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O critério da seletividade no ICMS: faculdade ou dever?

ANO 2015 NUM 50
João Paulo Fanucchi de Almeida Melo (MG)
Professor de Direito Tributário da Pós-Graduação e Graduação da PUC - Minas e Professor da Pós-Graduação do IDDE. Doutorando e Mestre em Direito Público pela PUC- Minas. Presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/MG. Diretor da ABRADT, IEFi e IAMG. Ex-Conselheiro do CART/BH. Advogado Sócio da Almeida Melo Sociedade de Advogados.


21/12/2015 | 11337 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

A arrecadação tributária é indispensável para que o Estado possa se manter e investir, devendo ter como meta proporcionar o bem comum. Este é o ideal. Em regra, sem a arrecadação tributária, o Estado não consegue se sustentar, o que, por conseguinte, inviabiliza o exercício de direitos, inclusive os individuais.

O cidadão/contribuinte que sustenta o seu direito à propriedade ou à segurança, por exemplo, deve ter em mente a indispensabilidade do Estado, que, com a sua estrutura em sentido amplo, garantirá o exercício de direitos. Portanto, os tributos são necessários.

Por isso, e dentre outros fundamentos, cada vez mais venho voltando o meu discurso para que, em vez de verificar individualmente a quantidade da arrecadação de tributos, analisemos a qualidade dos gastos/despesas públicas. É necessário analisar eficiência, transparência, coerência, economicidade etc. do orçamento público, contrapondo as receitas, inclusive a de natureza tributária, e as despesas públicas. Especialmente a partir das experiências de parte da Europa, em regra, o povo admite a tributação desde que exista proporcionalidade e adequação com o retorno estatal.

Nessa linha, o Estado, agindo com ética no orçamento público, terá a legitimidade – e não somente a legalidade – como fundamento da tributação. Assim, num discurso muito distante da realidade brasileira atual, a tributação poderia ser melhor admitida pelo cidadão de bem.

Até que se alcance o Estado ideal na versão brasileira, não se pode olvidar que o poder tributário do Estado não pode ser feito sem limitações e garantias, até para que a confiança e legitimidade não sejam abaladas. Dentre as mais admiradas, a igualdade e a capacidade contributiva.

Em meu livro, “princípio da capacidade contributiva: a sua aplicação nos casos concretos” cheguei à conclusão de que igualdade e capacidade contributiva possuem total autonomia. Ou melhor, a capacidade contributiva teria dois vieses: princípio constitucional autônomo e medida de comparação para igualdade tributária na exação tributaria fiscal.

No entanto, o princípio da capacidade contributiva não se otimiza em máxima medida na tributação indireta, a exemplo do ICMS e do IPI. Daí porque a Constituinte positivou outro princípio, segundo a maioria dos autores tributaristas, também de ordem constitucional: a seletividade. Já que não seria possível verificar a capacidade contributiva do contribuinte de fato ou econômico na tributação sobre o consumo, utiliza-se o denominado princípio da seletividade, até por mandamento constitucional.

A meu ver, seletividade não seria um princípio jurídico, de acordo com as teorias dos princípios no paradigma contemporâneo. Na verdade, a seletividade seria um critério constitucional ou, caso prefira, regra constitucional, direcionado ao legislador instituidor do ICMS de cada Estado membro da Federação.

Pois bem. A seletividade está diretamente entrelaçada com a ideia de essencialidade. Logo, quanto mais necessário e essencial for o produto/mercadoria, menor deve ser a alíquota; quanto mais supérfluo ou menos essencial for o produto/mercadoria, maior será a alíquota.

A Constituição, contudo, ao tratar da seletividade, impôs de forma obrigatória a sua utilização no IPI, ao passo que, no ICMS, teria colocado como faculdade. Nos termos da Constituição, o IPI “deverá” ser seletivo e o ICMS “poderá” ser seletivo.

