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O Reconhecimento da Constitucionalidade das Parcerias no Setor de Saúde pelo Supremo Tribunal Federal: a ADI 1923/DF e o RE 588.481/RS

ANO 2016 NUM 203
Fernando Borges Mânica (PR)
Doutor em Direito pela USP. Mestre em Direito do Estado pela UFPR e Pós-graduado em Direito do Terceiro Setor pela FGV-SP. Advogado.


01/07/2016 | 6945 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

O ano de 2015 pode ser visto como um divisor de águas para o direito à saúde no Brasil. Duas decisões do Supremo Tribunal Federal consolidaram, depois de quase 30 (trinta) anos de existência do Sistema Único de Saúde – SUS, o entendimento de que as parcerias com a iniciativa privada consistem em opções constitucionalmente admitidas para a prestação de serviços públicos de saúde.

A primeira decisão refere-se à ADI 1923 (BRASIL, 2015), em que se discutia a constitucionalidade do modelo de gestão por Organizações Sociais. No voto vencedor que guiou o Acórdão, publicado em 17/12/2015, o Min. Luiz FUX deixou consignada a constitucionalidade das parcerias com o terceiro setor nas áreas sociais, como a saúde e a educação. Na robusta fundamentação do voto, encontram-se excertos que sintetizam o pensamento consagrado pelo Supremo Tribunal Federal:

“(...) cabe aos agentes democraticamente eleitos a definição da proporção entre a atuação direta e a indireta, desde que, por qualquer modo, o resultado constitucionalmente fixado – a prestação dos serviços sociais – seja alcançado. Daí porque não há inconstitucionalidade na opção, manifestada pela Lei das OS’s, publicada em março de 1998, e posteriormente reiterada com a edição, em maio de 1999, da Lei nº 9.790/99, que trata das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, pelo foco no fomento para o atingimento de determinados deveres estatais. 

(...)

Com efeito, a intervenção do Estado no domínio econômico e social pode ocorrer de forma direta ou indireta, como ensina Floriano Azevedo Marques Neto: enquanto na primeira hipótese cabe ao aparelho estatal a disponibilização de utilidades materiais aos beneficiários, na segunda hipótese o Estado faz uso de seu instrumental jurídico para estimular a que os próprios particulares executem atividades de interesses públicos, seja através da regulação, com coercitividade, seja através do fomento, fazendo uso de incentivos e estímulos a comportamentos voluntários.

(...)

Em outros termos, a Constituição não exige que o Poder Público atue, nesses campos, exclusivamente de forma direta. Pelo contrário, o texto constitucional é expresso em afirmar que será válida a atuação indireta, através do fomento, como o faz com setores particularmente sensíveis como saúde (CF, art. 199, §2º, interpretado a contrario sensu – “é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”) e educação (...), mas que se estende por identidade de razões a todos os serviços sociais.”

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1923/DF. Tribunal Pleno, Relator para o acórdão Min. Luiz Fux. Diário de Justiça da União, 17 dez. 2015)

Como se pode perceber, o entendimento sufragado pelo Plenário do STF traz importante proteção à sociedade brasileira, na medida em que afasta de modo definitivo a ideia de que os serviços públicos de saúde no Brasil devem ser prestados por estruturas estatais.

Esse entendimento, agora vinculante, já vem sendo ventilado em decisões isoladas do Supremo Tribunal Federal, como se pode perceber do seguinte excerto, de lavra do Ministro Sepúlveda PERTENCE, ao julgar a Medida Cautelar da ADI 1923 (BRASIL, 2007):

“Não apenas não há, no dever estatal para com a saúde, obrigação de prestação estatal direta, mas, ao contrário, a expressa previsão de sua prestação mediante colaboração de particulares, embora sujeitos à legislação, à regulamentação, à fiscalização e ao controle estatais.” 

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1923/DF. Tribunal Pleno, Relator para o acórdão Min. Luiz Fux. Diário de Justiça da União, 17 dez. 2015)

A decisão do STF afasta o clássico argumento de que as parcerias afrontam a exigência de concurso público, prevista no artigo 37, II da Constituição Federal. Tal argumento, como bem ressaltou Luiz FUX é falso na medida em que cabe aos poderes constituídos definir o melhor modelo de atuação estatal em cada momento histórico. Nesse passo, é possível a opção pela criação de cargos públicos para o exercício de todas as funções envolvidas em um hospital – da portaria à UTI. Mas é possível também a celebração de parcerias para que o parceiro privado gerencie todas essas funções, em estrito cumprimento do Plano de Trabalho da parceria. A exigência de concurso público, como bem diz a letra constitucional aplica-se à primeira hipótese; não se aplica à segunda hipótese e também não veda a celebração de parcerias em áreas como a saúde e a educação. Nas palavras do Min. Luiz FUX (BRASIL, 2015):

“A atuação da Corte Constitucional não pode traduzir forma de engessamento e de cristalização de um determinado modelo pré-concebido de Estado, impedindo que, nos limites constitucionalmente assegurados, as maiorias políticas prevalecentes no jogo democrático pluralista possam pôr em prática seus projetos de governo, moldando o perfil e o instrumental do poder público conforme a vontade coletiva.”

