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As licitações na Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais): mais do mesmo?

ANO 2016 NUM 230
Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)
Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA/RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDAERJ). Professor Adjunto de Direito Administrativo do IBMEC. Professor de Direito Administrativo da EMERJ e do CURSO FORUM. Professor dos cursos de Pós-Graduação da FGV e Cândido Mendes. Advogado, árbitro e consultor jurídico. Sócio fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. www.professorrafaeloliveira.com.br


09/08/2016 | 12993 pessoas já leram esta coluna. | 5 usuário(s) ON-line nesta página

Após, aproximadamente, 18 anos de espera, finalmente foi elaborado o estatuto jurídico das estatais. Ao regulamentar o art. 173, §1º da CRFB, alterado pela EC 19/1998, a Lei 13.303/2016 estabelecer normas sobre regime societário, licitações, contratos e controle das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, exploradoras de atividades econômicas, ainda que em regime de monopólio, e prestadoras de serviços públicos.

O presente ensaio tem por finalidade apresentar uma visão crítica no tocante ao regime de licitação estabelecido pela referida Lei.

Com efeito, a Lei 13.303/2016 fixou normas homogêneas de licitação para toda e qualquer empresa estatal, sem distinção entre o tipo de objeto prestado: serviço público e/ou atividade econômica.

A ausência de assimetria normativa no tratamento da licitação entre as diversas estatais, a partir das respectivas atividades desenvolvidas, pode ser questionada sobre diversos aspectos.

Em primeiro lugar, os Tribunais Superiores, o TCU e parcela da doutrina sempre apresentaram distinções quanto ao regime jurídico das estatais a partir da atividade desenvolvida, aproximando, com maior intensidade, o regime das estatais econômicas, que atuam em regime de concorrência no mercado, ao regime das demais empresas privadas. Mencione-se, por exemplo: a) o reconhecimento da imunidade tributária para estatais prestadoras de serviços públicos ou exploradora de atividades econômicas em regime de monopólio; a impenhorabilidade de bens afetados à prestação dos serviços públicos e necessários à sua continuidade; a responsabilidade civil objetiva das estatais de serviços públicos, na forma do art. 37, §6º da CRFB.

No campo das licitações, o entendimento tradicional também sustentava a necessidade do tratamento diferenciado entre as estatais a partir dos respectivos objetos sociais. Enquanto as empresas estatais prestadoras de serviços públicos seriam tratadas como as demais entidades da Administração Pública Direta e Indireta, submetendo-se à Lei 8.666/1993 e legislação correlata, as estatais econômicas estariam autorizadas a celebrar contratações diretas para exploração de suas atividades econômicas, aplicando-se às demais contratações as normas de licitação existentes até o advento do regime próprio exigido pela Constituição (sobre o tema, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 5. ed., SP: Método, 2015, p. 57/60).

Vale dizer: as estatais econômicas não precisariam realizar licitação para o desempenho de suas atividades econômicas finalísticas, mas apenas para contratações relacionadas às suas atividades instrumentais.

A referida assimetria no tocante às licitações era justificada em razão da necessidade de maior celeridade na exploração das atividades econômicas, uma vez que as estatais, ao contrário das demais entidades administrativas, concorrem com empresas privadas que, por sua vez, não se submetem às regras da licitação.

Isto porque as estatais econômicas são como o Deus romano Jano, possuem duas faces que olham para direções opostas: de um lado, a face privada da sua personalidade jurídica e da exploração da atividade econômica, que exigem a adoção do regime próprio das empresas da iniciativa privada; e, de outro lado, a face pública que reside especialmente no controle societário estatal, o que justifica a aplicação de normas de direito público (exs.: concurso público; controle pelas Cortes de Contas; teto remuneratório, com a exceção das estatais não dependentes etc.).

Há uma busca incessante pelo equilíbrio entre a busca da lucratividade, por um lado, especialmente por parte das sociedades de economia mistas, que possuem sócios privados investidores, e, por outro lado, da efetividade do interesse público que justificou a instituição da estatal.

Não é por outra razão que, no campo das contratações, o art. 173, §1º da CRFB, alterado pela EC 19/1998, remeteu ao legislador ordinário a tarefa de elaborar o estatuto jurídico das empresas estatais exploradoras de atividade econômica que deveria dispor, dentre outros temas, sobre “licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública”. O objetivo foi estabelecer regime distinto daquele aplicado às demais entidades da Administração Pública, na forma dos arts. 21, XXVII, e 31, XXI, da CRFB.

Não obstante o art. 173, §1º da CRFB dispor sobre as estatais econômicas, inclusive por se encontrar no Capítulo I do Título VII da Constituição, que trata dos “princípios gerais da atividade econômica”, verifica-se que a Lei 13.303/2016 extrapolou, em certa medida, para englobar, ainda, as estatais que atuam em regime de monopólio e as que prestam serviços públicos.

Não se questiona, aqui, a complexidade cada vez maior em identificar e caracterizar, nos objetivos sociais das diversas empresas estatais, as respectivas atividades como serviços públicos ou atividades econômicas. O desafio decorre, em grande medida, da própria dificuldade da conceituação do serviço público que também pode ser considerada, ao lado da atividade econômica em sentido estrito, espécie de atividade econômica em sentido lato.

