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Regulamento de Licitações e Contratos do Grupo Eletrobras

ANO 2018 NUM 384
Joel de Menezes Niebuhr (SC)
Advogado. Doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UFSC. Professor de cursos de pós-graduação. Ex-Presidente do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina.


17/01/2018 | 4332 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Recentemente o Conselho de Administração da Eletrobras aprovou o Regulamento de Licitações e Contratos, que servirá a todas as empresas da holding. Tive a satisfação de ser contratado pela Eletrobras para atuar como consultor e participar ativamente de todo o processo de construção do Regulamento, ao lado de colaboradores competentes selecionados de todas as empresas do Grupo, coordenados, com entusiasmo, por Ana Lúcia Romualdo Cortez, Superintendente de Infraestrutura e Suprimentos da Eletrobras. Tive a incumbência de redigir a primeira minuta, participar de discussões com todas as empresas do Grupo e redigir a versão final, consolidando as sugestões. Foi uma experiência muito rica, que quero compartilhá-la neste texto e destacar as premissas e alguns pontos inovadores do Regulamento. O propósito é dividir a experiência, quase contar uma história, trocar algumas impressões e, por isso, escrevo na primeira pessoa.

De largada, era preciso definir a metodologia para a construção do Regulamento. E aqui se apresentavam alguns desafios. O primeiro é que o Regulamento deveria abranger todas as empresas do Grupo, que se espalham por todo o Brasil, com realidades, demandas, estruturas e procedimentos diferentes. O segundo é que era necessário dispor com clareza como seria a minha interação, um terceiro contratado, com a Eletrobras e demais empresas do Grupo. Portanto, a metodologia precisava passar por um grande alinhamento de expectativas, dentro da Eletrobras, da Eletrobras com as empresas do Grupo e da Eletrobras e empresas do Grupo comigo, que deveria auxiliá-los.

Pois bem, para alinhar as expectativas, resolvemos conversar tête-à-tête. A Eletrobras promoveu uma ampla reunião com representantes de todas as empresas, para tratar das impressões sobre a Lei n. 13.303/2016 e sobre como deveria ser o Regulamento, os principais problemas do Grupo com licitações e contratos, temas que deveriam ser enfrentados e caminhos para as soluções. Ouvi muito mais do que falei. Combinamos algumas coisas.

A primeira foi que o Regulamento não deveria apenas repetir a Lei n. 13.303/2016, que ele deveria avançar, sobretudo no desenvolvimento de processos administrativos internos bem estruturados, estabelecendo etapas, instâncias e informações a serem consideradas para a tomada de decisões. A intenção era conferir mais segurança jurídica para os colaboradores da Eletrobras e melhorar a qualidade das decisões.

Ligada a essa questão, surgiu uma outra: se o Regulamento deveria ou não reproduzir o que estava na Lei n. 13.303/2016 e, a partir daí, avançar. Decidimos que não deveria reproduzir. Ele complementaria a Lei, não a repetiria. Se repetisse, ficaria bem mais longo do que ficou. E haveria o risco de ocasionais desencontros entre a Lei e o Regulamento, provocando insegurança jurídica. Por exemplo, o Regulamento não repete as hipóteses de dispensa de licitação. Elas já estão na Lei, não há utilidade em repeti-las. O útil é avançar, preencher os espaços que possam ser preenchidos. Nesse sentido, o Regulamento trata do processo administrativo para a contratação direta, realçando as peculiaridades de cada caso que precisam, na visão da Eletrobras, ser realçadas. Por consequência, o Regulamento sozinho não basta, ele precisa ser compreendido junto com a Lei. O Regulamento não livra os colaboradores da Eletrobras de trabalhar com a Lei.

A segunda combinação foi que o Regulamento deveria ser explícito a respeito das maiores dúvidas ou divergências a respeito da Lei n. 13.303/2016. O Regulamento não deveria tangenciá-las nem ficar em cima do muro. De uma maneira geral, reconhecendo que há exceções, tenho visto que a maioria dos regulamentos produzidos por estatais até o momento é relativamente superficial, meio que repete a Lei e fica nela, deixa as questões quicando. A Eletrobras quis enfrentar de peito aberto esses pontos mais sensíveis. Ainda que alguns deles tenham passado desapercebidos, posso afirmar que todos eles previamente identificados por mim e pela equipe do Grupo Eletrobras foram enfrentados. Não sei se bem enfrentados, o tempo dirá. Mas enfrentados foram.

