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Para uma Justiça e uma Legalidade estatal a partir de suas consequências no mundo real

ANO 2017 NUM 318
Phillip Gil França (PR)
Pós-doutor (CAPES_PNPD), Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/RS, com pesquisas em Doutorado Sanduíche - CAPES na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Paraná. Professor da Especialização em Direito Administrativo do IDP - Brasília.


16/01/2017 | 5513 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

A justiça nas mãos de poucos é, quase sempre, injustiça. Isso porque, "justiça" depende de uma real e concreta interatividade social entre indivíduos que se identificam e se reconhecem em standards culturais mínimos de como alcançar o desenvolvimento pessoal e de seus pares em um determinado tempo e espaço. 

É necessário o diálogo das fontes, das causas, dos resultados e das consequências para o afastamento da aflição da injustiça em casa indivíduo, em cada grupo, em cada nicho social, em cada ente representativo de Estado e em cada manifestação de tutela do cidadão em nome de um desenvolvimento comum, a partir de renúncias recíprocas e proporcionais, que apenas o tal "senso de justiça" pode indicar a direção.

Nesse sentir, então, torna-se essencial para os indivíduos sedentos de desenvolvimento a sistematização intersubjetiva desses standards culturais mínimos, para se estabelecer, objetivamente, caminhos bem asfaltados de como agir e reagir em um determinado grupo que almeja evoluir para melhor aproveitar o tempo que dispõe, sempre idêntico para todos, mas que pode, constantemente, também, ser melhor gerenciado.

Logo, a noção do agir corretamente e do reprovar o equivocado torna-se luz nos escuros túneis do império da autotutela social, bem como, da imposição da unilateral vontade do mais forte.

A densificação dos valores em princípios e, após, em regras, conformam sistemas que determinam o legal, em conformidade com o correto, estabelecido de forma objetiva e isonômica para todos,  em razão de todos, bem como, indica a ideia de reprovação do errado e dos instrumentos de reconstituição das consequências reais e jurídicas das agressões ao sistema de legalidade estabelecido.

Destarte, passamos a seguir e a cobrar que sigam passos de legalidade nos caminhos constitucionalmente ladrilhados de busca de um melhor futuro permanentemente renovado - a partir da "legalidade", como valor que limita o meu agir conforme critérios de fazer o correto, mediante standards objetivamente estabelecidos e, nesta mesma lógica, de afastar o errado, limitando a minha e as demais liberdades, em nome de uma proteção pessoal frente aos outros e de uma proteção dos outros frente a mim.

Então, "legalidade" é, basicamente, saber lidar com seus limites frente ao mundo, bem como, saber lidar com os limites do mundo frente a você.

O sentido e as fronteiras de eficácia da norma constitucional da legalidade (caput do art. 37) são definidos no momento da aplicação do princípio da legalidade à concreta realidade a que se destina.

Logo, apenas quando se determina a sujeição da Administração à legalidade, em situações reais e determinadas – ao regular o aspecto geral e abstrato da lei – pode se observar a abrangência e o objeto a que se destina o pilar da atuação administrativa estatal, qual seja: agir conforme o princípio da legalidade sob uma perspectiva substancial.

Isto é, não basta apenas o ato administrativo gozar dos atributos próprios de legalidade administrativa (conformados, inclusive, pela ideia de presunção de veracidade, legitimidade e validade), mas, também, precisa acompanhar consequências que se conformem com os valores do direito no mundo real para, assim, ser indicado como ato em plena harmonia com o princípio da legalidade. Finalmente, para o efetivo controle de tal conclusão, uma robusta e consistente motivação do ato, proporcional ao impacto que trará ao mundo real, é tarefa que se impõe ao gestor público.

Assim, obviamente, toda atuação da Administração Pública deve seguir obrigatoriamente os trilhos dos valores constitucionais de legalidade, mediante expressão encontrada no caput do art. 37 da Constituição Federal.  

A legalidade aqui determinada precisa ser compreendida no sentido de harmonização do sistema e da concretização dos objetivos constitucionais inscritos no art. 3.º da CF/1988.

Isto é, legalidade é o produto da interpretação do sistema jurídico que realiza a concreta promoção do homem como ser vivo passivo de percepção de valores conformadores de existência digna, segundo determinações de interação intersubjetiva, em dado espaço e tempo, de uma determinada sociedade e sua respectiva tutela estatal, conforme o Direito posto. Nesse universo, extrai-se a ideia de legalidade substancial.

Trata-se do princípio da legalidade substancial como a obrigatória necessidade de adequação e conformação do ato administrativo ao produto do processo legislativo e aos valores que conformam o direito.

Frisa-se, ainda, o necessário atendimento do ato administrativo juridicamente regular com a ideia de hierarquização legislativa, de forma que a atuação da Administração esteja em plena conformidade com seu ordenamento normativo próprio que, por sua vez, deve estar em perfeita consonância com a correspondente lei que o fundamenta.

