inspirada livremente em eventos reais” ou que os personagens foram “adaptados para efeito dramático” não resolve. Afinal, o povo não sabe o que é verdadeiro ou falso e isso permite aos criadores um enorme espaço de condicionamento da opinião. Interessante observar que o único nome verdadeiro utilizado é justamente o da operação: Lava Jato.

A questão fundamental é: e daí? É proibido à arte o condicionamento da opinião? Há algum compromisso jurídico, ético ou estético do artista com a “verdade”? Penso que não, embora não ignore os perigos desta proposição. O fato é que estamos em tempos de preocupações muito mais impactantes: como a decadência do jornalismo – este sim, com compromissos constantemente não cumpridos em relação à sua finalidade pública, à verdade dos fatos, à precisa apuração dos acontecimentos e à sua correta divulgação; e com o fracasso do Direito – cujo objetivo maior de garantia de direitos fundamentais não só é constantemente descumprindo, como vem perdendo sua popularidade junto ao povo, cada vez mais egoísta e insensível.

Mesmo historiadores e documentaristas reconhecem que fazer a história do presente não é algo fácil sem recairmos em uma história vigiada. Ainda mais quando há testemunhos vivos que não só defendem sua visão de mundo, como são impactados pelas narrativas sobre o tempo presente. Como afirma o historiador Marc Ferro, os personagens e acontecimentos históricos mudam de sentido conforme a sua legitimidade muda de foco. Na sociedade de informação ultra-tecnológica as narrativas iniciam muito cedo sua competição pela prevalência na memória. Quem irá “autenticar a montagem” dos fatos selecionados pelos autores são as gerações futuras. E farão isso elaborando pouco a pouco o sentido do que será comemorado e do que será lamentado. Nesta seara, nossa capacidade crítica é importante, porém muito limitada.

Não se pode ignorar, todavia, que uma obra cinematográfica como esta é um relevante elemento de construção do imaginário, para além de ser mero entretenimento. Por esta razão vale a pena discutir um pouco sua proposta discursiva. É um texto dramático, sem dúvida, mas há momentos de humor negro, como a ótima cena em que os prisioneiros provisórios comemoram a decisão de subida do processo ao STF. Há, ainda, elementos pouco críveis, como as cenas retratando o baixo salário dos delegados da polícia federal e a austeridade econômica dos juízes e promotores.

Esta temporada também ficou devendo uma presença mais significativa da mídia como elemento partícipe. Em um país desequilibrado como o Brasil, se há um “mecanismo” da corrupção, também há um “mecanismo” no seu combate; e os órgãos de controle estão absolutamente inseridos neste contexto. Todos sabemos que Sérgio Moro reconheceu em artigo científico a importância da exploração da publicidade nas investigações; inclusive a pautada por vazamentos que nem sempre se sabe de onde vêm e nesta primeira temporada foram atribuídos exclusivamente ao réu. Nas próximas, acho difícil manter esta narrativa sem o texto recair em um abismo poético.

Uma relação de retroalimentação com a mídia torna-se uma garantia de conquista da opinião pública e os órgãos de controle sabem muito bem disso. O exemplo da mani pulite (mãos limpas), na Itália, parece estar sendo seguido à risca pela Lava Jato real, mas sem grande repercussão na ficção. A revista “Leia” foi o único canal midiático mencionado; e de forma bem crítica (para a minha surpresa). Mas realmente senti falta da menção ao “Jornal Federal” e à “Folha de S.Pedro”. Enfim, dizem que um bom artista nunca fala mal de seu mecenas ou de seu marchand – veremos nas cenas dos próximos capítulos.

Há dois pontos altos da obra. O primeiro é a atuação excelente de Enrique Dias como o doleiro Roberto Ibrahim. O segundo é justamente a construção do personagem principal, o ex-delegado Marco Ruffo, muito bem interpretado por Selton Mello. Ao contrário das expectativas, a persistência sem criatividade da delegada Verena Cardoni, a coragem tímida do juiz Paulo Rigo e o pragmatismo amoral do promotor Claudio Amadeu não retratam a força motriz da Lava Jato. O alter ego da operação é o ressentido Ruffo, um sujeito compulsivo, bipolar, raivoso, vingativo, sem limites e atuando fora do sistema, mas que consegue dar à Lava Jato uma vitória inimaginável: colocar 12 dirigentes das maiores empreiteiras do país atrás das grades. Sem ele, tal feito não teria sido possível. E, convenhamos, isso não é pouca coisa. O retrato ficcional do espírito da Lava Jato feito pela roteirista Elena Soárez e pelo diretor José Padilha foi brilhante. É difícil saber o que é mais verdadeiro nesta construção: a realidade ou a ficção.

