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A revolução silenciosa: o fim dos limites à mutabilidade dos contratos de concessão

ANO 2017 NUM 369
Gabriela Miniussi Engler Pinto (RJ)
Sócia do Portugal Ribeiro Advogados. Mestre em Direito (LL.M., James Kent Scholar) pela Columbia Law School.


28/07/2017 | 8352 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Recentemente, muito se falou da Medida Provisória no 752/2016, já convertida na Lei Federal no 13.448/2017 (“Lei 13.448”). As discussões acerca da possiblidade de relicitação e prorrogação antecipada dos contratos de parceria no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) têm protagonizado o debate, mas a verdadeira revolução trazida pela Lei 13.448 foi silenciosa, singela e impreterível. Já nas disposições finais, foi o artigo 22 que de fato revolucionou o direito das concessões, selando em lei entendimento de que não há limites quantitativos pré-definidos para a alteração de contratos de concessão e PPP. Esse entendimento, apesar de há muito defendido pelos especialistas no tema, era geralmente ignorado pelas nossas burocracias.

Determina o artigo 22 da Lei 13.448 que “as alterações dos contratos de parceria decorrentes da modernização, da adequação, do aprimoramento ou da ampliação dos serviços não estão condicionadas aos limites fixados nos §§ 1o e 2o do art. 65 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.” Ou seja, fica superada qualquer dúvida acerca da não aplicabilidade, aos contratos de concessão comum, administrativa e patrocinada, dos limites de 25% do valor inicial atualizado do contrato para acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, e de 50% para acréscimos no caso de reforma de edifício ou de equipamento.

Parece ter passado desapercebida, mas tal alteração legislativa é absolutamente vital para a sobrevida dos contratos de parceria.

Isso porque finalmente acolhe a inquestionável distinção entre os regimes jurídicos das obras/serviços e das concessões/parcerias público-privadas no tocante aos limites à mutabilidade contratual. Assimila que nem sempre faz sentido aplicar a todas as espécies contratuais a mesma regra; a própria ideia de usar o ‘valor de contrato atualizado’ como referência de limite à alteração contratual é algo sem sentido no universo das concessões, uma vez que esse valor pode ser determinado de diversas formas e não tem referência padrão  (seria o valor do investimento a valor presente? Ou a preços constantes somado ano a ano? Ou o valor das receitas do concessionário? Ou ainda o valor da contraprestação pública?).

Especificamente, o artigo 22 significa reconhecer que, nos contratos de parceria, a incerteza na execução do objeto contratual - decorrente sobretudo do extenso prazo contratual e das implicações que o decorrer do tempo têm sobre a execução do contrato - é latente.

A incerteza relativa ao prazo está no fato de que os contratos de concessão e PPP foram e são celebrados com vigência de 20, 35 ou mais anos. Isso porque esses contratos em regra pressupõem a realização de investimento relevante pelo contratado em determinada infraestrutura para a prestação dos serviços, que é amortizado e remunerado por meio da operação do próprio serviço pelo contratado, ao longo dos anos. Assim, a longevidade dos contratos de parceria é corolário do princípio da modicidade tarifária ou da modicidade dos pagamentos públicos, pois quanto mais longo o contrato de concessão ou PPP, mais diluído ao longo do tempo será o pagamento ao concessionário pelos investimentos que ele realizará, de forma a compatibilizar a necessidade de acesso ao serviço a ser prestado, com a capacidade de pagamento dos usuários ou do poder público.

Não obstante, é inquestionável que quanto mais longo o horizonte contratual, maiores são as incertezas inerentes à sua execução. Ao administrador público é impossível conhecer, hoje, as alterações e ajustes que se farão necessários nos contratos de parceria em 30 anos.

E o problema da incerteza somente pode ser equacionado com flexibilidade. A regra dos §§ 1o e 2o do art. 65 da Lei no 8.666/1993 jamais foi apropriada para contratos de parceria, no sentido de conferir a necessária flexibilidade para adequação contratual no transcorrer do tempo. Nesse sentido, o afastamento dos limites à mutabilidade contratual sobre as concessões confere a necessária versatilidade ao gestor público para lidar com as incertezas inerentes aos contratos de parceria. Aliás, por tudo isso, é certo que a regra do artigo 22 deve ser aplicável a todos os contratos de parceria – federais, estaduais e municipais – e não apenas àqueles integrantes do PPI.