Dessa maneira, consequentemente, o exercício administrativo necessita estar em conformidade com os ditames constitucionais, por primária obviedade de estruturação e manutenção de um sistema sustentável. Isto é, para o controle da legalidade do ato administrativo faz-se necessário aferir sua conformação legal ante a Constituição (prioritariamente), às leis infraconstitucionais e ao sistema normativo administrativo a que está adstrito.

Os valores que estruturam, justificam e se apresentam como incubadores das expressões normativas positivadas, de igual forma, são passíveis de verificação de regularidade de sua aplicação pela Administração, quando do exercício do respectivo controle pelo Judiciário.

O princípio da legalidade está determinando que não apenas a Administração Pública atue conforme a expressão legal, mas sim, em especial, conforme os valores de direito – fundamento e alicerce da ordem jurídica estatal.

Para Caio Tácito, “o controle de legalidade da Administração não é, afinal, monopólio ou privilégio de ninguém. Dele se utiliza qualquer um do povo quando ferido em direito seu ou em interesse legítimo”. Ressalta o autor que “a defesa da ordem jurídica é, sobretudo, um dever de cidadania: a mística da lei e a fidelidade ao interesse público são a essência mesma da sociedade livre e moralizada. O culto à liberdade não se coaduna com a tolerância do arbítrio ou o aceno à violência”. Dessa forma, conclui afirmando que “a legalidade não é uma simples criação de juristas, dosada em fórmulas técnicas e símbolos latinos. É o próprio instinto de conservação da comunidade. A todos incumbe, assim, o dever elementar de vigilância, a fim de que não se desmereça, no trato dos negócios públicos, a paz social traduzida na lei e no direito” (Tácito, Caio. Direito administrativo: São Paulo. Saraiva. 1975. p. 11).

Dito de outro modo, a legalidade aqui destacada é aquela fundante e justificadora de um sistema de organização de condutas voltadas ao bem e ao desenvolvimento comum, sem o qual, aparentemente, não se compreenderia a vida em sociedade estruturada para realizar solidariedade entre os cidadãos que nela vivem.

Isto é, pensa-se em legalidade como caminho minimamente seguro para que as interações subjetivas eventualmente reguladas pelo Estado possam trazer, proporcionalmente, benefícios isonômicos e equitativos para os envolvidos nessa missão de desenvolvimento intersubjetivo pregada pela Constituição Federal de 1988.

O controle jurisdicional de legalidade, inclusive da legalidade da discricionariedade administrativa, por meio da verificação da motivação aplicada à produção do ato administrativo a ser controlado, possui um especial desiderato estruturante dos caminhos que permitem ao Estado, e a seus partícipes, promover desenvolvimento intersubjetivo e bem comum dos indivíduos que compõem a nação.

Nesse prisma, o princípio da legalidade, como delineador da atividade administrativa estatal, é efetivado com a concreta realização do direito na realidade a qual é submetido.

Significa, então, que enquanto não ocorre a conclusão da filtragem axiológica jurídica do ato administrativo aplicado, acompanhado de motivação proporciona ao seu impacto no mundo real, o princípio da legalidade não presta para delimitar a Administração Pública, conforme determina a Constituição.

A mera retórica de agir nos limites da lei, como dicção do caput do art. 37 da CF/88 não adequa as tarefas administrativas do Estado aos objetivos fundamentais da República estabelecidos no art. 3º da Constituição.

Agir conforme a legalidade é agir conforme o sistema jurídico estabelecido para proteger, promover e realizar o Estado necessário e proporcional para todos, isonomicamente.

O princípio da legalidade é instrumento limitador da Administração Pública para que, quando aplicado em situações individualizadas, viabilizem o constante desenvolvimento intersubjetivo dos partícipes do Estado, indistintamente. E porque limita e, muitas vezes, restringe, mister é a apresentação de uma correspondente motivação robusta para se estabelecer o nexo causal entre a produção do ato administrativo e o interesse público concreto a ser promovido por tal atuação estatal.

Logo, além da mera legalidade estrita, além da juridicidade que vincula o agir administrativo conforme a lei e o direito, o princípio da legalidade fundamenta, estrutura e estabelece interligações desenvolvimentistas de todo o sistema estatal.

Assim, pensar em legalidade é idealizar a aplicação da lei como sistema promotor de desenvolvimento objetivo e subjetivo dos envolvidos, direta e indiretamente, quando da atividade administrativa do Estado.

Importante lembrar, nesse constitucional universo de realização da legalidade substancial, que as escolhas administrativas são decisões cujas consequências estão atreladas ao futuro dos envolvidos com o ente em que tais decisões foram definidas.

Escolher é hierarquizar. Logo, não basta o agir de forma simplesmente eficiente, conforme meros padrões de cumprimento de metas funcionais. Faz-se indispensável estabelecer o reconhecimento das consequências incidentes no agir administrativo para a aferição da boa gestão pública voltada à realização dos valores constitucionais.

Para tanto, quando o exercício jurídico demandar a busca do melhor emprego de meios de realização de um concretizável interesse público, o direito terá de buscar – em maior ou menor grau, dependendo do caso concreto – nos raciocínios econômicos o caminho de atender a esta respectiva demanda, a partir de uma impressão consequencialista do direito.

