Colunistas

O Dispute Board e os Contratos de Concessão

ANO 2016 NUM 121
Flávio Amaral Garcia (RJ)
Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Professor de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas- RJ. Sócio do Escritório Juruena e Associados Advogados


26/03/2016 | 11059 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

Novos esquemas e arranjos de resolução e prevenção de conflitos e litígios contratuais são sempre bem-vindos no plano das contratações públicas. As concessões comuns e as parcerias público-privadas (concessão patrocinada e administrativa), em especial, são ajustes complexos que demandam uma elevada sofisticação na sua concepção, modelagem e, principalmente, gestão.

Empreendimentos públicos de grande porte são estruturados por intermédio de contratos coligados e por uma teia de relações jurídicas, técnicas, econômicas e financeiras interdependentes. A sua execução é, via de regra, complexa e geradora de possíveis conflitos entre as partes contratantes, mesmo quando o planejamento é concebido e estruturado com a eficiência desejada.

Não raro, diversas questões supervenientes e não cogitadas inicialmente na estruturação do projeto podem irromper durante a execução de contratos públicos duradouros, com destaque para os aspectos técnicos e operacionais das obras que suportam o empreendimento.

É relativamente comum que essas questões técnicas gerem conflitos entre os contratantes (Concedente e concessionário), com as partes assumindo posições antagônicas a propósito da compreensão, dimensão, causa, responsabilidade e consequências do conflito instaurado.

Examinar o conflito depois de instaurado, como ocorre nos casos em que as partes recorrem a via arbitral ou mesmo ao Poder Judiciário, apresenta um conjunto de obstáculos que tornam mais tormentosa a tarefa de dirimir o litígio.

Quatro razões podem ser apontadas: (i) o conflito já está instaurado e a posição adversarial dos contratantes bem definida; (ii) o custo elevado dos árbitros e da própria ação judicial; (iii) seja o árbitro ou o juiz, a resolução do conflito é exógena aos lindes contratuais e ex post à ocorrência do próprio litígio; (iv) o prejuízo para o atendimento do objeto e, consequentemente, do interesse público, porquanto o litígio, para além de acirrar a animosidade e a desconfiança entre as partes, pode atrasar a execução do empreendimento ou mesmo torná-lo de difícil implementação.

No plano dos contratos privados, em especial de construção, a dificuldade de gestão e prevenção dos aspectos técnicos e operacionais não é muito diferente, com o litígio causando atrasos ou adiamentos da obra e prejuízos financeiros para ambos os contratantes.

Foi considerando essa realidade que nos contratos privados de construção, a partir da década de 1970, empreendimentos de grande porte passaram a operar com um mecanismo preventivo, flexível, ágil, célere, consensual e pragmático na gestão dos contratos: o dispute board. Surgiu, pioneiramente, nos Estados Unidos em 1975, por ocasião do contrato de execução do Túnel Eisenhower, no Estado do Colorado. Conforme dissertam GILBERTO VAZ e PEDRO AUGUSTO NICOLI:

Em 1975, o procedimento de DB foi utilizado experimentalmente para acompanhar a execução do grandioso projeto de construção do segundo furo do Eisenhower Tunnel, no estado americano do Colorado, com absoluto sucesso. A partir de então, o método veio ganhando alguma relevância, com utilização em alguns projetos, sobretudo nos Estados Unidos, sendo que sua adoção pelas partes contratantes era objeto de negociações específicas, nem sempre fáceis, pois os proprietários relutavam em abrir mão do seu tradicional poder. (VAZ, Gilberto José. NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Os Dispute Boards e os contratos administrativos: são os DBs uma boa solução para disputas sujeitas a normas de ordem pública? Revista de Arbitragem e Mediação. Ano 10, vol. 38. Jul.-set. 2013).

Trata-se de uma espécie de Comitê de Solução de Controvérsia, formado por técnicos especializados (via de regra engenheiros e advogados), que acompanha a execução do contrato de obra desde o seu nascedouro, o que o coloca (Comitê) em condições extremamente favoráveis para a compreensão de todas as etapas de execução do objeto e, consequentemente, na própria percepção, avaliação e resolução dos conflitos que dele decorram.

Supõe-se que o Comitê, desde o início da execução do contrato, esteja familiarizado com as plantas, os orçamentos, o diário de obras, as fotografias, os relatórios, as correspondências entre as partes e tudo mais que se relaciona com a obra, além de acompanhar in loco o próprio avanço físico do empreendimento. Deve apreender todas as dimensões do negócio e estreitar uma saudável e dialógica relação com os contratantes.