Isso não significa dizer que agora inexiste qualquer limite às alterações contratuais que tenham por objeto a modernização, adequação, aprimoramento ou ampliação dos serviços concedidos. A não incidência dos §§ 1o e 2o do art. 65 da Lei no 8.666/1993 sobre os contratos de parceria significa apenas que aquelas balizas não são aplicáveis; outros limites decorrem do ordenamento jurídico e a norma do artigo 22 da Lei 13.448 deve ser interpretada sistematicamente com as demais disposições legais aplicáveis à matéria.

Para que seja juridicamente legítima, a alteração contratual deve (i) ser necessária para se atingir a finalidade – o interesse público – que motivou a contratação; (ii) não implicar violação à exigência constitucional de licitação prévia e ao princípio da vinculação objetiva ao instrumento convocatório, com frustração de processo competitivo, o que requer que seja preservada a natureza do objeto contratual; e (iii) preservar a equação econômico-financeira do contrato e os direitos do contratado.

A avaliação de aderência da alteração ao interesse público subjacente à contratação original deve ser feita caso a caso e, observados os limites da razoabilidade, deve ser feita deferência à discricionariedade do gestor público. É muito difícil (se não impossível), ex ante, determinar em abstrato quais alterações seriam ou não necessárias à consecução da finalidade precípua que motivou a contratação.

Não obstante, essa reflexão passa por questões como: qual a relação de custo-benefício entre promover a alteração contratual no bojo de nova licitação (e, portanto, novo contrato) ou no âmbito do próprio contrato? Trata-se de uma situação de premência? Há casos nos quais a questão temporal é central para a consecução dos objetivos da Administração Pública: quanto tempo levará para a satisfação da necessidade pública considerando as alternativas de aditamento do contrato original ou realização de nova licitação e quais são os prejuízos potenciais decorrentes de eventual atraso? Em suma, é preciso que essa reflexão seja balizada pelos princípios da eficiência e economicidade, e que eventual urgência da Administração não seja ignorada.

Evidente que, em qualquer hipótese, deve o administrador preocupar-se em assegurar o cumprimento dos princípios da obrigatoriedade de prévia licitação e da isonomia. Se resultar da análise de custo-benefício que é necessária a realização de nova licitação, não pode o administrador furtar-se a fazê-la. O importante é que esteja sempre assegurado o atendimento ao interesse público subjacente ao caso concreto, que não pode ser sacrificado.

Em relação à preservação do objeto e natureza do contrato, é fundamental que haja pertinência temática da modificação contratual pretendida vis a vis o objeto e a natureza do contrato original. A mutação não pode ser tal que substitua o objeto do contrato por outro distinto nem desvirtue a sua natureza a ponto de torná-lo um instrumento estranho ao original.

Por último, toda alteração deve necessariamente desencadear processo para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, de modo a preservar a relação original entre encargos e vantagens.

Quanto ao direito dos contratados, toda alteração contratual deve preservar a viabilidade de adimplemento do objeto, pelo particular. Nesse sentido, não podem ser admitidas alterações que, de algum forma, privem o contratado de seus direitos, prejudicando as condições necessárias para que ele dê cabo à execução contratual, tais como a realização de investimentos e a contratação de empréstimos. A regra busca também evitar situações nas quais o particular se vê obrigado a acatar modificações unilaterais incompatíveis com a adequada execução do contrato original.

Em conclusão, a alteração legislativa promovida pelo artigo 22 da Lei 13.448 merece aplausos e representa inequívoco avanço no sentido de fortalecer os contratos de parceria, na medida em que contribui para equacionar os problemas de incerteza típicos das concessões. A revolução foi silenciosa mas seus efeitos ecoarão ao longo do tempo.



Por Gabriela Miniussi Engler Pinto (RJ)

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