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Mecanismos de Participação Social no Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil: Avanços e Retrocessos

ANO 2016 NUM 184
Natasha Schmitt Caccia Salinas (SP)
Professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Doutora e mestre em Direito pela USP. Master of Laws (LL.M.) pela Yale University.


06/06/2016 | 4623 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

Em 28 de abril de 2016, entrou em vigor o Decreto n. 8.726/16, que regulamentou, no âmbito federal, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (“MROSC”). A Lei que disciplinou o MROSC (Lei n. 13.019/14), como se sabe, foi significativamente alterada antes mesmo do início de sua vigência. A morosidade para a conclusão da etapa de inserção do MROSC no ordenamento jurídico, após um período de quase dois anos entre a promulgação de sua lei originária e a entrada em vigor de seu regulamento, se deu, dentre outros motivos, pela dificuldade em se construir consensos acerca do papel que as parcerias entre a Administração Pública e as OSCs deve ocupar no cenário de formulação e implementação das políticas sociais no Brasil.

Diante das contingências do processo político, é certo que o MROSC carrega em seu texto não só avanços, mas também alguns retrocessos. Exemplo de temática que consubstancia simultaneamente avanços e retrocessos é a participação na gestão das parcerias entre Administração e OSCs.

Uma leitura atenta da lei e regulamento que compõe o MROSC permite identificar três mecanismos principais de participação social na gestão das parcerias: (i) participação dos conselhos de políticas públicas na gestão das parcerias; (ii) participação das OSCs no(s) Conselho(s) de Fomento e Colaboração; (iii) Procedimento de Manifestação de Interesse Social.

O primeiro deles, correspondente à participação dos conselhos de políticas públicas na gestão das parcerias entre Administração Pública e OSCs, constitui, a meu ver, um retrocesso a modelos institucionais pré-existentes.

A Lei n. 13.019/14 define o conselho de política pública, em seu artigo 2º, inciso IX, como “órgão criado pelo poder público para atuar como instância consultiva, na respectiva área de atuação, na formulação, implementação, acompanhamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas”. No contexto do MROSC, no entanto, esta atividade assume envergadura apenas se estiver relacionada à gestão propriamente dita das parcerias entre Administração Pública e OSCs, a qual contempla as atividades de formulação, monitoramento e avaliação destas parcerias. Se às parcerias entre Administração Pública e OSCs é reservado um papel crucial na realização dos objetivos das políticas públicas, é imperioso que os conselhos de políticas públicas se envolvam, de fato, na gestão destas parcerias.

Está participação foi restrita, no âmbito do MROSC, aos conselhos que figuram como gestores de fundos setoriais específicos (e.g., Fundo da Criança e do Adolescente, do idoso, da defesa de direitos difusos, dentre outros).

Para além destes fundos, a Lei n. 13.019/14 restringe-se tão somente a garantir a possibilidade de que os conselhos de políticas públicas apresentem propostas à Administração Pública para a celebração de termos de colaboração com OSCs. A basear-se no caráter vago e genérico da lei, não há nada que distinga esta possibilidade daquela conferida a todo e qualquer cidadão para submeter propostas para a celebração de termos de colaboração por meio de procedimento específico – notadamente, o Procedimento de Manifestação de Interesse Social – analisado neste texto mais adiante.

Enquanto a Lei n. 13.019/14 nada previu sobre regras genéricas de composição das comissões de formação, monitoramento e avaliação das parcerias, o Decreto n. 8.726/16 previu tão somente que as comissões encarregadas destas tarefas devem ser compostas por pelo menos um servidor ocupante de cargo efetivo ou emprego público. Em minuta de versão anterior do regulamento federal da Lei n. 13.019/14, a qual fora submetida à consulta pública, previa-se que até um terço dos membros destas comissões poderiam ser compostos por conselheiros de políticas públicas. Este dispositivo, no entanto, acabou não sendo incorporado ao texto do decreto promulgado. Perdeu-se, portanto, a oportunidade de se garantir um mínimo de participação aos conselheiros de políticas públicas em etapas cruciais da gestão de parcerias.

É importante que se diga que a omissão destes atos normativos no que diz respeito à representatividade dos conselhos de políticas públicas nas comissões de seleção, monitoramento e avaliação das parcerias representa inclusive um retrocesso ao regime das parcerias celebradas entre Administração Pública e as OSCs qualificadas como Organizações da Sociedade Civil para o Interesse Público (“OSCIP”). A Lei 9.790/97, que rege os termos de parceria entre Administração Pública e OSCIP, prevê em seu artigo 10º, parágrafo primeiro, que a celebração de todo e qualquer termo de parceria deve ser precedida de consulta ao conselho de políticas públicas da área correspondente. Prevê, também, em seu artigo 11, que a execução do objeto das parcerias será fiscalizada e avaliada por comissões nas quais o conselho de política pública correspondente também se faça representar.

É certo que, na prática, este regime apresentou-se falho por diversas razões. Uma delas diz respeito ao fato de que os pareceres das comissões de celebração, fiscalização e avaliação dos termos de parceria não possuem caráter vinculante, o que permite ao poder público não acatá-los no curso do processo decisório. Além disso, tanto a Lei n. 9.790/97 quanto o Decreto n. 3.100/99, que a regulamentou, não instituíram normas organizacionais e procedimentais que garantissem a representatividade e efetividade da atuação dessas comissões. Estes atos normativos não previram consequências tanto para a ausência de representantes dos conselhos de políticas públicas nessas comissões, quanto para a inércia e ineficácia do trabalho dessas comissões. Não raras vezes, parcerias são concluídas sem que haja de fato a atuação dessas comissões na análise, controle e avaliação dessas parcerias e, quando há, nem sempre a paridade desses órgãos colegiados é garantida.

