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O Administrativista Ingênuo

ANO 2017 NUM 337
Maurício Portugal Ribeiro (SP)
Especialista na estruturação e regulação de concessões e PPPs, sócio do Portugal Ribeiro Advogados, Professor de Modelos Regulatórios da FGV, Mestre em Direito pela Harvard Law School, autor de vários livros e artigos sobre concessões, PPPs e outros temas dos setores de infraestrutura.


13/03/2017 | 9455 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

Ele não viu que a corrupção permeava as nossas licitações e, em suas aulas, sempre ensinou a Lei 8.666/93 como a última conquista do espirito humano para assegurar a melhor relação de qualidade/custo para a Administração Pública contratante e a igualdade de tratamento entre licitantes.

Ele nunca imaginou que o desenho institucional que sempre ensinou pudesse ser usado para obtenção de efeitos não republicanos. Mas repete diariamente na sala de aula que direito e ética são coisas separadas.

Ele ensina licitações e contratos administrativos, mas nunca ouviu falar de teoria dos leilões, apesar dessa área do saber, que trata basicamente de como deveriam ser estruturadas licitações, já ter levado alguns economistas a ganharem o Prêmio Nobel.

Ensinando licitações, ele sempre disse que a Administração Pública só pode pedir como exigência para qualificação econômico-financeira das empresas um dos três: patrimônio líquido, capital social ou garantia de proposta. Mas ele nunca entendeu muito bem o que o capital social e o patrimônio líquido representam no balanço e nas demonstrações financeiras de uma empresa. Sequer sabe que uma empresa pode ter patrimônio líquido e capital social altíssimos e ainda assim estar quebrada. Não sabe também avaliar o balanço ou uma demonstração financeira de uma empresa. São coisas extrajurídicas. Não é preciso saber. Mas ele continua ensinando a regra legal que só permite exigir um dos três.

Adora ensinar e falar sobre princípios jurídicos. A abstração e força ética e persuasiva o entusiasmam.

Ele sempre supõe haver uma lógica profunda por trás de qualquer regra jurídica, particularmente das mais antigas. Ele acha que o seu papel é a elas agregar a boa interpretação, ou como ele prefere dizer, interpretá-las conforme os grandes princípios, que dão aparência de objetividade ao seu conceito pessoal de justiça.

Quanto mais focado em princípios, mais longe ele está da realidade, da vida como ela é, de decisões no âmbito contratual, administrativo. Ele ouviu falar de “agentes públicos de linha de frente”, da permeabilidade do direito no nosso dia a dia. Mas nunca imaginou que isso exigisse uma investigação mais detalhada de como o direito de fato funciona. Afinal de contas, o que importa são os grandes julgados, particularmente dos tribunais superiores. Mas e se o direito que se vive estiver pelo menos a 5-6 anos de distância desses tribunais? Mas e se as questões mais relevantes estiverem sujeitas a premências outras e por isso sequer chegam ao Poder Judiciário? E se as partes fugirem do Poder Judiciário porque acreditam que juízes generalistas não terão capacidade de entender as questões que precisam ser decididas? São perguntas irrelevantes, acha ele.

Ele exaltou o funcionamento das agências reguladoras federais, exatamente quando elas estavam sendo dirigidas por diretores interinos, sem mandatos. Disse que elas só precisavam de aperfeiçoamentos pontuais, exatamente quando estava em curso o processo de sua desmontagem. Ele só olhava as regras, não via a realidade. Como alguém criou a teoria que diretores interinos, sem mandato, era algo juridicamente possível e isso foi chancelado pela AGU, ele se deu por satisfeito. Talvez não tenha capacidade de julgar essas coisas. E certamente nunca sentou para conversar com um funcionário qualificado de uma agência. Será que ele consegue distinguir o funcionário qualificado do burocrata comum? Depois de tantos anos trabalhando no setor, será que ele consegue perceber traços de venalidade em uma licitação?