O monitoramento concomitante da execução da obra por profissionais altamente qualificados e imparciais é, portanto, o diferencial do dispute board, permitindo que o Comitê atue em tempo real, evitando a ocorrência do litígio. Razoável classificar o dispute board como um mecanismo de gestão contratual preventivo e viabilizador de uma atuação ex ante do próprio conflito, dotado de uma racionalidade procedimental extremamente pragmática. 

A confiança é o cimento do dispute board, porquanto são as próprias partes que indicam os profissionais e experts responsáveis pelo monitoramento e acompanhamento da execução do objeto contratual.  A construção de uma solução a partir de mecanismos endocontratuais pode apresentar-se como o modo mais eficiente na elucidação das intercorrências que surjam no decorrer da realização do empreendimento, criando laços de solidariedade, cooperação e comprometimento entre as partes contratantes.

Mesmo que a atuação do Comitê não previna o litígio, é certo que as questões controvertidas entre as partes estarão mais amadurecidas, os distintos pontos de vista devidamente assentados, assim como os argumentos técnicos estarão racionalmente explicitados, tudo isso já avaliado por um grupo de profissionais especializados, que terão emitido uma opinião a propósito da controvérsia a partir dos elementos fáticos coletados durante a execução do objeto.

Donde se conclui que mesmo quando o dispute board não produza o resultado esperado e o litígio efetivamente se instaure, contribui decisivamente para o deslinde da questão, eis que na arbitragem ou na ação judicial, a matéria controversa já terá sido objeto de exame técnico aprofundado, com uma opinião abalizada dada quase que em tempo real da ocorrência do conflito. Como destaca Christopher. SEPPALA:

 “However, for the majority of disputes, the advantages of the Board should outweigh its disadvantages. It allows for speedy, interim decisions by technically qualified persons, independent of the parties, and yet familiar with the project. While the decisions of the Board cannot be expected to have necessarily been prepared with the care of arbitration awards, the Board satisfies the need in construction for quick and roughly accurate decisions, by a neutral decision-maker. In most instances, this is as much justice as an international contractor requires and, where a serious error may have occurred, it may still refer the matter to international arbitration.”(The new FIDIC provision for a Dispute Adjudication Board. Disponível em: http://fidic.org/sites/default/files/34%20The%20new%20FIDIC%20provision%20for%20a%20Dispute%20Adjudication%20Board.pdf. Data do acesso: 15/03/2016.

Outro aspecto importante a ressalvar é a ausência de disciplina legal específica sobre os dispute boards, o que remete a sua regulação, primacialmente, para o próprio contrato. Para além da liberdade das partes disporem sobre como o dispute board será operacionalizado, várias instituições renomadas dispõem de regulamentos que contém uma disciplina sobre o seu funcionamento, cabendo, dentre tantas outras, mencionar a Câmara de Comércio Internacional (www.iccwbo.org), a Federação Internacional dos Engenheiros Consultores (www.fidic.org), a Fundação dos Dispute Resolution Boards (http://www.drb.org), a Associação dos Árbitros Americanos (www.adr.org), e o Instituto de Engenharia (www.ir.org.br).

Grosso modo e com algumas variações entre os regulamentos e as próprias disposições contratuais, é possível identificar três espécies distintas de dispute boards. Nas palavras de ARNOLDO WALD “os dispute boards (DB) são painéis, comitês ou conselhos para a solução de litígios cujos membros são nomeados por ocasião da celebração do contrato e que acompanham a sua execução até o fim, podendo, conforme o caso, fazer recomendações (no caso dos Dispute ReviewBoards –DRB) ou tomar decisões (Dispute AdjudicationBoards – DAB) ou até tendo ambas as funções (Combined Dispute Boards – CDB), conforme o caso, e dependendo dos poderes que lhes forem outorgados pelas partes” (Dispute Resolution Boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 8, n. 30, p. 139-151, jul./set. 2011.)

O que distingue as formas de Dispute Boards é, como se vê, o grau de vinculação. Podem ser consideradas vinculantes (binding) ou não vinculantes (non-binding) ou, ainda, apresentar os dois efeitos.

Tomando como referência o Regulamento da ICC e na esteira das detalhadas explicações de ANNA CAROLINA MIGUEIS PEREIRA (Dispute Boards e administração pública: a utilização dos dispute boards como alternativa extrajudicial de solução de conflitos nos contratos administrativos. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, v. 15, n. 168, p. 9-28, fev. 2015),  o Dispute Review Board prevê que as opiniões ou orientações exaradas têm caráter de mera recomendação, que poderão espontaneamente ser cumpridas pelos contratantes. Quando isso ocorre, é de se supor que a qualidade técnica da recomendação e a consistência dos argumentos foi suficiente para o convencimento das partes, que acabam por adotar sponte própria a solução proposta, a bem da estabilidade e da boa execução do contrato.