Quando eu digo aos meus alunos que não há maior gênio da ciência política que Maquiavel, muitos desdenham. Pois bem, depois de assistir a série Lava Jato, quero ver quantos irão discordar da proposição: “os fins justificam os meios”. Mesmo para juristas formais e garantistas como eu, é impossível não sentir certo êxtase com a prisão de um conjunto tão expressivo de sujeitos que representam o que há de pior no patrimonialismo histórico brasileiro. Uma elite arrogante  e corrupta que vive da exploração alheia há centenas de anos. Acho que eu só sentiria o mesmo bem-estar eufórico caso os juízes e detentores de cargos análogos fossem obrigados a devolver todo o auxílio-moradia que vêm recebendo indevidamente nos últimos anos.

Por outro lado, uma análise mais requintada certamente veria com cautela todo este processo. Se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente – e isso vale tanto para os bandidos como para os mocinhos. Cá com meus botões, eu lembrei da célebre frase do inquisidor Conrad Tors, que em 1223 declarou: “Eu queimaria cem inocentes se houvesse um culpado entre eles”. Em seu livro The Inquisition Michael Baigent e Richard Leigh explicam este mecanismo: “Os suspeitos de heresia recebiam um tempo de graça – em geral de quinze a trinta dias – para denunciar-se. Se o fizessem dentro desse período, eram geralmente aceitos de volta no seio da Igreja sem pena mais severa que uma penitência. Mas também eram obrigados a nomear e fornecer informação detalhada sobre todos os outros hereges que conheciam. O interesse último da Inquisição era pela quantidade. Estava disposta a ser branda com um transgressor, ainda que culpado, desde que pudesse colher uma dúzia ou mais de outros, ainda que inocentes. Como resultado dessa mentalidade, a população como um todo, e não apenas os culpados, era mantida num estado de constante pavor, que conduzia à manipulação e ao controle.” Uma prisão simbólica de alguém importante ou muito rico (a inquisição ficava com os bens do condenado) também valia muito a pena, ainda que contrariando expressamente a vontade do Papa.

Qualquer semelhança é mera coincidência?

Em certa medida, a série trata deste assunto, mas de forma ambígua – por intermédio da contraposição forte entre Ruffo e Cláudio. Mas o roteiro não deixa dúvidas a respeito de sua repulsa à advocacia – um mero instrumento imoral de defesa de bandidos. De fato, os advogados são jogados pela série na mesma vala comum que seus clientes. Nada diferente da atual imagem que a sociedade faz da classe. No imaginário contemporâneo, a defesa é um estorvo e o devido processo legal uma burocracia fadada à proteção de delinquentes. O drama não só retrata esta realidade, como a promove – com razão, portanto, o forte incômodo de alguns colegas.

Já estou ansioso pelos próximos episódios, considerando o farto material que temos desde 2015 e que continua a ser produzido. Há fontes para uma novela inteira. Estou curioso para ver como serão retratados fatos como o golpe que redundou no impeachment da Dilma (ao menos na ficção, já sabemos quem o tramou). Ou como serão tratados personagens como Verena Cardoni, que tende a se tornar cada vez mais fanática pelas prisões antecipadas, aproximando seu temperamento daquele atribuído ao seu mentor. Seria capaz de apostar, também, que o Ministério Público receberá um tratamento mais gentil dos autores, a partir da ascensão de Dimas Donatelli como porta-voz da operação (na primeira temporada convenhamos que a imagem do MP ficou bastante comprometida). Mas o clímax acabará ficando com a prisão de Lula. E nestas cenas talvez os autores tenham que elaborar um roteiro um tanto diferente do que imaginavam, para não perderem totalmente sua credibilidade. Confio na capacidade de Padilha de compreender que o jogo simbólico midiático se tornou mais complexo do que os protagonistas imaginavam.

Enfim, meus amigos, nós que não somos delegados, juízes, promotores, políticos, empreiteiros ou cineastas... vivamos e deixemos viver, critiquemos e deixemos criticar, amemos e deixemos amar. Vamos tentar, quem sabe, apenas não odiar. É difícil acreditar que tudo vai dar certo, mas quem sabe estejam corretos Verena e Ruffo: “Deus escreve certo por linhas tortas”.

Para os Irmãos do Livre Espírito, hereges perseguidos pela Inquisição que cunharam o termo “iluminismo” no século XII, não há critério do que é bom e do que é mal, pois “Deus é tudo o que é”. Mesmo Satanás é uma manifestação divina. O que vale é a luz interior de cada um e seu discernimento subjetivo. Ser iluminista é ser um sujeito livre de quaisquer amarras morais formais a fim de “ser possível liberar o Deus ambíguo que temos dentro de nós”.

Se o impessoal e secular Estado de Direito não nos contempla, quem sabe a resposta não está mesmo na confiança em novos heróis inspirados pela luz divina. Talvez o tempo demonstre que só eles são capazes de fazer justiça, mesmo que com as próprias mãos, e ainda que nem sempre tão limpas...

O que não nos afasta de um fim trágico para todos, personagens e espectadores.

 



Por Emerson Gabardo (PR)

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