Ele nunca pensou em custos, mas sempre em princípios. É natural, portanto, que acredite que quanto mais controle para a Administração Pública, melhor. Afinal, o que são custos, qual a relevância da eficiência e da segurança jurídica, se não tivermos a transparência sem limites e o exercício do controle a qualquer tempo? Por isso, ele sempre exaltou os controladores enquanto o TCU assumia o papel de regulador no lugar daqueles que institucionalmente têm esse papel e reabria e rediscutia qualquer tema, a qualquer tempo.

Ele nunca pensou que a sua função fosse pensar novos modelos a serem traduzidos em novas regras. Ele nunca realmente olhou o direito para além de regras jurídicas, mas admira conhecimentos sobre o passado, sobre ética, filosofia, sociologia (só a não quantitativa), arte em geral, especialmente a poesia. Admira a erudição nessas áreas.

Conhecimentos de economia e finanças lhe são alheios. Recentemente, ele se deu conta de que economia pode ser uma coisa importante. Mas evidentemente não se compara à relevância da leitura de Dworkin  ou Alexy. Outro dia, conversando com especialistas, ouvi-o falar que a TIR – Taxa Interna de Retorno não servia para reequilibrar contratos de concessão e fiquei só imaginando o que ele, com o seu conhecimento de finanças, colocaria no lugar da TIR. Não consegui chegar a uma conclusão.  Mas a TIR continua sendo, em qualquer lugar do mundo, um parâmetro central para avaliar o equilíbrio de contratos de concessões e PPPs, mesmo após análise desse tema por grandes financistas e economistas.

Ele nunca pensou em melhores práticas, em incentivos, em riscos, em precificação. Recentemente ouviu falar de melhores práticas, achou a coisa bonita, e ai resolveu exigir por lei o seu uso. Felizmente a ideia não prosperou.

No meio das descobertas da Operação Lava a Jato, disseram-lhe que as licitações eram dirigidas por meio da exigência de atestação técnica e de índices contábeis calculados com base no balanço e nas demonstrações econômico-financeiras das empresas. Rejeita agora o desenho tradicional das nossas licitações. Supõe que tal desenho viabilizou a corrupção.

 

Nesse contexto, disseram-lhe que, nas licitações fora do Brasil, exigências de índices contábeis e de atestação técnica não existem. E ele acreditou. Passou, então, a defender que se crie lei proibindo a exigência de índices contábeis calculados com base no balanço. Quer também eliminar por lei a possibilidade de se exigir qualquer atestação técnica em licitações e substituir tal exigência por seguro-garantia de cumprimento de contrato com cobertura igual ao valor da obra. Não percebeu, contudo, que as exigências de contragarantia para emissão desses seguros-garantia restringiriam a competição nas licitações a ponto de facilitar que elas sejam dirigidas. E, como de costume, ele ignorou qualquer reflexão sobre custos: seguros-garantia com valor de cobertura igual ao valor da obra onerariam desnecessariamente a Administração Púbica.

Talvez o seu problema venha da infância e da adolescência. Antes mesmo de ingressar na universidade, ouvia dizerem sobre si:

- Não é bom em matemática. Não gosta de física. Tropeça em biologia e química. Então, deve fazer Direito.

Desde cedo estava claro que ele tinha dificuldade de entender a realidade tal como retratada pela ciência. Então, disseram-lhe que o seu ofício seria o Direito. E ele acreditou.

Adora, todavia, metáforas biológicas, físicas, matemáticas e citar conceitos usados atualmente pela análise econômica do direito. Faz-lhe sentir que, ao falar sobre o direito, está fazendo ciência, ou está sendo particularmente didático. Certa feita, ele me falou sobre “autopoiesis” e a “densidade da matriz de riscos dos contratos”, e eu fiquei aqui me perguntando se ele teria entendido o conceito de autopoiesis e de densidade antes de usar essas expressões. Fiquei achando que não.



Por Maurício Portugal Ribeiro (SP)

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