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A Improbidade Administrativa por Atos Legislativos - Panorama atual e breves reflexões

ANO 2017 NUM 335
Ricardo Benetti Fernandes Moça (ES)
Professor da Escola do Poder Legislativo da AL-ES. Procurador da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória/ES. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes - UCAM/RJ. Membro Conselheiro da Comissão de Advocacia Pública da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Espírito Santo. Membro Conselheiro da Associação de Jovens Advogados do Estado do Espírito Santo. Advogado.


02/03/2017 | 10416 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

Os  noticiários recentes vêm tornando manifesto o evidente fisiologismo nas relações políticas entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Algumas delações premiadas têm corroborado a existência de troca de favores - seja por meio da liberação de verbas ou distribuição de cargos - que afetam diretamente a busca pelo interesse público na atividade legiferante.

Dentro do ordenamento jurídico, uma pluralidade de normas busca combater os atos de corrupção e, no presente ensaio, destacaremos a Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) no intuito de delimitar o seu campo de aplicação na edição de atos legislativos.

Inicialmente, temos que ter em mente que, se o agente público aplica uma lei, a qual possui o atributo da presunção de constitucionalidade, não cometerá ato de improbidade administrativa, pois o agir administrativo para estes casos estará resguardado na norma autorizativa que, repita-se: presume-se constitucional.

Não está compreendido no juízo de valor que detêm os legitimados a propor ações por ato de improbidade administrativa a avaliação acerca dos benefícios ou malefícios da lei, vale dizer, do seu mérito; motivo pelo qual não enseja o controle via ação civil pública por ato de improbidade administrativa, pois o próprio nome supõe que a improbidade é “administrativa” e não “legislativa”.

Outro ponto que devemos destacar é que, na edição de atos legislativos, via de regra, não se aplica imediatamente a teoria da responsabilidade civil do Estado. O raciocínio é simplório: se a atividade legislativa é função decorrente da soberania popular, seria paradoxal o Estado ser responsabilizado quando a lei acarretar dano a alguém.

Considerando que a lei é geral, impessoal e abstrata, sendo ato respaldado na soberania popular, teríamos óbice em responsabilizar o ente federativo na suposta reparação  do  dano  e,  no  caso  específico  da  improbidade  administrativa, os agentes políticos que participaram da formação da norma.

Contudo, em algumas hipóteses, tem-se permitido a responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, casos estes que permitem a submissão dos atos tipicamente legislativos à incidência da Lei de Improbidade, alcançando os agentes políticos que estiveram à frente da condução do processo legislativo.

Para a aplicação das sanções decorrentes de atos de improbidade por ato legislativo a doutrina e jurisprudência vêm permitindo a responsabilização de agentes políticos quando estamos diante das leis de efeito concreto.

Cabe rememorar que a lei em sentido material é ato normativo dotado de generalidade (atributo da norma de ser aplicável a destinatários indeterminados, isto é, a qualquer um que se enquadre na regra prescrita) e abstração (refere-se à qualidade da norma de se destinar a situações hipotéticas, que podem ou não ocorrer no mundo real). Já as leis de efeito concreto, apesar de se submeterem ao crivo do processo legislativo constitucionalmente previsto para a formação das leis, somente levam o  nome  de  “lei” por  este  motivo, sendo  materialmente (quanto ao conteúdo), verdadeiros atos administrativos.

O jurista Fábio Medina Osório defende a submissão dos atos tipicamente legislativos à Lei de Improbidade quando a norma ostentar verdadeira feição de ato   administrativo,   ou   seja,   operar   diretamente   efeitos   concretos   (Cf. Improbidade Administrativa. 2.ed. Porto Alegre: Síntese. 1998, p. 106).

No mesmo sentido, passamos a citar trecho de obra de Pedro Roberto Decomain, que afirma:

"A ação por improbidade administrativa não é meio processual adequado para impugnar ato legislativo propriamente dito. Isso não significa, todavia, que todos os atos a que se denomina formalmente de 'lei' estejam infensos ao controle jurisdicional por seu intermédio. Leis que usualmente passaram a receber a denominação de 'leis de efeitos   concretos',   e   que   são   antes   atos   administrativos   que legislativos, embora emanados do Poder Legislativos, podem ter sua eventual lesividade submetida a controle pela via da ação por improbidade administrativa (...) Improbidade Administrativa. São Paulo:Dialética. 2007, p. 64 e 66).

No Superior Tribunal de Justiça, o leading case em que definiu tal orientação é oriundo do RESP nº 1.316.951 – SP, do qual destacamos o fragmento da ementa que segue:

"ATO LEGISLATIVO DE EFEITOS CONCRETOS E IMPROBIDADE

(....)

12. Inexiste, in casu, restrição à aplicabilidade da LIA. Não se cuida aqui de ato legislativo típico, de conteúdo geral e abstrato.

Debate-se  aqui  norma  de  autoria  do  presidente da  Câmara,  cujos efeitos são concretos e delimitados à majoração de subsídios próprios e dos demais vereadores, em manifesta afronta ao texto constitucional e a despeito de inúmeros alertas feitos por instituições civis e pelo Ministério Público.

13. Em situações análogas, o STF e o STJ admitiram o repúdio de tal conduta com amparo na LIA, sem cogitar da aludida presunção de legitimidade/legalidade, por se tratar de ato ímprobo amparado em norma (cfr. STF, RE 597.725, Relatora Min. Cármen Lúcia, publicado 25/09/2012; STJ, AgRg no REsp 1.248.806/SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29/6/2012; REsp 723.494/MG, Rel. Min.Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 8/9/2009; AgRg no Ag 850.771/PR, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJ 22/11/2007; REsp 1.101.359/CE, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 9/11/2009).

