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Você é ímprobo!

ANO 2016 NUM 53
Flávio Henrique Unes Pereira (MG)
Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Coordenador e professor do curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo do IDP/DF. Presidente do Instituto de Direito Administrativo do DF. Advogado.


13/01/2016 | 7263 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Costumo dizer em sala de aula que é bem mais fácil admitir o cometimento de alguma infração administrativa digamos “comum”, tal qual a que resulta em multa de trânsito, a reconhecer ato de improbidade.

Essa afirmação é tão evidente que seria mesmo desnecessário pronunciá-la. Afinal, não precisa ser operador do Direito para associar à ideia de ímprobo a de desonesto.

Mas essa diferença não tem sido apreendida pela jurisprudência pátria. São muitos os casos de condenação de agentes públicos por atos de improbidade que, na verdade, podem até ser considerados ilegais, mas jamais ímprobos.

Desde o gestor que, embasado em parecer jurídico sem erro grosseiro, homologa processo licitatório eivado de alguma irregularidade, ao servidor que emite algum documento irregular, sem que isso tenha causado qualquer comprometimento do interesse público, são considerados desonestos.

Vou me ater a um exemplo, que chegou até mim por meio de um aluno.

Trata-se do agravo em recurso especial n. 73.968/SP, que manteve condenação por ato de improbidade de uma médica que emitiu atestado em seu próprio favor. Antes de nos apressamos na conclusão, vamos ao caso e suas especificidades, pois sem isso, inviável a Justiça.

O laudo médico atestou que a servidora está apta a tomar posse em cargo público, o que foi confirmado por outro laudo de outro médico. Consta do voto do Ministro relator do caso: “Como constatado pelo acórdão recorrido, o laudo emitido pela recorrente em seu próprio benefício não foi determinante para sua posse no cargo público, porquanto esta também se apoiou em laudo médico emitido por outro profissional.”

Ora, então a servidora não se beneficiou do laudo por ela emitido, a revelar o erro escusável de sua parte quando emitiu o atestado em relação a si mesma.

Indaga-se: nesse cenário, pode-se falar em ato ímprobo? Pode-se dizer que ela é ímproba?

O STJ entendeu que sim, embora o Ministro Napoleão tenha alertado (e ficou vencido) que “a conduta da servidora não tem a relevância infracional que se lhe atribuiu, porquanto, em primeiro lugar, esse laudo médico não está imputado de falsidade, até porque (a) não serviu para a finalidade pretendida e (b) foi lastreado em laudo de outro médico, este sim, o prestante para a posse da recorrente no cargo.”

Esse exemplo – e há muitos outros – revela a banalização do uso da ação de improbidade administrativa como se fosse o único meio de reagir a ilegalidades ou irregularidades. É preciso retomar o sentido da Lei de Improbidade, questionando, inclusive, o cabimento da modalidade culposa, sob pena de afastarmos pessoas idôneas da função pública, desencorajando-as de ocupar cargos públicos.

Devemos recordar que há o regime da ação civil pública ou da ação popular ou o processo administrativo como alternativas para ressarcir o erário ou inibir práticas ilegais ou irregulares desprovidas do dolo no sentido da vontade livre e consciente de atingir o fim vedado pelo Direito (e não me venham falar em “dolo genérico”, ao menos da forma como a jurisprudência tem usado).

Aliás, no âmbito eleitoral, o tema da improbidade é igualmente relevante e preocupante, porquanto a alínea “g”, do inciso I, do art. 1º, da LC 94, prevê como causa de inelegibilidade a rejeição de contas por vício insanável que configure ato doloso de improbidade. A valoração jurídica sobre a nota de improbidade cabe à Justiça Eleitoral, porquanto os Tribunais de Contas não têm competência para tanto.

No RESpe n. 143-13 (TSE), entendeu-se pela configuração de ato doloso o fato de o candidato não ter cumprido, quando gestor municipal, “convênio firmado com o Ministério da Saúde ao promover ‘uma aquisição a menor de leite em pó e a maior de óleo de soja no âmbito do Programa de Atendimento aos Desnutridos e às Gestantes de Risco Nutricional.’”

Muito embora o acórdão regional então recorrido tenha ressaltado que se tratava de “mera imperícia do administrador”, o TSE reformou a decisão, posicionando-se pela ocorrência de ato doloso de improbidade. Segundo o Ministro Relator, “não é lícito ao administrador desconhecer as leis e os convênios aos quais sua gestão está vinculada.” E, ainda, que não se exige “o dolo específico, bastando para a sua configuração a existência de dolo genérico ou eventual, o que se caracteriza quando o administrador deixa de observar os comandos constitucionais, legais ou contratuais que vinculam a sua atuação.”

Tudo isso chama a nossa atenção para a necessidade de darmos a devida importância ao Direito Administrativo Sancionador, sob pena de a provocação que faço em sala de aula fazer sentido: prefiro a condenação penal à administrativa, pois naquele regime tem sursis, transação penal, respeito a dosimetria e culpabilidade, entre outras garantiras, ao passo que no regime administrativo, o que há, muitas vezes, é um fetiche pela pena de demissão, cassação de aposentadoria ou mesmo condenação por ato de improbidade.

Fico aqui pensando se o significado do “você é ímprobo” é que mudou ou se perdemos todos a sensibilidade, o cuidado pelo outro, em desprestígio da Justiça.

 

 



Por Flávio Henrique Unes Pereira (MG)

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