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O contrato built to suit na Administração Pública

ANO 2016 NUM 125
Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)
Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA/RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDAERJ). Professor Adjunto de Direito Administrativo do IBMEC. Professor de Direito Administrativo da EMERJ e do CURSO FORUM. Professor dos cursos de Pós-Graduação da FGV e Cândido Mendes. Advogado, árbitro e consultor jurídico. Sócio fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. www.professorrafaeloliveira.com.br


30/03/2016 | 15575 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Não é de hoje que a Administração Pública busca fórmulas do Direito Privado para superar obstáculos burocráticos e garantir a eficiência administrativa. As inovações tecnológicas, o processo de globalização e as novas demandas sociais são alguns fatores que incrementam o diálogo entre as esferas pública e privada.

Com a crise do Estado liberal e a ascensão do Estado social (Welfare State), notadamente após a Segunda Guerra Mundial, a intervenção estatal na economia e nas relações sociais é reforçada, com a ampliação de serviços públicos e maior dirigismo estatal na proteção de direitos fundamentais sociais (leis trabalhistas, proteção dos consumidores etc.).

As novas tarefas públicas e a necessidade de atuação estatal para proteger os indivíduos acarretam o aumento da máquina administrativa e justificam a adoção de novos instrumentos, inclusive com a “fuga para o Direito privado”, pelo Estado, proliferando-se, nesse cenário, a instituição de empresas estatais econômicas e prestadoras de serviços públicos, bem como a utilização preponderante de instrumentos consensuais, tais como os contratos administrativos, no lugar dos atos administrativos unilaterais

A partir da década de 80, diversos países iniciaram um movimento de ajuste fiscal e de privatizações, com destaque para a Grã-Bretanha, Estados Unidos e Nova Zelândia. No Brasil, a reformulação do papel e do tamanho do Estado foi implementada na década de 1990, por meio de alterações normativas importantes que liberalizaram a economia e efetivaram a desestatização, com destaque para o Programa Nacional de Desestatização (PND) instituído pela Lei 8.031/1990 que foi substituída pela Lei 9.491/1997.

Inicia-se, em consequência, o processo de redefinição do perfil do Estado e do modelo de intervenção, com a diminuição do aparato administrativo e a adoção crescente da técnica da regulação (“Estado regulador”) em vez da intervenção direta na economia.

Posteriormente, nos anos 2000, ocorre o retorno do pêndulo no modelo de intervenção estatal na economia, com o incremento da intervenção direta por meio da instituição de novas empresas estatais (exs.: Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia – Hemobras – Lei 10.972/2004; Empresa de Pesquisa Energetica – EPE – Lei 10.847/2004; Empresa Brasil de Comunicacao – EBC – Lei 11.652/2008); Empresa Brasileira de Servicos Hospitalares – EBSERH – Lei 12.550/2011); etc.

A revalorização das empresas estatais pode ser justificada, em síntese, pela visão critica do novo governo em relação ao modelo regulatório vigente, bem como pela crise internacional iniciada em 2008, com a crise imobiliária norte-americana, que impulsionou a criação de empresas estatais para implementação de investimentos necessários a recuperação da economia e ao desenvolvimento.

Os movimentos pendulares demonstram, com graus distintos de intensidade, a existência do diálogo entre a Administração Pública e a iniciativa privada, especialmente por meio de parcerias institucionais/societárias (exs: sociedades de economia mista e sociedade com participação societária minoritária do Estado) e negociais com a iniciativa privada (exs: contratos em geral, concessões comuns, Parcerias Público-Privados, parcerias com o Terceiro Setor).

Desta forma, ao lado da elasticidade do Direito Administrativo, que dialoga com outras disciplinas jurídicas, inclusive o Direito Civil, é possível perceber, na atualidade, uma tendência à processualização e contratualização da ação administrativa.

Com efeito, o ato administrativo, que representa a vontade unilateral da Administração, perde seu papel de protagonista para o processo e os negócios jurídicos, que viabilizam a participação do destinatário na formação da vontade estatal, o que garante maior legitimidade e eficiência à atuação administrativa.

Ora, a própria utilização dos contratos no âmbito da Administração demonstra a aproximação entre o Direito Administrativo e o Direito Civil. Ao lado dos contratos administrativos, propriamente ditos, o Estado tem a possibilidade de formalizar contratos previstos na legislação civilista. O regime jurídico de direito privado é aplicável aos dois tipos de contratos: de forma supletiva na primeira (art. 54 da Lei 8.666/1993) e de forma preponderante na segunda hipótese (art. 62, §3º, I da Lei 8.666/1993).