14. Precedente desta Turma, relatado pelo eminente Ministro Castro Meira, lastreado em doutrina de Pedro Roberto Decomain, no sentido de que "A ação por improbidade administrativa não é meio processual adequado para impugnar ato legislativo propriamente dito. Isso não significa, todavia, que todos os atos a que se denomina formalmente de 'lei' estejam infensos ao controle jurisdicional por seu intermédio. Leis que usualmente passaram a receber a denominação de 'leis de efeitos   concretos',   e   que   são   antes   atos   administrativos   que legislativos, embora emanados do Poder Legislativos, podem ter sua eventual lesividade submetida a controle pela via da ação por improbidade administrativa (...)" (REsp 1.101.359/CE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 9/11/2009).(REsp 1316951/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/05/2013, DJe 13/06/2013)

A propósito do assunto, vale citar, a arrebatadora fundamentação do Ministro Sérgio Kukina, no julgamento do REsp 1.181.511/RS:

"Há de se observar que a atividade legislativa não é incontestável, ao revés,  cabe  ao  Poder  Judiciário  verificar  a  adequação  da  lei  aos padrões de probidade, os quais devem nortear toda a atividade legislativa, desde a fase de proposição até a apreciação final pela Casa Legislativa. Ademais, há de se proceder a uma análise de proporcionalidade dos atos  discricionários, notadamente, para  o  fim  de  comprovação da existência ou não de desvio de finalidade no caso concreto, a indicar violação a princípios administrativos pelos agentes públicos. A doutrina é assente em proclamar a possibilidade de o Poder Judiciário realizar controle difuso de constitucionalidade dos atos legislativos para o fim de se caracterizar atos de improbidade."

Em termos claros e objetivos, comprovada a hipótese da imputação de conluio entre membros do Poder Legislativo e terceiros com interesse direto na formação correta  ou  incorreta  de  determinada  norma  de  efeito  concreto  (exemplos: isenções  fiscais  direcionadas e  sem  o  atendimento dos  preceitos  da  Lei  de Responsabilidade Fiscal;  aumento  do  subsídio  de  vereadores  sem  atender  a CF/88), plenamente possível que ocorra a  aplicação das sanções por ato de improbidade administrativa.

Poderíamos questionar se a imunidade parlamentar material, prevista no artigo 53 da Constituição Federal, impediria qualquer tentativa de responsabilizar o parlamentar pela aprovação de lei de efeito concreto contrária ao interesse público. Isso em razão de a referida imunidade obstar qualquer responsabilização pessoal dos membros das Casas Legislativas pela votação e aprovação de proposições legislativas, ainda que dissonantes das normas constitucionais e ao próprio princípio da moralidade, o que, em termos práticos, impossibilitaria a aplicação da Lei nº 8.429/92.

Por  óbvio  que  a  imunidade  parlamentar  material  não  impede  que  se  possa detectar a improbidade administrativa dos atos legislativos, quando determinada iniciativa parlamentar visa a propósitos escusos, com o desvio manifesto da atuação parlamentar.

A uma porque, tal prerrogativa parlamentar está ligada à liberdade e ao correto exercício do mandato, corolários da existência e independência do Poder Legislativo o que se torna contraditório com o ato de legislar em causa própria ou para atender a interesses de particulares e de terceiros que financiam a matéria.

A duas porque, a imunidade material não pode ser tratada como uma carta em branco para que os representantes do povo passem a agir buscando o desvio de finalidade e editem leis viciadas ao seu bel prazer. Se plenamente possível que condutas acobertadas pela imunidade material, quando excedidas, possam dar ensejo à quebra de decoro, quiçá deveria existir divergência quanto à aplicação da  lei  de  improbidade, se  a  norma de  efeito concreto estiver dissociada do interesse  público  e  o  seu  conteúdo  final  relacionar-se  com  a  obtenção  de benefício para o legislador ou terceiros.

Assim, se o ato legislativo é praticado com dolo, almejando fins ilícitos, não parece ter maiores problemas na identificação do uso indevido da função pública parlamentar.

Dessa forma, o que é combatido não é o ato legislativo em si, mas a conduta ilícita, muita das vezes ímproba, que lhe antecede e que lhe contamina. Nessa linha de raciocínio, a atividade parlamentar pode ser alcançada pela improbidade ou desonestidade do legislador, ocasião em que será aplicável a responsabilidade pessoal do agente político à luz da Lei nº 8.429/92, desde que observado o devido processo legal.

Relativamente à configuração da improbidade administrativa por ato legislativo, entendemos que deverá atender aos seguintes requisitos:

a) edição de lei de efeito concreto em evidente desvio de finalidade;

b) dolo do(s) agente(s) ou terceiro(s);

c) nexo de causalidade entre a ação/omissão e a respectiva lesividade que trouxe a norma editada dissociada do interesse público.

Em  arremate, num cenário em que  a  sociedade toma ciência de  numerosos escândalos envolvendo parlamentares em atos de corrupção, a ação de improbidade administrativa é  importante ferramenta, que possibilita tutelar  a moralidade e a impessoalidade na condução do processo legislativo, principalmente quando estivermos diante das chamadas leis de efeito concreto.



Por Ricardo Benetti Fernandes Moça (ES)

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