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Contrato de Impacto Social - CIS: importância e propostas de utilização

ANO 2019 NUM 425
Mário Saadi (SP)
Sócio de Direito Público e Infraestrutura de Tauil Chequer associado a Mayer Brown Doutor em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela FGV-SP. Professor da Pós-Graduação da FGV-Direito SP e Árbitro vinculado à CAMFIEP e à CAMES.


22/05/2019 | 5044 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

A Administração Pública, incluindo todo o conjunto de pessoas jurídicas de direito público, órgãos e entidades que a integram, existe para a concretização de finalidades públicas. As suas funções são legalmente instituídas para fixar balizas de ação: de um lado, delimitar (e limitar) como essas funções devem ser exercidas; de outro, garantir a concretização de direitos de que as pessoas em geral são titulares. Decisões devem ser tomadas de maneira institucionalizada, prospectiva, isonômica, razoável e em obediência ao Direito.

As competências detidas pela Administração Pública podem ser manejadas diretamente. Uma determinada Secretaria de Saúde possui servidores públicos para a prestação de serviços de atendimento à saúde da população em geral. Para isso, contrata médicos e enfermeiros, dispõe de prédios próprios, de frota de ambulâncias para transporte da população a ser atendida.

O mesmo ocorre com uma empresa pública criada para a prestação de serviços financeiros e bancários. Possui pessoal para atendimento diário à população, é proprietária de bens imóveis ao longo do território nacional, no qual os cidadãos são atendidos, dispõe de funcionalidades de tecnologia da informação para prestação de seus serviços e por aí vai.

Para além destas hipotéticas Secretaria de Saúde e empresa pública, outros exemplos poderiam ser dados. Seriam diversos, quase infindáveis. Basta pensar, cotidianamente, nas notícias que envolvem o Estado brasileiro, seus problemas, suas virtudes e as necessidades de melhoria na prestação de serviços, a preencher veículos de comunicação impressos, televisivos, radiodifundidos. Sem dúvidas o leitor mentalizará exemplos diversos!

Mas, além da prestação direta de serviços pelos entes da Administração Pública, há diversas relações jurídicas constituídas corriqueiramente com terceiros para que os tais serviços sejam prestados à população. Pensemos na mesma Secretaria de Saúde: ela contrata com terceiros, privados, diversos objetos, indo desde empreitadas para a construção de seus prédios, passando por avenças para compra de veículos e chegando a cursos de aprimoramento técnico de seu pessoal.

E a tal empresa pública que presta serviços financeiros e bancários? Segue a mesma linha: contrata serviços de tecnologia da informação para gestão de suas informações, operação e manutenção de datas centers para a proteção de seus dados, faz parcerias societárias para desenvolvimento de novos objetos.

A diversidade de assuntos a serem tratados em prol da população e de soluções (jurídicas, financeiras, técnicas – e pragmáticas, por que não?) que pautam a vida do gestor público faz com que essas escolhas sejam feitas diariamente. Não apenas as prestações diretas, mas também as realizadas por meio do intermédio de terceiros, que contratam com a Administração Pública e que com ela se relacionam, são materialmente relevantes para a adoção de soluções práticas, com o objetivo de satisfazer necessidades administrativas e da população. E a esta diversidade de temas corresponde, em termos jurídicos, uma diversidade de espécies de contratos, disciplinadas por leis específicas, para lidar com esses problemas corriqueiros da Administração Pública.

Quem nunca teria ouvido falar da Lei 8.666, que trata de licitações no país? A que ela se presta? Precisa de aprimoramentos? E o tal do Pregão? Ele é disciplinado juridicamente? O propósito da lei que o institui é o mesmo da Lei 8.666? E o que seria uma parceria público-privada – PPP? Ela é uma concessão de serviços públicos? Qual a diferença entre uma concessão e a prestação de serviços diretamente pelo Estado?

Em termos jurídicos, todas essas questões são relevantes. E, em termos de soluções jurídicas, todas as respostas são pertinentes. Elas pautam, em realidade, decisões que são levadas a cabo diariamente pela Administração Pública no país. Problemas distintos levam a soluções distintas, diferentes entre si. Ora são mais simples, ora mais complexas.

