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Discricionariedade administrativa, controle judicial e o (esquecido) fator humano

ANO 2017 NUM 329
Phillip Gil França (PR)
Pós-doutor (CAPES_PNPD), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/RS, com pesquisas em Doutorado Sanduíche - CAPES na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Paraná. Professor da Especialização em Direito Administrativo do IDP - Brasília.


16/02/2017 | 4311 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Quando a atividade administrativa do Estado é questionada, ainda cabe imaginar que existem zonas sombrias de controle da discricionariedade administrativa?

De forma geral, é próprio de um liberalismo positivista o discurso de que a discricionariedade administrativa não pode ser alvo de controle jurisdicional. Isto porque, partem da noção de que a dicção do Estado – a voz pública – é absoluta no campo de sua incidência.

Em outros termos, tal linha de pensamento transparece a compreensão de que apenas pode ser plenamente adequado ao ordenamento positivado os reflexos daquilo que a norma delimita em seu retrato. Inclusive, quando o mesmo ordenamento expressa certa “liberdade” de escolhas de caminhos a se percorrer. Logo, salvo “estriduloso erro formal”, a Administração sempre atuará nos limites dos trilhos preestabelecidos por uma lei formalmente legítima.

Ora, se tal raciocínio fosse verdadeiro, não se precisaria de pessoas para realizar o agir administrativo. Até porque, o grau de eficiência administrativa, conforme este discurso de atuação nos estritos trilhos da lei positivada, seria muito maior no afastamento dos seres humanos das decisões da Administração.

E é o que parece, por exemplo, nos sistemas de arrecadação tributária nacional, como o da Secretaria da Receita Federal. Lá, um “ultrassofisticado” sistema de informática consegue cruzar dados, construir fatos e chegar a conclusões que certamente o homem, sozinho, não conseguiria – ou demoraria muito tempo para conseguir; e assim o faz, integralmente, conforme a lei.

Pergunta-se, no entanto, o cego agir estrito conforme a lei traz desenvolvimento ou estabelece a estagnação do país? Neste mesmo caminho, ignora-se o conteúdo estabelecido no art. 3.º da Constituição, ou se promove a sua concreta efetividade, buscando a superação da simples atuação positivista?

A resposta, por certo, precisa ser salomônica. Isto porque, determinados nichos da Administração atuam mediante um alto grau de vinculação legal, pois existe a possibilidade de se prever fortemente as consequências daquela lei que sustenta tal atividade.

Outros, pelo contrário, precisam de um espaço para desenvolvimento, realizado apenas a partir da superação de questões concretas pelo indivíduo. E, neste universo de crises e superações, ainda não se encontram máquinas hábeis o suficiente para compreender as reais consequências que a atuação humana pode refletir em outro humano.

Não se afirma, assim, que os agentes administrativos – na sua totalidade – conseguem alcançar tais conclusões. Mas se aceita, destarte, que as falhas dos humanos possam ser superadas para que novas realidades sejam criadas – pois foram ocasionadas por seus semelhantes.

Logo, numa eventual estrutura administrativa afastada do caráter humano, artificialmente ótima, não há como se aceitar a falha, pois a sua construção é voltada para que atenda a lei em sua literalidade.

Opostamente, a partir do reconhecimento da Administração feita por pessoas, para pessoas, abstrai-se da única e inatingível resposta correta de Dworkin e caminha-se para o alcance da melhor resposta de Alexy.

Tal fato, no reflexo do Direito no cotidiano social, importa em admitir que não há possibilidade de se aceitar atos administrativos insindicáveis pelo Estado-juiz (inclusive, os discricionários), pois seria medida frontalmente contrária ao atual sistema constitucional – com destaque aos fundamentos do Estado (art. 1.º da CF/1988); regime de tripartição de Funções (Poderes) do Estado (art. 2.º da CF/1988); objetivos do Estado (art. 3.º); regime de direitos fundamentais expressos (na sua maioria no art. 5.º da CF/1988) e implícitos.

Isto porque, do contrário, o Estado teria que se apresentar como o sistema infalível de ações e resultados, bem como, fruto de atividades que, sem a necessária superação de falhas, não se desenvolveria e não realizaria seu mister fundamental de proteção e promoção do cidadão.

A cada verificação de conformação do ato administrativo com os valores do direito, novos anseios surgem para, assim, serem novamente verificados e, desse modo, tornar a máquina administrativa apta a atender ao cidadão e à sociedade, os quais estão em constante movimento.