No caso de silêncio dos contratantes e decorrido um prazo preestabelecido, a recomendação assume efeito vinculante e obrigatório.  Caso uma das partes não concorde com a recomendação, poderá objetá-la aduzindo as razões e motivos da sua discordância, obstando a produção de qualquer efeito. Caso isso ocorra, a matéria deverá ser solucionada em outra esfera (arbitral ou judicial).

No Dispute Adjudication Board a decisão é, desde o início, vinculativa para os contratantes, sem prejuízo do direito das partes a impugnarem, aduzindo as razões da sua discordância. A diferença é que a decisão, mesmo com o questionamento de uma das partes, produz efeitos vinculantes, devendo ser cumprida até que a controvérsia seja levada ao conhecimento do Poder Judiciário ou do Tribunal Arbitral.

No Combined Dispute Board identificam-se elementos das duas modalidades anteriores para que a decisão ostente caráter vinculante, é necessário que uma das partes requeira expressamente e a outra aquiesça ou silencie, quando emitirá tacitamente a vontade de tornar obrigatória a decisão proferida pelo Comitê. Admite, também, que o próprio Comitê profira decisões vinculantes quando o contrato assim disciplinar e em situações previstas e cogitadas no próprio Regulamento.

Para além da resolução das controvérsias, o board pode auxiliar e aconselhar as partes nas dúvidas relacionadas aos aspectos técnicos, em uma espécie de assistência informal (informal assistance), sempre com o dever de manter uma simétrica informação entre os contratantes acerca das ocorrências e questões afetas à execução do contrato.

Numa descrição bastante sintética, são esses os principais contornos do dispute board nos contratos privados de construção. Importa, na sequência, examinar a possibilidade da sua assimilação nos contratos administrativos de infraestrutura, em especial naqueles que recorrem à técnica das concessões, sejam elas comum, patrocinada ou administrativa, a partir de uma ideia matriz de que as concessões são contratos relacionais (Sobre o tema, ver meu  A mutabilidade e a incompletude na regulação por contrato e a função integrativa das agências. Revista de contratos públicos, v. 3, n. 5, p. 59–83, mar./ago., 2014).  

No tópico se destaca a lição de FERNANDO ARAÚJO:

 “Nessa acepção, o contrato relacional é aquele em que as partes não reduzem termos fulcrais do seu entendimento a obrigações precisamente estipuladas, porque não podem ou porque não querem, e se remetem a modos informais e evolutivos de resolução da infinidade de contingências que podem vir a interferir na interdependência dos seus interesses e no desenvolvimento das suas condutas, afastando-se da intervenção judicial irrestrita como solução para os conflitos endógenos para privilegiarem o recurso a formas alternativas de conciliação de interesses, seja as que vão emergindo da evolução da relação contratual, seja as que são oferecidas pelo quadro das normas sociais.” (ARAÚJO, Fernando. Teoria Econômica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007. p. 395).

Autor considerado referência nos contratos relacionais é MACNEIL, Ian. Contracts: adjustment of long-term economic relations under classical, neoclassical, and relation contract Law. Northwestern Universy Law Review, v. 72, n. 6, 1988. No Brasil, ver, ainda, MACEDO JR., Ronaldo Porto. Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, , 2007, e MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Os consórcios públicos. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Bahia, n° 05, julho/set. 2005

Em primeiro lugar, o exame empreendido até aqui permite extrair duas conclusões preliminares: (i) o dispute board é uma tecnologia contratual que pode ser utilizada a partir da autonomia negocial das partes em ajustarem procedimentos e esquemas de resolução e gestão preventiva dos litígios.  Diz mais com o contrato do que propriamente com a lei; (ii) pode ser enquadrada como uma forma alternativa de disputa, as conhecidas ADR’s (alternative dispute resolutions), que tem na arbitragem, mediação e conciliação, métodos e técnicas que instrumentalizam uma saudável consensualidade e cuja eficácia vem sendo, hodiernamente, reconhecida nos mais variados campos das atividades econômicas e sociais.

Não obstante não exista no ordenamento jurídico pátrio um dispositivo legal específico para o dispute board, pode-se extrair o seu fundamento, para as concessões comuns, no artigo 23-A da Lei nº 8.987/95, que admite o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato e no artigo 11, inciso III, da Lei nº 11.079/04, que expressa a mesma autorização para as parcerias público-privadas (concessões patrocinadas e concessões administrativas).