A complexidade de temas e de espécies contratuais faz com que modelos distintos possam ser contratualizados. Voltemos aos exemplos citados.

Caso determinada Secretaria de Saúde necessite contratar a construção de novo hospital, poderá fazê-lo com base na dita Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública. Ela estabelece normas pertinentes à contratação de obras (aqui estaria incluído o tal novo hospital...), serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Mas pode ser que a mesma Secretaria precise contratar fornecimento de bens utilizados no dia-a-dia de um determinado hospital. Aí poderia se utilizar da Lei 10.520, de 17 de julho de 2002, que institui modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns. Juridicamente, estes são caracterizados como aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos em edital, por meio de especificações usuais no mercado.

Mas pode ser que a Administração Pública não precise de uma coisa nem de outra. Em verdade, precisará das duas juntas, no bojo de um mesmo contrato. Mais: precisará que outros serviços sejam prestados, de maneira integrada, que não findarão com base numa prestação específica (constrói-se o hospital, apura-se o valor devido e encerra-se o contrato; fornece-se material hospitalar, mede-se fornecimento, acompanhado do respectivo pagamento e ponto final), mas que se diluirão em horizontes de longo prazo.

Assim, a Secretaria de Saúde contrataria, por meio de um mesmo contrato, a construção de 100 (cem) unidades básicas de saúde, o fornecimento de material hospitalar, a limpeza, a vigilância, a manutenção e a zeladoria de cada uma delas. O parceiro privado contratado arcaria com os altos valores de investimento para a viabilização do objeto contratado, disponibilizaria os serviços à população, os prestaria por cerca de 35 (trinta e cinco) anos e seria remunerado pela Administração Pública com base no serviço efetivamente prestado, com métricas de qualidade apuradas periodicamente. Esta poderia ser uma parceria público-privada, em sua modalidade de concessão administrativa.

Conforme a Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004, que institui normais gerais para licitação e contratação de PPPs, a concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública é a usuária direta ou indireta. Seu valor deve ser superior a R$ 10 milhões, seu prazo de vigência, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação, e seu objeto deve ser complexo, de maneira que não se restrinja a fornecimento de mão-de-obra, a fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública.

O modelo contratual instituído pela Lei de PPPs é, ordinariamente, mais complexo do que os previstos, por exemplo, na própria Lei 8.666. Para mencionar apenas um caso, fiquemos com a questão do prazo contratual. Gerir contratos por, no mínimo, 5 (cinco) anos, com a prestação de mais de um serviço e com métricas de pagamento atreladas a resultados, faz com que esforços adicionais sejam requeridos tanto da Administração contratante quanto do parceiro privado.

Mas isso não quer dizer que contratos regidos pela Lei 8.666 não possam ser tão – ou mais – complexos. Tudo dependerá da forma de contratação, das obrigações assumidas pelas partes, do objeto a ser desenvolvido. Em outros termos: do impacto concreto, dos resultados que a Administração Pública pretenda aferir com base em determinado contrato. Para além de serviços corriqueiros, empreitadas não tão complexos ou compras e vendas ordinárias, contratos podem ser modelados (com base na Lei 8.666 ou na Lei 11.079) para tratar de soluções mais intricadas com as quais gestores públicos precisem lidar.

Afora a construção de novas escolas (ou da manutenção das já existentes), como a Administração Pública pode tratar, em termos contratuais, da necessidade de melhoria dos índices de qualidade de vida da população? E como poderia incrementar as habilidades da população desempregada, como meio para melhoria de sua qualidade de vida? E diminuir o número de óbitos e aumentar os atendimentos em unidades de saúde? E lidar com os problemas de pessoas em situação crônica de rua? O leitor mentalizará exemplos diversos...

A melhoria desses pontos pode ser atingida por meio da implementação de Contratos de Impacto Social – CIS (de origem da expressão inglesa Social Impact Bonds – SIB). Em suma, o objeto desses contratos passa pela identificação de um problema relevante a ser resolvido pela Administração Pública, a seleção de parceiro(s) privado(s) com capacidade de melhorar a situação verificada e o condicionamento de pagamentos estatais à verificação concreta de resultados de impacto social.