É justamente no mencionado art. 62, §3º, I da Lei 8.666/1993 que a legislação, ao mencionar, exemplificativamente, contratos privados que poderão ser utilizados pela Administração, indica, expressamente, o contrato de locação, objeto central do presente estudo.

Portanto, a própria legislação sempre autorizou a celebração de contratos de locação em que a Administração Pública figura como locatária, submetendo o ajuste, em regra, à Lei 8245/1991 (Lei de Locações), com a possibilidade de dispensa de licitação na forma estipulada no art. 24, X da Lei 8.666/1993.

Conforme mencionado anteriormente, a Administração não é indiferente às inovações trazidas pela legislação civilista, o que pode ser confirmado pela utilização de novos arranjos no campo das locações, com destaque para os contratos de locação “sob medida ou encomenda” ou contratos built to suit (“construir para servir”), amplamente utilizados nos Estados Unidos e na Europa a partir da década de 50.

Nos referidos contratos, o locador realiza prévia aquisição, construção ou reforma substancial, com ou sem aparelhamento de bens, por si mesmo ou por terceiros, do bem especificado pelo locatário. Vale dizer: ao contrário das locações tradicionais, nas locações sob encomenda o locador oferece ao locatário, por prazo determinado e mediante remuneração, um imóvel construído, implementado e/ou aparelhado de acordo com as suas especificidades e necessidades.

Até então considerados contratos atípicos no campo privado, os contratos built to suit foram tipificados no art. 54-A da Lei 8.245/1991, incluído pela Lei 12.744/2012, com a prevalência das condições livremente pactuadas pelas partes, observadas as disposições procedimentais previstas na Lei de Locações. A tipificação contratual garantiu maior segurança jurídica aos interessados nesse modelo contratual.

A utilização dos contratos built to suit por parte da Administração Pública, por sua vez, encontra fundamento genérico no supracitado art. 62, §3º, I da Lei 8.666/1993.

Além de permitir o acesso ao bem pela Administração, com as especificações necessárias para a prestação das atividades administrativas, sem a necessidade de dispêndio imediato de somas vultosas que seriam necessárias para aquisição e transformação do imóvel, a locação sob encomenda evita a imobilização de ativos e permite a concentração de esforços na prestação das atividades finalísticas do Estado, sem olvidar de eventuais vantagens tributárias.

No ano de 2013, importante discussão foi travada no âmbito do Tribunal de Contas da União acerca da aplicação desta modalidade de contratos ao setor público.( TCU, Acórdão 1.301/2013, Plenário, Rel. Min. Substituto André Luís Carvalho, Rev. Min. Benjamin Zymler, 29.05.2013.) No caso em tela, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho – CSJT – apresentou o questionamento sobre a aplicabilidade ou não do inciso X, do art. 24, da lei 8.666/1993,  ou seja, se a modalidade de contratos “built to suit” seria aplicável às contratações públicas e, mais especificamente, justificaria a dispensa de realização de procedimento licitatório. É o seguinte o texto da norma referida: “Art. 24. É dispensável a licitação: X - para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia”.

Em sua resposta, o TCU admitiu a utilização dos contratos built to suit na Administração Pública desde que atendidos os seguintes requisitos:

1) realização de licitação, admitindo-se, no entanto, a contratação direta se preenchidos os requisitos previstos no art. 24, X, da Lei 8.666/1993 e se o terreno, onde será construído o imóvel, pertencer ao futuro locador;

2) demonstração de que as necessidades de instalação e de localização condicionam a escolha de determinado imóvel e que o preço da locação se mostra compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia, bem como que a junção do serviço de locação com a eventual execução indireta de obra apresenta economia de escala, sem ofensa, portanto, ao princípio do parcelamento do objeto;

3) caracterização da efetiva necessidade do novo imóvel, com demonstração de que o imóvel até então porventura em uso não atende mais ao interesse público e de que não comporta readequação;

4) comprovação da inexistência de imóveis disponíveis no âmbito da Administração que atendam às necessidades da atividade a ser desenvolvida;

5) fundamentação da decisão pela locação sob medida baseada em estudos técnicos, pareceres e documentos comprobatórios que justifiquem tal opção contratual, com a demonstração que a solução é mais vantajosa comparada às outras alternativas, inclusive a Parceria Público-Privada (PPP), na modalidade administrativa.

