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Os Três Modelos de Parcerias Público-Privadas no Setor de Saúde: um breve olhar para a experiência internacional

ANO 2016 NUM 266
Fernando Borges Mânica (PR)
Doutor em Direito pela USP. Mestre em Direito do Estado pela UFPR e Pós-graduado em Direito do Terceiro Setor pela FGV-SP. Advogado.


29/09/2016 | 24194 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Um dos grandes desafios dos Estados na pós-modernidade tem sido a garantia do direito à saúde. O avanço tecnológico, o aumento dos custos, as sucessivas crises econômicas, o envelhecimento populacional, a mudança nos padrões das enfermidades e nos perfis epidemiológicos constituem apenas alguns fatores que influenciam a difícil equação de transformar recursos públicos em ações efetivas de promoção, proteção e recuperação da saúde dos cidadãos.

No que toca a prestação de serviços assistenciais de saúde, a solução adotada por diversos ordenamentos estrangeiros consistiu na adoção de variados modelos de parceria com a iniciativa privada, disciplinados por ajustes até então inexistentes, voltados à disciplina da prestação de serviços à população. Um dos instrumentos de ajuste adotados no exterior é bastante semelhante ao das Parcerias Público-Privadas (PPPs) do tipo concessão administrativa, incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei federal n. 11.079/04.

O modelo contratual, com segregação entre provedor (Poder Público) e prestador (agente estatal ou privado), foi adotado pelos sistemas públicos de saúde em escala mundial em duas grandes etapas: (i) a primeira, realizada preponderantemente nas décadas de 70 e 80 do século passado, teve um escopo mais restrito, visando primordialmente à contenção de custos; e (ii) a segunda, iniciada na década de 1990 e processada até hoje, buscou ampliar a capacidade instalada, obter maior eficiência na prestação dos serviços, aumentar a transparência na aplicação dos recursos e melhorar a satisfação dos usuários.

Com tais objetivos, na segunda onda de transformações foram celebrados contratos de PPP com escopos variados, tais como: construção de instalações de saúde; provisão de serviços não médicos; prestação de serviços de atenção primária; provisão de serviços de apoio diagnóstico; provisão de serviços médicos especializados; e, realização de gestão hospitalar.

Nesse cenário, é possível perceber nos últimos anos a elevação no número de Parcerias Público-Privadas no setor de saúde, justamente por conta dos saldos positivos decorrentes de sua adoção por diversos Estados ao redor do globo. Atualmente é possível contabilizar a existência de mais de 280 contratos de parcerias na área da saúde, em países como Alemanha, Austrália, Canadá, Chile, Espanha, Finlândia, França, Itália, Peru, Polônia, Portugal, Reino Unido, Suécia e Turks e Caicos. O quadro abaixo traz uma noção do volume de Parcerias Público-Privadas em execução no continente europeu (FUENTES, Fernando Vicente. Colaboración público privada en la gestión de los centros y servicios sociosanitarios: Experiencias en Europa y en España. Imserso. Cartagena de Indias, 13-16 de outubro de 2015. p. 10):

Além desses, é possível fazer referência a diversos países em desenvolvimento nos quais o Banco Mundial tem incentivado a estruturação destas parcerias na área da saúde, dentre os quais: Egito (com a construção e gestão de dois hospitais e um banco de sangue), México (desenvolvimento de dois novos hospitais), Uzbequistão (operação de quatro centros de diagnóstico) e Moldova (desenvolvimento de unidade de Radioterapia) –– (MEDICI, André Cezar. Do Global ao Local: os desafios da saúde no limiar do século XXI. Belo Horizonte: Coopmed, 2011, p. 68).

Nesse universo multifacetado de realidades socioeconômicas e demandas sociais, deve-se anotar que a generalidade dos contratos de PPP celebrados mundo afora tem como objeto o investimento privado no desenvolvimento e exploração de infraestruturas públicas, cuja remuneração ocorre ao longo do tempo e encontra-se atrelada à prestação de serviços. Deste modo, as atividades a serem executadas podem ser divididas, didaticamente, em dois grandes grupos: (i) 'hard facilities': atividades como manutenção predial, jardinagem, recolhimento de resíduos sólidos e estacionamento; (ii) 'soft facilities': que englobam serviços de lavanderia, limpeza, alimentação e segurança. Mas para além dos serviços de infraestrutura, no caso da saúde, é possível que o contrato de PPP englobe também o desempenho de atividades altamente especializadas, como a operação de equipamentos de alta tecnologia e a prestação de serviços médicos.