É uma situação ganha-ganha-ganha-ganha: (i) a Administração Pública pode encontrar solução para uma determinada questão com ótimo resultado custo-benefício; (ii) o parceiro contratado pode ser remunerado e oferecer soluções vanguardistas para lidar com a questão; (iii) a população diretamente impactada experimenta resultados do impacto social proporcionado; (iv) a população em geral passa a ser (in)diretamente beneficiada, pois importantes segmentos sociais são atendidos e há a possibilidade de melhoria  em gestão de serviços públicos e em dispêndios orçamentários em geral (com a possibilidade de priorização de recursos públicos para outras demandas, igualmente relevantes).

Para lidar juridicamente com o tema, tramita no Senado Federal, atualmente, o PLS 338/2018, de autoria do Senador Tasso Jereissati. Conforme o PLS, o contrato de impacto social seria o “acordo de vontades por meio do qual uma entidade pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, se compromete a atingir determinadas metas de interesse social, mediante o pagamento de contraprestação do poder público, condicionada à verificação, por agente independente, do atingimento dos objetivos” (art. 2º). O Poder Público selecionaria “entidade pública ou privada para desempenhar atividade de qualquer natureza, mediante a contrapartida de melhora de determinado indicador social ou prestação de serviço de relevância pública” (art. 3º).

A proposta veiculada pelo PLS em questão pode ser importante, especialmente para trazer maior visibilidade ao contrato de impacto social, inseri-lo em debates, fazer com que seja mais uma ferramenta colocada à disposição da Administração Pública para a solução de problemas concretos. De todo modo, com boa engenharia jurídica e algum vanguardismo, os Contratos de Impacto Social podem caminhar, ainda que o projeto de lei em causa não seja aprovado.

Nesse ponto, o Governo do Estado de São Paulo já havia largado na frente. Por meio de sua Secretaria de Estado da Educação, submeteu a consulta pública minuta de edital que teria por objeto a contratação de serviços de execução e gerenciamento de ações pedagógicas voltadas ao aumento na aprovação e diminuição da evasão escolar, sem redução da aprendizagem, dos alunos da rede estadual de ensino médio. O objeto da licitação seria executado e concluído em 54 (cinquenta e quatro meses), abrangendo 61 (sessenta e uma) unidades escolares.

As medições de serviços prestados pelo parceiro privado, para respectivo pagamento, seriam realizadas por avaliador independente e os impactos sociais deveriam apontar: (i) o número de alunos aprovados, de uma série para a seguinte, no corte analisado; (ii) a meta atingida como resultado da atuação do parceiro contratado.

Em suma, o objeto do Contrato de Impacto Social paulistano seria o gerenciamento e a execução de ações pedagógicas voltadas à melhora nos resultados de fluxo, sem redução da aprendizagem, dos alunos da rede estadual de ensino médio a partir da prestação de serviços técnicos especializados. As intervenções deveriam envolver atividades de engajamento das famílias no cotidiano escolar dos filhos, bem como suporte para motivar o aluno nos estudos, interligando tais ações com a gestão escolar. O CIS não geraria custo inicial para a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, pois permitiria que intervenções fossem financiadas por investidores privados, que seriam recompensados se o impacto social contratualizado fosse alcançado.

Há uma série de problemas sociais atuais que estão, dalguma maneira, desamparados pelo Estado, cuja melhoria poderia passar pela utilização de modelos contratuais, antigos ou novos. Para citar alguns exemplos, poderiam ser pensadas formas de melhorias em índices de reincidência da população que deixa a situação de encarceramento; melhorias nas condições de vida para pessoas em situação de rua (que não contam com moradia, acesso a cuidados sanitários básicos, a educação, emprego, saúde...). Propostas para a tentativa de melhoria no estado de coisas inconstitucional vivido por essas pessoas seriam mais do que benvindas.

