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O Direito Administrativo das fraudes inocentes, ou sobre como Walter Benjamin interpreta o Angelus Novus de Klee

ANO 2016 NUM 240
Fernando Menegat (PR)
Doutorando em Direito Administrativo pela USP. Professor de Direito Administrativo da Universidade Positivo (PR). Advogado em Curitiba-PR.


23/08/2016 | 5272 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

Em 2004, aos 95 anos, o economista John K. Galbraith publicou seu último livro em vida, intitulando-o “A economia das fraudes inocentes”. No ensaio, Galbraith demonstra como “grandes sistemas econômicos [...] cultivam sua própria versão da verdade, que não tem, necessariamente, relação alguma com a realidade”(A economia das fraudes inocentes. Trad.: Paulo Anthero Soares Barbosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 11.) É exatamente isso que o autor denomina de “fraude inocente”: a mentira que, bem contada, todos admitem como verdade – mesmo sabendo não ser.

No presente ensaio, levanto a provocação de que nosso Direito Administrativo de hoje também flerta e convive com fraudes inocentes.

É bem verdade que a fraudulência do Direito Administrativo brasileiro não se iguala àquela tratada por Galbraith, já que nem sempre deriva de uma tentativa dolosa de mascarar a realidade. Mas por certo, alargando a concepção do autor, considera-se ser também fraudulenta a tentativa de acrítica manutenção de conceitos cunhados para uma realidade pretérita, não mais vivenciada. É dizer: a fraude do Direito Administrativo brasileiro de hoje não é uma fraude de invenção; é uma fraude de reprodução.

Vejamos alguns exemplos.

Acostumamo-nos há tempos com a informação de que o poder de polícia é discricionário e indelegável, bem como com a previsão de atributos aos atos administrativos, tais como o da imperatividade e unilateralidade. Há tempos reproduzimos a caracterização da autorização administrativa como ato unilateral, discricionário, precário e declaratório. Há tempos ouvimos que o convênio administrativo não é um contrato, e que os serviços públicos sociais são absolutamente indelegáveis.

Ocorre que várias afirmações como essas, se já serviram para categorizar o Direito Administrativo e explicar realidades outrora vivenciadas, não mais dão conta da realidade com a mesma pertinência. Vivenciamos um diuturno aumento de complexidade em todas as esferas, e o Direito enquanto técnica de ordenação social naturalmente tem de acompanhar e amoldar-se às crescentes – e cada vez mais velozes! – transformações do mundo contemporâneo.

Isso quer dizer que aprendemos e reproduzimos coisas que desde muito já não servem mais para explicar a complexidade de nosso cenário jurídico.

Todas essas fraudes inocentes têm algo em comum: são resultantes de um processo de generalização apressada que transforma em metonímia categorias jus-administrativistas fundamentais. Conceitos que deveriam ser aplicados apenas a uma espécie são alargados e utilizados para explicar o gênero – quase como afirmar que todo mamífero é terrestre ou que apenas aves põem ovos. Toma-se a parte pelo todo, impedindo-se que surjam novas categorias teóricas (sejam elas gêneros, espécies ou mesmo categorias intermédias). Afinal, os conceitos já existem, e todo desvio implica o cometimento de ilegalidades – ainda que tais conceitos sejam apenas doutrinários.

Essa falácia da sinédoque conduz a uma outra: a falácia dos binômios. Como as espécies são convertidas em gêneros, não se aceita que uma mesma figura seja explicada de mais de uma forma. Isso faz com que, para admitir desvios à teorização original, tenha de ser criada uma nova categoria paralela, supostamente a dar conta – integralmente – do outro “lado da moeda”.

Assim é que, para reconhecer o que não é serviço público, cunhou-se o conceito de atividade econômica em sentido estrito. Para explicar o que não é contrato, criou-se o paralelo convênio. Para compreender o que não é regime de direito privado, criou-se o regime de direito público.

Não que essas categorias não existam. Longe disso. O que incomoda é que a criação doutrinária de dois gêneros antagônicos, dotados cada um de uma única significação, obriga o intérprete a, quando da interpretação de dada figura, enquadrá-la de um lado ou de outro. Como se os gêneros cunhados (que na verdade são espécies) pudessem ter a pretensão de esgotar toda a realidade, impedindo a existência de categorias intermédias e tertium genera.

Temos, assim, um Direito Administrativo Tântrico, fissurado na reprodução acrítica de mantras do passado; um Direito Administrativo Metonímico, compulsivo por generalizações apressadas e sinédoques; e um Direito Administrativo Bipolar, com tara em binômios e dicotomias estanques.

Sempre chamou-me a atenção a peculiar interpretação que Walter Benjamin faz do quadro Angelus Novus de Paul Klee. Nela, Benjamin reflete que o quadro representa “um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente”, ao mesmo tempo em que ele gostaria de, nesse algo, deter-se. No entanto, “uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las”, impelindo-o “irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.” ( Teses Sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas, v. I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985, p. 226)

Poucas metáforas podem explicar com tanta pertinência o Direito Administrativo de hoje. 



Por Fernando Menegat (PR)

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