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Direito de Reunião: limites

ANO 2015 NUM 47
Marcio Cammarosano (SP)
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo. Advogado.


15/12/2015 | 57838 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de 1.988 prescreve:

“Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qulaquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XVI – Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;”

Referido dispositivo constitucional é indissociável de um Estado de Direito Democrático na medida em que assegura a todos o direito de reunião em locais abertos ao público.

Trata-se, portanto, de direito fundamental, impondo-se a todos, agentes públicos e cidadãos em geral, pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, órgãos públicos despersonalizados, enfim, rigorosamente a quem quer que seja, o dever de respeitar, assegurar, não impedir, não embaraçar, não frustrar o regular exercício desse direito. Os que atentarem contra ele, por ação ou omissão, é que se sujeitam a responsabilização, inclusive por abuso de autoridade, se for o caso.

Por outro lado, não há como confundir liberdade de reunião e de manifestação com direito de exercício dessa mesma liberdade, que pressupõe, obviamente, exercício nos termos da ordem jurídica em vigor, explícitos e implícitos, termos esses que a interpretação dos textos jurídicos normativos, a ser levada a efeito consoante lições de hermenêutica, possibilita identificar.

Com efeito, direitos assinalados pela Constituição e legislação em geral são assegurados nos termos da ordem jurídica em vigor, que consubstancia limites, condicionando-os de sorte a ajustá-los a outros direitos, individuais ou coletivos, que também devem ser assegurados e protegidos.

Como é cediço, os direitos de uns vão até onde começam os direitos dos outros, e é na própria ordem jurídica posta, vigente, que vamos encontrar os limites dos direitos de uns e outros, limites esses que se forem ultrapassados, implicarão o dever de atuação dos responsáveis pela preservação da ordem jurídica que esteja sendo violada, ou na iminência de o ser. E referida atuação também deve conformar-se com o ordenamento jurídico, sob pena de uma atuação originalmente licita converter-se, ela mesma, em atuação ilícita, acarretando a responsabilização dos que exorbitarem no exercício de sua competência.

As considerações que acabamos de fazer nos permite dizer o óbvio: O direito de liberdade de reunião e de manifestação em locais abertos ao público não é ilimitado. Há, repita-se, limites e condicionamentos extraíveis da Constituição e das leis em geral.

Vejamos, por ora, qual nos parece ser o sentido e alcance, em linhas gerais, da disposição constitucional inicialmente transcrita que, diga-se desde logo, é de eficácia plena e aplicabilidade imediata.

A liberdade de reunião prescrita no art. 5°, inciso XVI da Constituição de República pode ser exercitada desde que: a) seja pacifica, sem a pratica de violência de qualquer espécie e contra quem quer que seja, de sorte que se se transformar em tumulto, colocando em risco bens juridicamente protegidos, a autoridade pública pode e deve intervir na medida do estritamente necessário ao restabelecimento da ordem pública e proteção de direitos. Se possível identificar e neutralizar os responsáveis pelo tumulto, restabelecendo-se a ordem pública, e garantir que a reunião ou manifestação prossiga regularmente, é o que se impõe; b) mesmo que pacifica, é vedado a quem quer que seja participar da reunião ou manifestação, portanto armas de qualquer espécie, ou objetos que sirvam como tal; c) o local deve ser aberto ao público, como praças e vias públicas, mas não se afigura admissível que um grupo reduzido de manifestantes obste o uso das vias públicas pela população em geral; a ocupação total do espaço de vias públicas, interruptiva do trânsito, por exemplo, só será admissível, em tese, se a quantidade de participantes for tal que sem essa ocupação ver-se-ia frustrado o evento ou minimizada sua importância e significação; d) a reunião ou manifestação não pode frustrar outra anteriormente convocada para o mesmo local; e) deve haver prévio aviso à autoridade ou autoridades competentes, assim consideradas aquelas responsáveis pela ordem pública e preservação dos locais a serem utilizados pelos que querem se reunir e manifestar-se. Previamente avisadas, e com antecedência razoável, as autoridades poderão planejar o acompanhamento da reunião, e a adoção de providências mitigadoras dos seus eventuais impactos negativos em termos, por exemplo, de mobilidade urbana, atuando de forma preventiva e, se absolutamente necessário, até de forma repressiva.

É de se reconhecer a existência de outros direitos, individuais e coletivos, cujo exercício depende do uso de vias públicas e de equipamentos, edifícios, públicos e particulares, bem como da fruição de serviços, também públicos e particulares, aos quais deve ser assegurado o acesso pelos cidadãos em geral, de forma tão rápida e segura quanto possível.

Direito à circulação pelas estradas e sistema viário da cidade, de acesso aos locais de consumo, de trabalho e à própria residência ou domicilio, e estabelecimentos de ensino e de atendimento médico-hospitalar. Direito à fruição, enfim, de tudo que seja inerente à cidadania, ao estado de liberdade, especialmente de ir, vir e permanecer, transitando e ficando em locais públicos e particulares consoantes sua destinação legal.

Todos esses direitos não podem ser inviabilizados de inopino ao ensejo de manifestações públicas, especialmente as não organizadas e não comunicadas previamente a quem de direito, ou precariamente organizadas, e em locais e horários que provocam, e por tempo prolongado, o caos urbano ou extrema dificuldade não apenas ao tráfego e trânsito de veículos e pedestres, mas à própria atuação de agentes responsáveis pela segurança pública.

O exercício dos direitos consagrados no art. 5° da Constituição da República deve ser, evidentemente, assegurado, mas desde que exercido de forma a não inviabilizar de forma desarrazoada o exercício de outros direitos também constitucionais, sem embargo de que, diante de eventuais colisões de direitos, caiba ponderar quais os que, nas circunstâncias, devem momentaneamente preponderar. Mas essa ponderação há de ser levada a efeito consoante a hierarquia de valores e bens juridicamente protegidos pelo ordenamento jurídico.

Para esse efeito alguma disciplina infraconstitucional há de haver para maior segurança jurídica, sem prejuízo da parcimônia devida em termos de produção legislativa. Deve-se evitar que uma regulamentação excessiva ou draconiana venha, ela mesma, obstar o exercício do direito em questão que a Constituição expressamente consagra e garante.



Por Marcio Cammarosano (SP)

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