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Regime Próprio de Previdência e Direito Adquirido

ANO 2017 NUM 380
Ricardo Marcondes Martins (SP)
Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. Líder do grupo de pesquisa "Ponderação no direito administrativo e contrafações administrativas".


07/12/2017 | 10127 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Fui convidado a participar do XIV Congresso Brasileiro de Procuradores Municipais, realizado em Curitiba, nos dias 21 a 24 de novembro, para, a pedido do ilustre Presidente da Associação Nacional de Procuradores Municipais, Carlos Figueiredo Mourão, falar sobre o “direito adquirido no regime estatutário”. O honroso convite me fez revisitar um tema bastante tormentoso. Aproveito a reflexão para examiná-lo tendo em vista a Reforma do regime próprio da Previdência. Como é de conhecimento de todos, o governo Temer pretende alterar a Constituição para, dentre outras propostas, equiparar o regime próprio ao regime geral. A alteração desse regime parece ser uma obsessão de todo Presidente da República. Trata-se, pois, de um tema constantemente em pauta. Daí a pergunta: servidores públicos não possuem direito adquirido à manutenção, ainda que parcial, do regime anterior?

O tema do direito adquirido é, por si, bastante problemático. Não é de se estanhar que sua relação com o regime estatutário seja mal compreendida por quase toda comunidade jurídica. Para elucidá-lo proponho o seguinte caminho: 1) examinar o conceito de direito adquirido; 2) retomar as bases conceituais do regime estatutário; 3) verificar se há ou não direito adquirido no regime estatutário; 4) verificar se, em relação às regras de previdência, há alguma especificidade.

Muito já se escreveu sobre o direito adquirido. Dentre todos que se debruçaram sobre o tema, talvez o mais aclamado tenha sido o italiano Carlo Francesco Gabba. Para ele, “direito adquirido” é consequência de um fato idôneo a produzi-lo em virtude da lei vigente quando de sua ocorrência; sendo que, uma vez estabelecido, o direito integra o patrimônio do titular e não é atingido pela superveniência de uma lei nova. O problema é saber quando se considera “adquirido” o direito ou, noutras palavras, quando se considera que o direito entrou no patrimônio do titular.

Há que distinguir os fatos pretéritos, os fatos presentes e os fatos futuros. É praticamente incontroverso que a lei anterior rege os fatos pretéritos e a lei posterior os fatos futuros. O grande problema está em relação aos fatos pendentes, que se originaram à luz da lei anterior, mas cujos efeitos se dão sob a égide da nova lei.

Gabba distinguia os fatos aquisitivos simples dos fatos aquisitivos complexos. Eis o problema: quando a nova lei pode atingir partes não acabadas de um fato aquisitivo complexo? Gabba apresentou alguns critérios: rege-se pela lei antiga quando o fato ainda não verificado for infalível; não estiver mais no poder de alguém contra quem o direito é afirmado; a aquisição tiver raiz em direito já adquirido. Afora esses casos, fatos aquisitivos que não completaram o ciclo de formação são atingidos pela nova lei.

O francês Paul Roubier criticou a expressão “direito adquirido”. Para ele, a lei nova não atinge os fatos anteriores nem os efeitos anteriores de fatos passados, mas atinge os fatos futuros e os efeitos presentes e futuros dos fatos passados. Sustentou Roubier que quando a lei atinge fatos pendentes não possui efeito retroativo, mas efeito imediato. Não é tão simples assim. Um contrato, ainda vigente, será sempre atingido pela nova lei? O próprio Roubier responde negativamente.

O regime estatutário é um regime jurídico da atividade profissional da Administração Pública, profundamente diferente do regime jurídico da atividade profissional privada. A diferença é bem visualizada a partir da classificação dos atos jurídicos proposta por Léon Duguit: atos subjetivos imputam obrigações concretas, especiais, entre pessoas determinadas, constituindo situações subjetivas; atos objetivos imputam obrigações abstratas, gerais, entre pessoas indeterminadas, constituindo situações objetivas. O contrato é um típico exemplo de ato subjetivo, a lei um típico exemplo de ato objetivo.

Prevalece na doutrina do Direito do Trabalho o entendimento de que o vínculo empregatício se estabelece a partir de uma relação contratual: contrato de trabalho, ato subjetivo. Em proteção do empregado, há várias normas trabalhistas de ordem pública, alheias à liberdade contratual. Respeitadas essas regras, porém, é assegurado ao empregador e ao empregado estabelecer o regime jurídico da relação. A relação profissional privada é, em parte, regida pelas regras de ordem pública estabelecidas na legislação trabalhista (CLT) e em parte regida pelo contrato estabelecido entre as partes, empregador e empregado. O Direito trabalhista brasileiro admite a rescisão unilateral do vínculo empregatício, mas, regra geral, não admite a alteração unilateral: o empregado tem “direito adquirido” aos termos inicialmente pactuados.