Dentre os modelos mais antigos, talvez o principal deles seja a parceria público-privada, em sua modalidade de concessão administrativa. Dentre os novos, o Contrato de Impacto Social poderia ser eventual alternativa.

Ambos os modelos permitem que a Administração Pública contrate objetivos complexos, com métricas de resultados e com retornos positivos à sociedade. Talvez a diferença seja remuneratória (diferença importante em contexto de austeridade fiscal, de dificuldade de realização de investimentos públicos...).

Na concessão administrativa, o grosso da remuneração viria do Estado, com o início da prestação dos serviços concedidos. No contrato de impacto social, haveria um problema a ser resolvido, índices a serem melhorados, financiados pelo empreendedor responsável pela resolução do problema e por investidores (filantropos, por exemplo...) com disponibilidade de capital e com interesse na tentativa de melhoria de um Estado de coisas. A remuneração pelo Estado apenas ocorreria caso o impacto fosse efetivamente verificado, caso houvesse melhoria num indicador social previamente apurado e com balizas de comparação entre situação pretérita, situação presente e melhorias esperadas no futuro. Elas podem vir ou não. Isso faz parte da vida. No contexto jurídico, isso implica em disciplina contratual (o que acontece caso o objetivo não seja atingido? O particular é remunerado? O contrato é extinto? O contrato é revisado?).

Note que, nos termos do PLS 338/2018, caberia “à entidade contratada e aos eventuais parceiros investidores o risco de não atingimento das metas estipuladas no contrato” (art. 4º), sendo “vedado ao poder público assumir, a qualquer título, obrigação financeira pelos riscos de não atingimento das metas” (art. 5º). Esses pontos deveriam estar claros no instrumento contratual, a prever, detalhadamente, “metas parciais e finais a serem atingidas, bem como dos respectivos prazos de atingimento” (art. 7º, I, “c”), a “contrapartida financeira do poder público pelo atingimento de cada meta, assim como dos percentuais aplicáveis em caso de atingimento apenas parcial” (art. 7º, I, “d”), bem como “o prazo de duração do contrato e as condições de sua prorrogação, caso sejam atingidas as metas estipuladas” (art. 7º, II).

O Contrato de Impacto Social começa a ser discutido entre nós e pode trazer incremento à Administração Pública brasileira. Mas, ao redor do mundo, não é tão assim novidadeiro. Como exemplo, começou a ser utilizado em Nova York, em meados de 2012, para lidar com problemas de reincidência juvenil (problema que também guarda paralelo com o caso brasileiro...). O objetivo era o de reduzir em cerca de 10% o índice de reincidência entre adolescentes na faixa etária dos 16 aos 18 anos (disponível em: . Acesso em: 11. dez. 2018). O projeto, contudo, falhou. Avaliações realizadas indicaram que não houve redução de reincidência no grupo objeto do Contrato de Impacto Social.

O projeto, falhou, contudo? Tudo depende do contexto, da lupa pela qual a situação é enxergada. O contrato foi efetivamente executado, houve a tentativa de lidar com problema concreto, foi veiculada forma de equacioná-lo, houve interesse de agente privado, houve interesse de agente financiador, o objetivo não foi atingido e a Administração contratante não realizou os desembolsos previstos caso o fosse (disponível em: . Acesso em: 11. dez. 2018). Parece-me que, em termos jurídicos, a experiência foi bem-sucedida, sim.

Por que não tentamos fazer o mesmo? Progresso só vem assim: com algum desafio, alguma incerteza, idas e vindas, erros e acertos. Mas é preciso agir. Paramos no mesmo lugar e o mundo não anda. Coloquemos as coisas em movimento, portanto.

Antes de plano efetivo de ação, apresento convite à reflexão sobre problemas da sociedade brasileira e como resolvê-los, em prol de uma Administração Pública mais eficiente e do incremento na prestação de determinados serviços públicos, dos quais nossa população em geral ainda é tão carente. Minha contribuição fica aqui, com destaque para pequenas propostas. Que outras venham. Que saiam do papel. Apenas assim poderemos caminhar.

 



Por Mário Saadi (SP)

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