A atuação consultiva dos conselhos de políticas públicas na gestão das parcerias foi, portanto, negligenciada no MROSC. Ao invés de aperfeiçoar o modelo existente, cujas falhas diziam respeito sobretudo à falta de mecanismos que garantissem sua implementação, o MROSC não contemplou este importante mecanismo de participação.

O MROSC previu, na verdade, uma atuação consultiva indireta, ao disciplinar que os conselhos de políticas públicas sejam consultados em etapa prévia à formação propriamente dita das parcerias. Esta etapa corresponde à formulação de políticas e ações propostas pelo Conselho Nacional de Fomento e Colaboração (CONFOCO) – instituição criada pela Lei n. 13.019/14.

O CONFOCO, cujas funções também poderão ser exercidas por conselhos análogos instituídos a critério dos Estados e Municípios, tem por atribuições a divulgação de boas práticas de gestão de parcerias entre Administração e OSCs, bem como o apoio a políticas e ações de fortalecimento do MROSC.

A criação do CONFOCO constitui seguramente um avanço introduzido pelo MROSC. O MROSC acertou ao conferir o status de “política” à gestão das parcerias entre Administração Pública e Organizações da Sociedade Civil. É apenas a partir de reflexão intensa e permanente sobre questões como “quais parcerias devem ser estimuladas”, “o que se espera das parcerias”, bem como “como deve se dar a relação entre Estado e Organizações da Sociedade Civil” que se construirá um ambiente legítimo, sólido e confiável para a disseminação das parcerias entre Administração e OSCs. Abriu-se, portanto, um flanco para que organizações híbridas e paritárias, compostas por representantes da Administração Pública e das OSCs, possam atuar conjuntamente na construção de um ambiente favorável ao fortalecimento dar parcerias intersetoriais no Brasil.

Por fim, o MROSC introduziu um mecanismo que também contribui, ainda que de forma incremental, para a construção de uma política de fortalecimento das parcerias entre Administração Pública e as OSCs. A Lei n. 13.019/14 introduziu o Procedimento de Manifestação de Interesse Social (“PMIS”), que nada mais é do que um mecanismo por meio do qual organizações da sociedade civil, movimentos sociais e cidadãos possam formular os problemas, objetivos e instrumentos que deverão ser objeto das parcerias. A Lei n. 13.019/14 prevê que estas propostas devam apresentar um diagnóstico dos problemas sociais que se pretende solucionar, além de indicar, quando possível, ações alternativas para a solução destes problemas. Trata-se seguramente de importante mecanismo de participação social na formulação de políticas públicas cuja implementação deve ser exercida de modo colaborativo entre Administração Pública e OSCs.

Sem dúvida, o PMIS constitui um avanço ao marco regulatório pré-existente, já que confere voz a importantes segmentos da sociedade para planejar a alocação e recursos e a definição das ações que serão objeto de parcerias entre Administração Pública e OSCs. Sobre o funcionamento do PMIS, no entanto, cabe um alerta: de todos os mecanismos de participação previstos no MROSC, este é o que a meu ver demanda maior necessidade de regulamentação para que possa ser efetivo nos objetivos que propõe.

O Decreto n. 8.726/16, que disciplinou o PMIS no âmbito federal, omitiu-se na definição de questões cruciais sobre o seu funcionamento. Este regulamento referiu-se genericamente à “Administração Pública” como entidade gestora do PMIS. Definições ainda estão por serem feitas no que diz respeito ao órgão que de fato será encarregado de gerir tais manifestações de interesse. Não basta, além disso, designar um órgão para gerir os PMIS, mas deve-se sobretudo garantir-lhe estrutura e recursos adequados para o atendimento e processamento das demandas. Embora tenha estabelecido prazo mínimo de 60 (sessenta) dias anuais para que manifestações de interesse social possam ser recebidas e atribua à Administração Pública o dever de motivar suas decisões acerca da conversão ou não de manifestações de interesse em parcerias propriamente ditas, não estabeleceu prazo máximo para que estas possam ser processadas. Como observei em trabalho acadêmico anterior disponível neste site (http://www.direitodoestado.com.br/artigo/natasha-salinas/impulsionando-a-administracao-a-agir-o-papeldos-prazos-administrativos-nas-leis-sobrepoliticas-publicas), a ausência de procedimentos claros e precisos que estabeleçam quando a Administração deve se manifestar sobre as demandas que lhe são dirigidas pode, na prática, inviabilizar o atendimento propriamente dito dessas demandas.

As deficiências ou insuficiências do PMIS do âmbito federal devem, portanto, servir como referência para o aperfeiçoamento deste mecanismo, não apenas no âmbito federal, mas sobretudo nos níveis de governo estadual e municipal, onde o espaço para experimentação e inovação tende a ser maior. Além disso, é preciso construir um ambiente institucional adequado para que os mecanismos de participação no MROSC sejam efetivos. Sua previsão legal é indispensável para que haja participação social na gestão das parcerias, porém não surtirá os efeitos almejados se estratégias que garantam sua implementação não sejam construídas. 



Por Natasha Schmitt Caccia Salinas (SP)

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