É importante ter em conta, portanto, que os contratos de PPP no setor de saúde podem ter como objeto: (i) construção e gestão privada dos serviços de apoio e manutenção, como segurança, limpeza, conservação, hotelaria e lavanderia, conhecidos na linguagem sanitária como serviços ‘bata cinza’; e/ou (ii) equipamentos e gestão privada dos serviços prestados pelos profissionais da área médica – em  sentido amplo –,  conhecidos como serviços ‘bata branca’. A partir da conjugação dessas hipóteses, a experiência internacional apresenta três grandes modelos de PPPs no setor de saúde, os quais podem ser relacionados à sua origem inglesa, portuguesa ou espanhola.

Modelo inglês – contratualização dos serviços ‘bata cinza’

Berço dos sistemas nacionais de saúde, o Reino Unido foi pioneiro na adoção dos contratos de parceria público-privada. Sua incorporação ao desenvolvimento da infraestrutura assistencial do National Health System  (NHS) não demorou a acontecer, sendo que o país traz a mais vasta experiência na área. Conforme Barbosa e Malik:

A utilização das PPPs como mecanismo de financiamento da renovação de infraestrutura de saúde teve no Reino Unido forte incremento nas décadas subsequentes à implantação dos PFI. Até 1997, de um volume de 47 estudos submetidos ao governo britânico, inexistiam pro­jetos relativos a estruturas de saúde. Em 2003, 16% dos projetos existentes no HM Treasury se destinavam ao setor, entre hospitais, unidades de atenção primária e serviços de apoio clínico. Estima-se que até 2010 ocorreram 277 projetos de construção e implantação de serviços assis­tenciais em saúde representando investimentos superiores a £ 20 bilhões. (BARBOSA, Antonio Pires; MALIK; Ana Maria. Desafios na organização de parcerias público-privadas em saúde no Brasil. Análise de projetos estruturados entre janeiro de 2010 e março de 2014. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, set./out./ 2015. p. 6).

A principal característica do modelo inglês de PPPs na área da saúde se refere à delimitação dos serviços envolvidos na avença, que não alcança os serviços médicos (‘bata branca’), razão pela qual o modelo é conhecido como ‘bata cinza’ (que faz referência aos serviços de construção, equipamentos e apoio operacional). Esse modelo é o mais difundido por todo o mundo.

Modelo português – a conjugação de contratos ‘bata cinza’ e ‘bata branca’

O programa português de parcerias público-privadas no setor de saúde teve início em 2001 e atualmente contempla dois grandes modelos. No primeiro, de modo semelhante à experiência inglesa, o objeto da parceria restringe-se à construção e gestão do edifício hospitalar, sendo que a gestão dos serviços médicos é mantida pelo Poder Público. No segundo modelo, a estruturação da parceria envolve dois contratos distintos: um para construção e administração do edifício hospitalar, em regra por um prazo de 30 anos; e outro para a gestão dos serviços médicos, em regra pelo prazo de 10 anos. Repare-se que, nesse segundo modelo, tem-se uma dupla contratualização: um contrato para o desenvolvimento e operação de infraestrutura (‘bata cinza’) e outro contrato para a gestão dos serviços propriamente de saúde (‘bata branca’).

Modelo Alzira – contrato integrado com serviços ‘bata cinza’ e ‘bata branca’

Na Espanha, a primeira PPP no setor de saúde teve início com a construção e gestão do Hospital de Alzira, em Valência, inaugurado em 1999. O objeto contratual englobava a construção do hospital e a gestão dos serviços clínicos e não clínicos, durante o prazo de 10 anos, com possibilidade de renovação por até 15 anos. Ocorre que, por razões e inviabilidade financeira do projeto, o contrato foi rescindido antecipadamente no ano de 2003, sendo substituído por um segundo contrato, que incluiu no mesmo ajuste tanto os serviços ‘bata cinza’ quanto os serviços ‘bata branca’. Essa modelagem de Parceria Público-Privada ficou conhecida como ‘modelo Alzira’, replicado com êxito em diversas experiências do Programa de Saúde de Madrid.

Apontamentos Finais

Desse breve sobrevoo pela experiência internacional de PPPs no setor de saúde pública é possível perceber que o modelo é adotado por Estados com diferentes ordenamentos jurídicos e variadas realidades socioeconômicas e sanitárias, como Suécia e Finlândia, México e Egito, Inglaterra e Alemanha, Uzbequistão e Moldova. Pode-se verificar, também, que independente do país, a decisão política pela celebração de uma PPP no setor de saúde, bem como a opção pelo modelo mais adequado à persecução dos interesses coletivos, deve ser precedida de ampla discussão, embasada em estudos técnicos de engenharia, economia, financeiros e médicos. Deste modo, forma-se uma decisão juridicamente viável e apta à solução das demandas sociais cada vez mais complexas, cambiantes e custosas. Não obstante, um olhar para a experiência exterior às nossas fronteiras pode ser útil para uma reflexão acerca de erros e acertos dos modelos adotados em solo pátrio.



Por Fernando Borges Mânica (PR)

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