A terceira foi que o Regulamento deveria “abrir” e não “fechar”. Explico melhor. A Lei n. 13.303/2016 amplia em muito o arco de competências discricionárias dadas aos agentes das estatais, principalmente se comparada com a Lei n. 8.666/1993. De uma maneira geral, o que a Lei n. 8.666/1993 obriga a Lei n. 13.303/2016 faculta, dá opções, alternativas a serem exploradas de acordo com as peculiaridades de cada caso. O Regulamento deveria prestigiar as competências discricionárias sob a perspectiva de que elas levariam à tomada de decisões mais adequadas, reconhecendo que os agentes das estatais detêm as melhores condições para encontrarem as decisões mais adequadas.

A quarta foi que o Regulamento, fundado na Lei n. 13.303/2016, deveria se desvencilhar da Lei n. 8.666/1993. O Regulamento deveria olhar para a frente e não para trás. A nova legislação, formada pela dobradinha Lei n. 13.303/2016 e Regulamento, representa, acima de tudo, uma grande oportunidade de avanços nos processos de contratação. A vontade foi a de aproveitar essa oportunidade, com processos mais simples, céleres, confiáveis, seguros e com resultados melhores para todos os envolvidos, especialmente para o Grupo Eletrobras.

Afirmadas essas premissas, passei a escrever a primeira minuta do Regulamento. Diante de tudo isso, já sabia que o trabalho seria complexo e extenso. Para entrar em tantos detalhes, de forma tão abrangente, o Regulamento precisava ser longo.

E aqui, de novo, a dobradinha Lei n. 13.303/2016 e Regulamento faz sentido. A Lei enxuta, definindo as diretrizes, as possibilidades, e o Regulamento detalhado, descendo às minúcias, para estruturar os processos internos. A Lei é mais estável, difícil de ser mexida. Por isso, ela não deve entrar em detalhes – o que talvez tenha sido o grande erro da Lei n. 8.666/1993, extremamente detalhista. O Regulamento é menos estável, para alterá-lo basta uma decisão interna de cada estatal. Então, o Regulamento deve ir ao pormenor, que, se se revelar equivocado, pode ser alterado com facilidade. O Regulamento deve respirar, deve estar aberto ao aprendizado da experiência prática.

Dito isso, talvez o grande desafio inicial tenha sido criar uma metodologia que produzisse um regulamento sistematizado. Sempre critiquei a falta de caráter sistêmico da Lei n. 8.666/1993, não queria cometer o mesmo erro aqui. Cada assunto deveria ter o seu lugar próprio e não picado e espalhado ao longo de todo o texto. Comecei a escrever e senti dificuldades na divisão entre artigos, parágrafos, incisos, alíneas, de acordo com a estrutura usual empregada no Brasil. Daí tive um insight, lembrei da estrutura das Diretiva 2014/24, da União Europeia, em que cada artigo trata e praticamente exaure um assunto, subdividido em itens ou tópicos. Achei mais claro, mais fácil de sistematizar. Segui assim e acho que o resultado foi positivo.

No final, algumas coisas que propus não foram aceitas, o que tinha certeza que ocorreria, porque o Regulamento é da Eletrobras e não meu. Aceitei essas mudanças com naturalidade. Passamos, depois da minuta acabada, por um longo processo de avaliação e debates com os colaboradores da Eletrobras. Aprendi muito. Eles tomavam a decisão final sobre pontos que haviam destacado, mas sempre depois de ouvir as minhas razões e debatê-las. Questões pontuais, mais ou menos relevantes, foram alteradas. A essência foi mantida.

O Regulamento ainda não começou a ser aplicado. Provavelmente, começará em fevereiro, porque ainda faltam ser aprovadas as minutas-padrão de editais e contratos. Ele não é perfeito, não está, nem de longe, imune a críticas. A aplicação prática exporá os seus defeitos. Espero que o Grupo Eletrobras tenha disposição para absorvê-los, para encontrar soluções hermenêuticas e mesmo corrigir o Regulamento naquilo que precisar ser corrigido. Tomara que tenha mais virtudes do que defeitos, que ajude, que represente verdadeiramente a oportunidade de um processo de contratação mais racional e melhor. Essa é a minha expectativa e, tenho certeza, a de todos os envolvidos por parte do Grupo Eletrobras. Da minha parte, agradeço o convívio, o aprendizado e a dedicação de tantos do Grupo Eletrobras que se empenharam na produção do Regulamento.



Por Joel de Menezes Niebuhr (SC)

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