O problema é amplificado no caso das estatais que exploram as duas atividades, tal como ocorre no caso da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT). Não obstante a questionável decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da APF 46 (STF, ADPF 46/DF,
Rel. p/ acórdão Min. Eros Grau,Tribunal Pleno, DJe-035  26/02/2010), quando a Corte afirmou que, em princípio, o serviço postal é serviço público, não se pode olvidar – e isso foi afirmado no próprio julgado em comento – que alguns serviços postais seriam considerados atividades econômicas e seriam prestados em regime concorrencial, o que dificulta, em nosso juízo, a homogeneização de regimes jurídicos.

De lado a dificuldade na distinção entre as atividades econômicas em sentido estrito e os serviços públicos, não se pode desconsiderar que a Constituição da República consagrou a referida distinção ao exigir normas próprias de licitação apenas para estatais exploradoras de atividades econômicas que atuam em regime concorrencial.

Em resumo, a distinção relativa ao objeto da estatal influencia decisivamente no respectivo regime licitatório. Enquanto a atividade econômica encontra-se submetida ao princípio da livre concorrência, a prestação do serviço público é de titularidade estatal.

É verdade, contudo, que, mesmo na prestação de serviços públicos, a Administração deve promover a concorrência, na forma do art. 16 da Lei 8.987/1995, o que poderia justificar a submissão às regras diferenciadas de licitação.

O que não parece razoável é a fixação de normas homogêneas de licitação para toda e qualquer empresa estatal, independentemente da atividade desenvolvida (atividade econômica ou serviço público) e do regime de sua prestação (exclusividade, monopólio ou concorrência).

E preciso levar a sério a personalidade jurídica de direito privado e a atuação concorrencial por parte das estatais.

Assim como as pessoas jurídicas de direito privado não devem ser submetidas ao idêntico tratamento dispensado às pessoas jurídicas de direito público da Administração Direta e Indireta, não seria prudente fixar o mesmo tratamento jurídico para pessoas jurídicas de direito privado que atuam em exclusividade (ou monopólio) e em regime concorrencial.

A possível solução é a interpretação conforme a Constituição da Lei 13.303/2016 para que as suas normas de licitação sejam aplicadas às empresas estatais que exploram atividades econômicas lato sensu em regime concorrencial, excluindo-se da sua incidência as estatais que atuam em regime de monopólio e na prestação de serviços públicos em regime de exclusividade.

Fica a impressão de que o legislador perdeu uma grande oportunidade de inovação na fixação de normas diferenciadas de licitação voltadas às estatais exploradoras de atividades econômicas em regime concorrencial.

De fato, a grande demora na regulamentação do art. 173, §1º, da CRFB, aumentou as expectativas nos operadores do direito e gestores públicos no tocante à qualidade do estatuto jurídico das estatais econômicas.

Talvez, por isso, verifica-se, com certa decepção, que o legislador foi pouco criativo ao tratar da licitação na Lei 13.303/2016, limitando-se a estabelecer uma colcha de retalhos de normas já existentes em outros diplomas normativos, notadamente a Lei 10.520/2002 (pregão) e a Lei 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC).

Não se discute a qualidade das normas do pregão e do RDC – certamente melhores que as normas excessivamente formalistas da Lei 8.666/1993 –, mas a opção legislativa de colocar no mesmo balaio entidades administrativas que, por imposição constitucional, deveriam ser tratadas de forma diversa.

Apesar dos notáveis avanços na relativização das influências políticas na gestão das estatais, com a limitação da discricionariedade e moralização das nomeações dos dirigentes, bem como na fixação de normas relativas ao controle institucional e social, a Lei 13.303/2016 foi tímida ao dispor sobre as normas relacionadas às licitações.

No tradicional conflito entre as faces estatal x privada das estatais econômicas, o primeiro tem vencido com ampla margem de vantagem, colocando em risco a concorrência no respectivo mercado, influenciado, certamente, pela reação formalista e estatizante do legislador aos escândalos revelados na operação “Lava Jato” que tiveram a Petrobras no foco.

Aliás, o Decreto 2.745/1998, que estabelecia o regime simplificado de licitação na referida estatal federal, não poderá mais ser utilizado após a revogação da norma legal que lhe dava fundamento. O arts. 67 da Lei 9.478/1997, que remetia ao decreto presidencial a definição do procedimento licitatório simplificado na Petrobras, foi revogado pelo art. 96, II, da Lei 13.303/2016.

Existe o mito, criado pelo senso comum, de que os remédios para solução dos momentos de crise seriam o aumento do formalismo e da burocracia da máquina pública. Costuma-se afirmar, sem maior rigor técnico, que a flexibilização da gestão pública seria, em grande medida, causa para a prática de atos de corrupção.

Ora, basta uma análise pragmática e comprometida da nossa realidade para se perceber que não é o excesso de formalismo e de burocracia que resolverão o problema dos desvios éticos nas licitações. Ao contrário, como demonstra o velho ditado popular, em muitos casos o agente ímprobo “cria dificuldades para vender facilidades”.

Ao invés de adotar as soluções de licitação, pensadas e voltadas para entidades administrativas que não atuam no cenário concorrencial, o legislador poderia ter discutido a instituição de modelo verdadeiramente novo e apropriado para entidades estatais que são, na essência, diferentes pelo simples fato de explorarem atividades econômicas, em regime concorrencial, e possuírem personalidade jurídica de direito privado.

Em suma, o legislador perdeu uma grande oportunidade de inovação na fixação de normas diferenciadas de licitação voltadas às estatais exploradoras de atividades econômicas em regime concorrencial.



Por Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)

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