Assim, ao se debruçar pelas leis instituidoras do ICMS nos Estados membros, não são raras as oportunidades que verificamos grandes incoerências, como, por exemplo, a tributação da energia elétrica residencial ter alíquotas altíssimas, em alguns casos, as mais altas dentre todas.    

O suporte da manutenção desta postura está principalmente sustentado na fundamentação da literalidade, isto é, que a Constituição, no ICMS, e diferentemente do IPI, somente recomenda a seletividade, não se tratando de princípio/regra/critério obrigatório.

Nesse espeque, até concordo com que a seletividade seja de observância facultativa pelo legislador tributário instituidor do ICMS. Afinal, é impossível não diferenciar os comandos constitucionais diversos para o IPI (deverá) e ICMS (poderá ser).

Nesse diapasão, o legislador estadual poderia instituir o ICMS e positivar uma só alíquota para todas as mercadorias que fossem circuladas. Assim, o caviar, a embarcação, o carro, o feijão, o arroz etc., essenciais ou não, teriam uma só alíquota. Nesta hipótese, a seletividade não teria sido utilizada. A faculdade constitucional não teria sido exercida. A meu ver, não seria o melhor, mas não se pode olvidar que é um caminho disponível.

Entretanto, quando o legislador estadual trabalha no campo abstrato normativo com alíquotas diferenciadas, como o que se verifica em todos os Estados da Federação, entende-se que a seletividade, que é faculdade, foi efetivamente utilizada.  Em sendo assim, se há mais de uma alíquota prevista na lei instituidora do ICMS, ou seja, se se diferenciou mercadorias a partir de alíquotas diversas, a seletividade obrigatoriamente é o critério determinado pela Constituição para tanto e deve ser levada a sério. 

Com tudo isso, refuta-se os argumentos que se apegam à literalidade do texto constitucional. Não se trata de um princípio meramente político.

Por isso, entendo que é o caso de todo o Poder Judiciário, a exemplo do TJRJ (vide Arguição de Inconstitucionalidade n. 27/2005 - Rel. Des. Roberto Wider. Julgamento em 27/03/2006), quando provocado, acolher os pedidos que peçam declaração de inconstitucionalidade nos casos de abuso do legislador que, ao adotar a seletividade, desvirtua-se do seu sentido e propósito, conforme compreensão de todo homem médio. O Supremo Tribunal Federal ainda enfrentará o tema no do RE n. 714.319/SC, com repercussão geral já reconhecida.

O Estado de Minas Gerais, que já utiliza tributação de 30% na energia residencial, promete, em janeiro de 2016, majorar de 18% para 25% a alíquota do ICMS da energia comercial. A meu ver, como posto acima, é uma inconstitucionalidade iminente e que deve ser combatida no Judiciário. Em adição, a energia elétrica já vem sofrendo altíssima majoração na sua tarifa no último ano, sendo absurda, agora, a elevação da alíquota do ICMS.

É incompreensível equiparar à aplicada para produtos como “armas e munições”, “fogos de artifício”, “embarcações de esporte e recreação, inclusive seus motores (...)”, “perfumes, exceto água-de-colônia, cosméticos e produtos de toucador (...)”, “jóias (...)”, “combustíveis para aviação”, dentre outros.

Posturas desta natureza é que deixam cada vez mais longe a relação de confiança na relação jurídica tributária entre Estado-contribuinte.

Portanto, é mais um caso em que o Estado não leva a sério a Constituição, especialmente em matéria tributária, caminhando, outra vez, na contramão da ética da tributação, proporcionando maior insatisfação ao seu povo, desestimulando a implementação da coerência, solidariedade, cooperação e sustentabilidade como norteadores da relação Estado-contribuinte, distanciando, assim, da legitimidade da tributação. Com este tipo de postura, o Estado permanecerá exercendo a tributação exclusivamente com amparo na legalidade.  



Por João Paulo Fanucchi de Almeida Melo (MG)

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