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1923/DF. Tribunal Pleno, Relator para o acórdão Min. Luiz Fux. Diário de Justiça da União, 17 dez. 2015)

A segunda decisão paradigmática proferida no ano de 2015 e publicada em 08/04/16, tem como objeto específico a área da saúde. Trata-se do RE n. 581.488/RS, no qual o Relator, Min. Dias TOFFOLI (BRASIL, 2016), seguido pela unanimidade do STF, assim decidiu acerca das parcerias na saúde:

“A ação complementar não implica que o privado se torne público ou que o público se torne privado. Cuida-se de um processo político e administrativo em que o Estado agrega novos parceiros com os particulares, ou seja, com a sociedade civil, buscando ampliar, completar, ou intensificar as ações na área da saúde. Não significa, sob o espectro constitucional, que somente o poder público deva executar diretamente os serviços de saúde - por meio de uma rede própria dos entes federativos -, tampouco que o poder público só possa contratar instituições privadas para prestar atividades meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnicos especializados, como os inerentes aos hemocentros, como sustentado por parte da doutrina.

Isso não implica que haja supremacia da Administração sobre o particular, que pode atuar, em parceria com o setor público, obedecendo sempre, como mencionado, os critérios da consensualidade e da aderência às regras públicas. Como se constata pelas exitosas experiências em países como Alemanha, Canadá, Espanha, França, Holanda, Portugal e Reino Unido, dentre outros, na área da saúde, importantes requisitos das parcerias, como contratualização, flexibilidade, possibilidade de negociação, consensualismo, eficiência e colaboração são fundamentais para que os serviços possam ser prestados de forma ao menos satisfatória.

Dessa perspectiva, como já escreveu Mânica:

“[P]ode-se concluir que a assistência prestada por meio da iniciativa privada deve complementar as atividades de competência do SUS, as quais não podem ser integralmente executadas por terceiro. Tal entendimento veio ao encontro do que dispõe ao artigo 197, que não faz qualquer balizamento à possibilidade de participação privada na prestação de serviços. Assim, quando a Constituição Federal menciona a complementaridade da participação privada no setor de saúde, ela determina que a participação da iniciativa privada deve ser complementar ao SUS, incluídas todas as atividades voltadas à prevenção de doenças e à promoção, proteção e recuperação da saúde, dentre as quais aquelas de controle e fiscalização” (Fernando Borges Mânica, op. cit., p. 7). 

Entretanto, essa complementariedade não autoriza que se desconfigure a premissa maior na qual se assenta o serviço de saúde pública fixada pela Carta Maior: o Sistema Único de Saúde orienta-se, sempre, pela equanimidade de acesso e de tratamento; a introdução de medidas diferenciadoras, salvo em casos extremos e justificáveis, é absolutamente inadmissível.”

(BRASIL Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 581.488/RS. Tribunal Pleno, Relator Min. Dias Toffoli. Diário de Justiça da União, 8 abr. 2016)

Note-se que nesta segunda decisão o STF deixou claro que a complementaridade da participação privada no SUS, prevista pelo parágrafo 1º do artigo 199 da Constituição, tem como referência todo o sistema de saúde, que é composto por atividades prestacionais e por atividades de polícia, tal qual previsto no artigo 200 da CF/88 e no artigo 6º da Lei 8.080/90. Por isso, no que tange à prestação de serviços, a participação privada é amplamente admitida, desde que respeitados os princípios do SUS, como a eficiência, isonomia e gratuidade do atendimento.

A interpretação constitucional acolhida pelo Supremo Tribunal Federal em 2015, em especial na decisão do RE n. 581.488/RS (BRASIL, 2016), inverte a lógica adotada durante algum tempo no Brasil por parte da doutrina e da jurisprudência. Tal inversão consiste no reconhecimento da supremacia do direito fundamental à saúde em detrimento de um determinado modelo estatal de prestação de serviços. Esse modelo estatista de provimento de prestações estatais tem sido abandonado em todo o mundo, em especial para a oferta de serviços complexos como os de saúde, como se verá adiante.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a saúde é dever do Estado; mas não é só isso. É também dever do Estado adotar os modelos administrativos mais eficientes para a prestação de serviços de saúde. Caminha-se, assim, do reconhecimento da constitucionalidade das parcerias na saúde para a exigência de sua celebração (e devida execução) como forma de garantir direitos fundamentais tão caros à população nacional. Assim como o Poder Judiciário impõe ao Estado o dever de fornecer medicamentos, em um futuro próximo, o Poder Judiciário imporá ao Estado a adoção de formas eficientes e adequadas para a prestação de serviços complexos, caros e sensíveis, como são os serviços de saúde.