Isto é, precisa-se superar a ideia do máximo afastamento do Estado no atendimento dos anseios do cidadão, conforme discurso liberal que já não retrata os fenômenos atuais. Igualmente, afastar o discurso de que a dicção legal, em seu sentido estrito, é suficiente para se superar todos os casos jurídicos. Defende-se, então, o caminho do Estado passível de desenvolvimento sustentável – próprio de um regime socioambiental –, mediante a superação das questões enfrentadas e absorvidas como degraus de sua evolução, assim como de todos os seus partícipes.

Nesse regime de crescimento, conforme sua capacidade de regeneração diante dos problemas superados – sustentabilidade –, inexiste espaço para atos administrativos não passíveis de controle jurisdicional.

Não há margem legal que não possa ser verificada e, assim, legitimada pelos entes controladores da Administração Pública (inclusive, pela sociedade). Pelo simples fato de que questões não superadas, aceitas por meio de uma legitimação puramente formal, não condizem com o sistema de responsabilidade da República Federativa do Brasil; com o núcleo duro estabelecido a partir dos fundamentos de cidadania e dignidade da pessoa humana; com o poder-dever que o Estado-juiz detém de verificação de toda reclamada ameaça ou lesão ao direito; e pelo regime de garantias fundamentais que o cidadão possui ante o Estado.

Destaca-se, nesse entendimento, o mencionado aspecto da suposta discricionariedade técnica resultante da construção do mérito de alguns atos oriundos da Administração, uma vez que – de forma descabida – agentes administrativos equivocadamente acreditam que não há, no atual ordenamento jurídico, formas de atingir tal mérito extremamente técnico de atos provindos do Executivo.

Isso posto, considerando o exercício de sua tecnicidade específica sobre as competências sob as quais estão adstritos, tornar-se-ia impossível aferir eventuais exageros acerca da razoabilidade e proporcionalidade do conteúdo dos respectivos atos administrativos produzidos – conclusão que deve ser afastada, em respeito ao acato do direito fundamental de ação e do dever de adequada prestação da tutela jurisdicional pelo Estado.

Mediante o exposto, o caminho para a melhor resposta exarada pelo Judiciário – conforme critérios de proporcionalidade na operacionalidade jurisdicional, em um sistema de ponderação racional dos princípios – é essencial para o estabelecimento do devido lugar da primazia dos direitos fundamentais.

Desse modo, é dever de todos os partícipes do Estado a busca permanente de afastar eventuais levantes tirânicos e antidemocráticos voltados à persecução de uma resposta correta – concedida pelo agente administrativo Hércules (conforme doutrina de Dworkin, Ronald. Derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1984 –, tais como se apresentam (em determinadas ocasiões) na atuação administrativa atual. Para tanto, a incansável vigilância de cada envolvido e interessado na realização do Estado é essencial.

Nesse cenário, o Judiciário precisa firmar o seu papel na sociedade que protege, impondo o seu poder-dever de coibir atos que ameacem ou agridam o direito, tendo em vista sua prerrogativa de aplicabilidade coativa das normas jurídicas aos litigantes. Assume, então, sua posição como um dos órgãos de controle das atividades normativas do Executivo e como uma das peças centrais da manutenção da estabilidade social do Estado.

A inafastável atuação do Judiciário na aplicação do direito ao caso concreto é capital para a estrita observância da segurança jurídica dos atos da Administração Pública e para a proteção do cidadão, mesmo considerando as atuais limitações que este Poder encontra para a revisão da mecânica estatal administrativa.

No contexto desenhado, é vital que os operadores do direito passem a se preocupar de que forma os atos administrativos deverão ser tratados na prática contenciosa. Uma vez que a máquina estatal existe para determinado escopo, entre outros, de dinamizar a atuação do Estado. Destarte, o controle exercido pelo Judiciário deve ser verificado com cautela para que seus efeitos, dentro de uma sistemática lenta e burocrática, não sejam usados com objetivos não tão nobres quanto o é a segurança jurídica dos atos administrativos em prol do cidadão.

Dentro dessa necessária reflexão, sugere-se o estudo da doutrina, inclusive, de R. Alexy, com o fito de encontrar um resultado racionalmente eficiente para o dilema da atuação da Administração Pública e o indispensável controle do Poder Judiciário (notadamente: Alexy, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 2003).