Para além disso, nos contratos administrativos financiados com recursos de organismos internacionais, o artigo 42, § 5º, da Lei nº 8.666/93 admite expressamente a importação de normas e procedimentos das referidas entidades, o que pode resultar na utilização obrigatória do dispute board, caso seja considerado indispensável para o êxito do negócio pelo organismo financiador

FERNANDO MARCONDES esclarece, por exemplo, que para liberar financiamentos de obras de grande porte (com valores superiores a U$ 50 milhões), o Banco Mundial impõe como regra a contratação de um Dispute Board, noticiando, ainda, a sua exitosa utilização em diversos países. Neste sentido, manifesta-se Fernando Marcondes: “A utilização de “dispute boards” em contratos de construção é algo há muito tempo estabelecido e pacificado em países como os Estados Unidos, a Inglaterra, membros da União Européia e, na América Latina, principalmente o Chile.” (MARCONDES, Fernando. A Hora e a Vez dos “Dispute Boards” nas Grandes Obras Brasileiras. Disponível em: http://direitoaoponto.com.br/a-hora-e-a-vez-dos-dispute-boards-nas-grandes-obras-brasileiras. Data do acesso: 11/03/2016). 

A previsão contratual de um Comitê de experts para acompanhar e monitorar a execução do objeto, bem como solucionar, em primeira linha, os litígios e controvérsias (essencialmente de índole técnica), que se sucedam durante a sua execução não implica, a nosso ver, em renúncia a Direito ou avanço em qualquer direito indisponível ou inegociável. Trata-se, ao revés, de uma ferramenta endógena ao contrato que pode se revelar extremamente eficiente, porquanto confere maior efetividade na gestão e consecução dos seus objetivos.  

Evitar o conflito ou gerenciá-lo de forma eficiente é um modo de atender o interesse público. Importa para ambas as partes descortinar a verdade real na execução do contrato e, para tanto, indispensável uma atuação concomitante, técnica, imparcial e atenta para todas as intercorrências supervenientes que surjam em contratos complexos.

Novos mecanismos devem ser considerados para flexibilizar a rigidez que norteia a elaboração e gestão dos contratos, com isso modificando a equivocada premissa de que indisponibilidade do interesse público é sinônimo de vedação de negociação e de arbitrabilidade.

Não se trata de alienação dos poderes administrativos ou mesmo renúncia às prerrogativas de autoridade, mas apenas um modo negociado e consensualizado do exercício do poder de monitorar e acompanhar o contrato, alicerçado na confiança das partes depositada nos experts indicados e na tomada de uma posição menos unilateral, assimétrica e imperativa do ente público, o que se alinha com uma visão cooperativa e não antagônica na relação contratual pública.  

O dispute board pode colaborar para uma compreensão das concessões como efetivas parceiras, eis que estimula a criação de um vínculo de confiança recíproco que favorece a manutenção de alianças negociais duradouras.

Contratos incompletos, como são as concessões, podem ser um campo fértil para ferramentas contratuais como o dispute board, que agrega eficiência, previsibilidade, gestão e transparência na execução dos contratos administrativos. Com efeito, uma das preocupações centrais da regulação por contrato deve ser com a sua gestão. O delineamento de um processo racional e funcional do seu efetivo monitoramento é absolutamente indispensável para a consecução do interesse público.

O Direito, como de resto ocorre em outros campos da ciência, deve preferir instrumentos preventivos que evitem a ocorrência do dano, do prejuízo ou do próprio conflito. Precaver significa adotar mecanismos para refrear a ocorrência de eventos ruinosos ao contrato e que causem efeitos indesejáveis aos interesses de ambas as partes.

O dispute board é, sem dúvida, uma ferramenta de antecipação e prevenção, cuja utilização ainda é muito tímida no Direito Público pátrio. Trata-se de um instrumento alinhado com os paradigmas de um Direito Administrativo mais consensual, flexível, transparente, eficiente e cooperativo e, consequentemente, menos imperativo, rígido, opaco, ineficiente e necessariamente adversarial.

Enfim, o dispute board não é uma solução mágica capaz de inibir todo e qualquer conflito ou mesmo um instrumento de gestão infalível, mas apenas uma ferramenta que merece entrar nas cogitações do Direito Público Contratual, porquanto apresenta a virtude pragmática de fomentar a cooperação, a confiança, a lealdade e a boa-fé entre as partes, valores tão caros em contratos de longa duração, incompletos e com elementos relacionais como o são as concessões (comum, patrocinada e administrativa). 



Por Flávio Amaral Garcia (RJ)

Veja também