Logo, no alcance da melhor resposta na atividade pública, necessariamente, construções consenquencialistas o acompanharão. Nesse contexto de consequencialismo jurídico, destarte, é preciso considerar os efeitos e os reflexos das decisões disciplinares na vida dos indivíduos e de que forma irão se definir ou influir no futuro do meio social em que foram tomadas.

O principal desafio a ser superado dessa vertente jurídica é a aplicação do raciocínio consequencialista econômico puro sem passar pelo filtro axiológico do direito – com destaque aos valores de justiça e de liberdade que interagem com o direito.

Desse modo, para uma adequada gestão da coisa pública, é imperioso lembrar que os efeitos de suas decisões são tão importantes quanto as suas causas e fundamentos.

Para tal desiderato, o respeito a alguns princípios básicos, dentre outros, proporcionalidade, segurança jurídica e juridicidade precisam ser verificados a partir do estabelecimento de mecanismos de aprimoramento do agir administrativo.

A partir do desenhado cenário, vislumbra-se que o princípio da legalidade substancial do ato administrativo apenas pode fazer algum sentido quando confrontado com os elementos possíveis, viáveis e disponíveis do mundo real, para assim estabelecer o sentido e a amplitude desse princípio jurídico e, consequentemente, do próprio ato administrativo que lhe acompanha.

Nesse contexto, uma adequada viabilização do amplo controle de legalidade do ato administrativo, com relevo aos motivos que determinam seus destinos, concedem fim ao tempo não transcorrido por eventual ruptura do sistema, quando se observa, em conclusão desse sugerido choque de realidade, a não adequação do princípio da legalidade ao ordenamento constitucional estabelecido.

Logo, o princípio da legalidade substancial precisa ser interpretado sistematicamente, bem como, aplicado e concretizado de modo a promover o desenvolvimento intersubjetivo dos envolvidos do Estado que viabilizam o legítimo desenvolvimento estatal, pois representa um primordial mecanismo de verificação de falhas do ato administrativo, por meio de indicações de ações de apuração e superação de escolhas administrativas.

Fato que indica a abertura do conteúdo e do mérito do ato administrativo para um amplo controle de juridicidade pelo Judiciário, instrumento que protege e promove o sistema jurídico pátrio.

Não se pode ignorar o erro quando da aplicação da legalidade, ou simplesmente punir irracionalmente o equívoco administrativo. Deve-se respeitar o tempo da eventual falha administrativa, registrando o passado e projetando o futuro para o desenvolvimento do sistema. Cenário essencial para que o presente eventualmente disforme ao sistema não se repita.

Do contrário, estar-se-ia diante de um profundo, e de difícil reversão, universo de uma inconstitucional blindagem do ato administrativo, qual seja, o afastamento de um controle substancial da legalidade, a partir de sua conformação com os valores do direito sob a perspectiva formal e material.

Aceitar manifestações administrativas sem qualquer controle substancial da legalidade da atividade executiva estatal representa uma afronta imperdoável ao comezinho princípio republicano que sustenta o atual Estado de direito pátrio.

Assim estabelecido, torna-se relevante algumas conclusões construídas a partir da análise supra indicada:

a) O que se faz é tão importante como se faz.

b) Qualquer exercício de gestão administrativa é passível de responsabilização a partir da sua respectiva motivação (ou de sua ausência).

c) É obrigatória a consideração dos reflexos dos atos administrativos ao longo do tempo e a viabilização do controle das respectivas consequências.

d) As consequências de uma má gestão administrativas extrapolam o universo pessoal do gestor público e atingem de forma negativa, indistintamente, outras pessoas, bens e direitos.

e) A verificação da conformidade dos motivos estruturantes com a correspondente realidade que refletem é fato indispensável para se determinar a legalidade e legitimidade dos atos administrativos.

Verifica-se que apesar da frequente ocorrência de atividades administrativas estatais fora do alcance do princípio da legalidade substancial, efetivamente existem mecanismos jurídicos aptos a restabelecer o trilho da juridicidade de tais autuações administrativas estatais disformes ao direito.

Isto porque, atividades divorciadas da indicada legalidade substancial, ou disformes aos valores do direito, precisam ser reincorporadas ao constitucional tecido jurídico, em respeito à sua necessária sustentabilidade sistêmica, inclusive, visando à objetivação, ao máximo possível, da sindicabilidade do ato administrativo, com destaque ao conteúdo administrativo que traga relevante abalo sistêmico nacional.

Desse modo, atesta-se que todo e qualquer ato público precisa estar sob a égide do regime de responsabilidade e de responsabilização da atuação estatal, conforme rígidos valores públicos do cuidado do que é de todos e de cada um – a partir de uma justiça estabelecida sobre o mundo real, fundada em uma legalidade substancial, com um Estado gestor ciente de seus deveres de atuação proporcional, sustentável e realizadora dos objetivos fundamentais da república.



Por Phillip Gil França (PR)

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