A viabilidade de utilização dos contratos built to suit na Administração Pública foi recentemente consagrada na legislação. No âmbito do Regime Diferenciado de Contratações – RDC, o art. 47-A da Lei 12.462/2011, inserido pela Lei 13.190/2015, dispõe:

“Art. 47-A. A administração pública poderá firmar contratos de locação de bens móveis e imóveis, nos quais o locador realiza prévia aquisição, construção ou reforma substancial, com ou sem aparelhamento de bens, por si mesmo ou por terceiros, do bem especificado pela administração.

§ 1o A contratação referida no caput sujeita-se à mesma disciplina de dispensa e inexigibilidade de licitação aplicável às locações comuns.

§ 2o A contratação referida no caput poderá prever a reversão dos bens à administração pública ao final da locação, desde que estabelecida no contrato.

§ 3o O valor da locação a que se refere o caput não poderá exceder, ao mês, 1% (um por cento) do valor do bem locado.”

Conforme destacado na transcrição acima, a Lei 13.190/2015, além de mencionar o instituto de maneira expressa e garantir segurança jurídica, admitiu a sua utilização não apenas para bens imóveis, mas também bens móveis, com ou sem o aparelhamento de bens, bem como estabeleceu os seguintes parâmetros: a) sujeitam-se à mesma disciplina da dispensa e inexigibilidade de licitação aplicável às locações comuns (aliás, sempre sustentamos que a hipótese prevista no art. 24, X da Lei 8.666/1993 se aproxima mais de inexigibilidade de licitação, em virtude da inviabilidade de competição, do que propriamente da dispensa) (v. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 5. ed., São Paulo: Método, 2015, p. 76. Aliás, a legislação anterior tratava da hipótese como inexigibilidade (art. 23, IV, do DL 2.300/1986); b) poderão prever, no contrato, a opção de reversão dos bens à Administração Pública ao final da locação, assemelhando o instituto ao leasing; e c) o valor da locação não poderá exceder, ao mês, 1% (um por cento) do valor do bem locado.

Em relação ao prazo contratual, sustentamos a desnecessidade de submissão dos contratos de locação sob medida à regra do prazo anual, consagrada no art. 57, caput, da Lei 8.666/1993, admitindo-se, por conseqüência, a fixação de prazos superiores, de acordo com as necessidades da Administração.

Isto porque o art. 62, § 3º, I, da Lei 8.666/1993 determina a aplicação dos arts. 55 e 58 a 61 da referida Lei aos contratos regidos, predominantemente, por normas de direito privado, silenciando em relação ao art. 57 que dispõe sobre a regra do prazo anual.( OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 5. ed., São Paulo: Método, 2015, p. 245).  De forma semelhante, o TCU decidiu que o prazo de vigência do art. 57 da Lei 8.666/1993 não se aplica aos contratos de locação de imóveis.( TCU, Acórdão 170/05, Plenário, Rel. Min. Ubiratan Aguiar, DOU 10.03.2005). Mencione-se, ainda, a Orientação Normativa/AGU 6 que dispõe: “A vigência do contrato de locação de imóveis, no qual a Administração Pública é locatária, rege-se pelo art. 51 da Lei n.º 8.245, de 1991, não estando sujeita ao limite máximo de sessenta meses, estipulado pelo inc. II do art. 57, da Lei n.º 8.666, de 1993”.

Em conclusão, a viabilidade dos contratos built to suit na Administração encontra fundamento genérico no art. 62, §3º, I da Lei 8.666/1993 c/c art. 54-A da Lei 8.245/1991 e previsão específica no art. 47-A da Lei 12.462/2011.

O presente ensaio pretende demonstrar que os novos desafios requerem novas e rápidas soluções por parte dos gestores públicos. O direito, por certo, não tem acompanhado a velocidade das transformações políticas, sociais, econômicas e tecnológicas, o que não pode servir como entrave para inovações nas soluções buscadas pelo Estado. No campo das contratações públicas, os contratos built to suit confirmam esse caminho e a sua consagração no direito positivo garante a segurança jurídica necessária para sua difusão no cenário nacional.



Por Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)

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