O reconhecimento do direito à saúde no centro da esfera hermenêutica, como definidor e não como consequência do modelo organizacional de sua prestação já vinha sendo defendido há algum tempo por parte da doutrina, com alguma repercussão, ainda que tímida nos tribunais pátrios. É o que há algum tempo defende Paulo Modesto (2002, p. 8):

“A declaração de direito à saúde como direito do cidadão e dever do Estado obriga a que o Estado garanta o direito à saúde e não que ofereça diretamente e de forma executiva o atendimento a todos os brasileiros. A palavra 'saúde', constante do artigo 199 da Constituição, refere a um bem jurídico, a uma utilidade fruível pelo administrado, que deve ser assegurada pelo Estado, independente deste fazê-lo direta ou indiretamente, mediante emprego do aparato público ou da utilização de terceiros.”

(MODESTO, Paulo. Convênio entre entidades públicas executado por fundação de apoio. Serviço de saúde público e serviço de relevância pública na Constituição de 1988. Forma de prestação de contas das entidades de cooperação após a emenda constitucional n 19/98. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 11, p. 8, fev. 2002. Disponível em http://www.dereitopúblico.com.br )

Na esfera jurisdicional, esse entendimento apenas agora acolhido pelo STF, encontra importante precedente na seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2008):

“Sempre com a devida vênia, não mais se mostra possível a interpretação de norma constitucional que atribua ao Estado todos os deveres, impedindo-o de contar com auxílio, remunerado ou não, de entidades privadas para a consecução do bem comum. No caso concreto, ao munícipe doente não interessa saber se o médico que o atende é servidor público ou não. O que lhe interessa é que haja médico para atendê-lo e medicamento para curar sua doença ou ao menos minorar seu sofrimento.

Por isso não vislumbro clara e manifesta violação, ao menos no âmbito restrito deste recurso de agravo, ao artigo 199 da Constituição Federal que tornaria viável a suspensão da parceira. E, em tese, se mostra possível que alguns programas de saúde, voltados para temas mais sensíveis sejam transferidos a terceiros que tenham a capacidade tecnológica e gerencial de melhor atender à população pelo custo mais barato que o Estado poderia fazer.“

(SÃO PAULO (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 627.715-5/3-00 – SP. Relator: Des. Lineu Peinado. 07 de agosto de 2007. Disponível em: <http://www.tj.sp.gov.br>. Acesso em: 20 out. 2008) 

Não obstante, em que pese a preponderância material do direito à saúde sobre a forma estatal de sua prestação ter sido finalmente reconhecida pelo STF, essa percepção ainda encontra alguma resistência na doutrina, em decisões judiciais e na atuação de alguns órgãos de controle e fiscalização brasileiros. Não raro percebe-se a tentativa em encaixar novos reclamos sociais, novas realidades, novos métodos de trabalho e novas tecnologias em velhos modelos de ação. Tal pensamento decorre, sobretudo, da falsa sensação de que o comprometimento estatal com a prestação dos serviços públicos de saúde apenas ocorre de modo pleno nas hipóteses em que o Estado atua diretamente na prestação de serviços, por meio de bens públicos e servidores públicos.

 Mas para além dessa mudança de perspectiva, o foco principal de atenção da teoria jurídica pátria deve transitar do Direito Constitucional para o Direito Administrativo, na medida em que são necessários estudos acerca de cada um dos modelos de parceria com a iniciativa privada para a prestação de serviços públicos de saúde. Isso porque a prestação privada apenas se justifica na medida em que proporciona maior efetivação do direito à saúde. Se do ponto de vista gerencial, a gestão privada de unidades de saúde mostra-se, em regra, mais eficiente; do ponto de vista jurídico, não se pode olvidar que modelos não estatais geram maiores riscos quanto a falhas e quanto ao desvio de recursos públicos, inclusive por atos de corrupção. Esse parece ser o ponto nevrálgico a ser enfrentado pela teoria jurídica brasileira nos próximos anos: garantir que a prestação privada seja adotada como mecanismo de ampliação da eficiência e não como instrumento de apropriação privada de recursos públicos e mercantilização do direito à saúde.

Nesse contexto, deve-se partir da premissa de que a opção pela celebração de uma parceria é constitucionalmente válida. No entanto, sua implantação depende de uma série de providências, desde a fase da estruturação da parceria, passando pela fase de execução e fiscalização da avença. Tal percepção demanda um olhar mais atento ao ambiente regulatório e contratual das parcerias público-privadas no setor de saúde previstas pelo ordenamento brasileiro, especificamente os Contatos de Gestão e as Concessões Administrativas. Esse é o desafio dos próximos anos para melhoria da gestão dos serviços públicos de saúde no Brasil. 



Por Fernando Borges Mânica (PR)

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