Alexy defende uma sistematização racional de ponderação de valores, com o desiderato de conceder instrumentos ao juiz para o alcance da melhor resposta. A relação da doutrina de Alexy e a atuação do Judiciário sugerida apontam ao caminho do abandono da mera blindagem do aspecto discricionário do ato administrativo.

Como já tratado, é insuficiente verificar apenas a formal adequação legal do mérito do ato administrativo, pois, também, faz-se necessário que seu núcleo essencial esteja em conformidade com a ponderação racional e proporcional definidas por uma interpretação sistemática e consequencialista dos valores que estruturam o direito – estabelecida, repita-se de forma final pelo Judiciário, conforme expressa escolha constitucional para que assim ocorra (art. 5.º, XXXV, da CF/1988).

Não se propugna a mera judicialização da máquina administrativa do Estado, mas sim a constitucionalização da Administração Pública a partir de uma real interpretação, inclusive, consequencialista de sua atividade. Da mesma forma, a legitimação de suas ações mediantes critérios objetivos passíveis de sindicância jurisdicional, dentre outras possíveis e fundamentais para construção e manutenção de uma verdadeira República Democrática de Direito.

Nessa esteira, o juiz efetivamente atua (ou deveria atuar) conforme a referida proposta, a partir de uma ponderação racional dos valores postos. Desse modo, impõe-se a busca de uma ponderação humanamente racional dos valores envolvidos (não há como escapar de uma subjetividade mínima), de igual forma, precisa-se estabelecer quais são os princípios aplicáveis para o alcance da resposta. Finalmente, deve-se definir qual é a resposta melhor para o caso posto (não há como se furtar da hierarquização, quando desta interpretação). Busca-se sempre, então, a superação da questão, não sua mera eliminação.

Assim, na solução de determinado caso concreto – em que se reconheça colisão de valores fundamentais – deve-se verificar, conforme o processo narrado, qual caminho (ou solução) prepondera perante o outro, sem que, para isso, resulte na eliminação do remanescente. Objetiva-se, portanto, filtrar o que há de bom e alcançar a almejada melhor resposta.

Na prática, em questões difíceis que envolvem atos administrativos (notadamente aqueles preponderantemente técnicos), ainda não se observa tal regra no agir jurisdicional, apenas iluminadas exceções. Isto porque – frisa-se – é vivo o imperialismo da discricionariedade do Executivo afastados do essencial ´fator humano´ que (deveria) coordenar todas as atividades do Estado.

Desse modo, vale ressaltar a importância da utilização de instrumentos jurídicos adequados para estancar esse inapropriado dogma do ordenamento jurídico pátrio como, por exemplo, o emprego da objetiva verificação da adequação do ato administrativo conforme a perspectiva sistemática e consequencialista do Direito.

Outrossim, tem-se que a relação sugerida entre a doutrina de Alexy e a atuação do Judiciário – perante os hard cases advindos de atos administrativos – deve servir como um possível caminho para a efetiva e a adequada prestação jurisdicional pelo Estado.

Como exposto, tal demanda será atendida quando a Função estatal competente para definir a resposta no sistema jurídico nacional adotar a plena ideia de adequação do ordenamento legal aos valores que sustentam, justificam e conformam o Direito.

Desse modo, quem sabe, será possível deixar de imaginar que a tal perfeição do sistema contrasta com ignorada imperfeição humana, quando esse próprio humano se torna responsável por seus atos e pelas consequências de tais atos no mundo real.

Logo, o fator humano no agir administrativo é, e sempre foi, o eixo da balança que determina quando, como e de que forma o ato administrativo estará em conformidade com os constitucionais padrões de legalidade impostos para que o Estado flua de forma republicana, democrática e, principalmente, a promover o concreto desenvolvimento intersubjetivo dos cidadãos, na condição de protagonistas do sistema de direitos e deveres fundamentais que determina os rumos do país.

Até porque, o Estado só existe nos limites da compreensão da necessidade de seus préstimos nas vidas de cada titular de vontade pública: o cidadão. Assim, no atendimento mínimo das necessidades do homem, como a consideração do fator humano na gestão pública, a crença de manutenção do Estado cidadão se manterá viva, do contrário, morre o Estado, mas não o cidadão.



Por Phillip Gil França (PR)

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