Como a Administração Pública, por definição, não possui liberdade, a relação jurídica de seus profissionais não pode, ainda que parcialmente, ser estabelecida por livre acordo de vontades, pela autonomia da vontade de contratante e contratado. O regime da relação é estabelecido em normas abstratas — constitucionais e legais —, atos objetivos. Quem edita esses atos é o agente normativo: constituinte e legislador. Justamente por isso, se diz que o regime é unilateralmente estabelecido pelo Poder Público, e não bilateralmente estabelecido entre Administração e servidor. O regime é estatuário: é unilateralmente fixado na Constituição e na lei da respectiva entidade federativa — o “estatuto”. Esse regime unilateralmente estabelecido exige, para sua incidência, que o servidor o aceite. Daí a terceira categoria de ato jurídico proposta por Duguit: o “ato condição”, consistente na manifestação de vontade necessária para a incidência do ato objetivo. O regime unilateralmente estabelecido, para incidir sobre o servidor, exige que este manifeste sua aquiescência. Daí a necessidade da posse para a perfeição do ato de provimento.

Sendo o regime da relação estabelecido unilateralmente pelo Poder Público, afirma-se que este tem a prerrogativa de, a qualquer tempo, alterar unilateralmente esse regime. Como a vontade do servidor não é necessária para o estabelecimento do regime — há tecnicamente “aquiescência” do servidor e não “concordância —, ela também não é necessária para alteração do regime. Na verdade, o servidor aceita a incidência do regime estatuário, cônscio de que este pode ser a qualquer momento modificado. Dessarte: o sistema normativo assegura ao Legislador a prerrogativa de modificar as leis vigentes; com mais razão, assegura ao reformador da Constituição, respeitados os limites ao poder de reforma, a prerrogativa de reformá-la.

Respeitável parcela da doutrina brasileira vem defendendo a morte do regime estatutário. A proposta é, para mim, surpreendente. A Administração Pública, insisto, não possui liberdade. Os agentes públicos jamais poderão, tais quais empregadores privados, disciplinar, com base em suposta “autonomia de vontade”, o regime profissional. Entendida a base conceitual do regime estatutário, percebe-se, a todas as luzes, que o regime celetista não é conceitualmente compatível com a Administração Pública. A Constituição, em seu texto originário, admitiu-o em caráter excepcional. Sua aplicação exige cuidado: em termos conceituais, o regime celetista, quando incidente sobre a Administração Pública, é tão estatutário quanto o regime estatutário. Ao invés de aplicar-se o “estatuto” e a Constituição, aplicar-se-á a CLT e a Constituição. Perceba-se: não há espaço, mesmo para os empregados públicos, para o estabelecimento bilateral da relação, a partir de um contrato de trabalho estabelecido por acordo de vontades. Deixo o aprofundamento desse tema para outra oportunidade. O que me interessa aqui é registrar, do modo mais objetivo possível, a base conceitual do regime estatutário. Por um lado, ele é fixado unilateralmente pelo Poder Público e é aceito pelo servidor; por outro, pode ser modificado unilateralmente pelo Poder Público, independente da aquiescência do servidor.

Explicada a base conceitual do regime estatutário, é fácil perceber por que muitos afirmam sua incompatibilidade com o direito adquirido. Diante da prerrogativa do Poder Público de alterar unilateralmente o regime, independente da concordância do servidor, inexistiria direito adquirido à manutenção do regime. Essa última assertiva foi repetida à exaustão pelo STF.

Dizer que não existe direito adquirido no regime estatutário é uma estultice. Bastam alguns exemplos. Se a lei disciplina o gozo de férias e estas já foram adquiridas e efetivamente gozadas, nova lei que estabeleça novos pressupostos para o gozo das férias, em nada atingirá as férias já gozadas. A lei nova, é pacífico, não atinge fatos pretéritos. O STF, atualmente, reconhece o direito adquirido de o servidor público se aposentar caso ele já tenha completado os requisitos para tal, ainda que não tenha requerido a aposentadoria. Esse entendimento está consagrado na Súmula 359. Quando foi editada, em 1963, a Corte entendeu que o direito adquirido só se configurava quando da apresentação do requerimento. Mesmo que completadas todas exigências para se aposentador, se o servidor não havia requerido a aposentadoria, sua situação poderia ser atingida pela nova lei. A exegese era absurda, mas perdurou por quase dez anos. Só em 1973, no RE 72.509, o STF alterou a Súmula 359 para deixar claro que o direito adquirido se dá quando o servidor completa as exigências da lei vigente e não quando realiza o requerimento.

Será que é correto afirmar que o direito à aposentadoria só é adquirido quando o servidor completa as exigências da lei vigente? Hoje a Constituição exige que o servidor, para se aposentar, trabalhe pelo menos por 35 anos. Se trabalhou 34 anos, 11 meses e vinte e nove dias, possui apenas uma expectativa de direito? Entender que o direito só se adquire após completadas todas as exigências constitucionais para o recebimento integral da aposentadoria, para mim, com todo respeito pela opinião contrária, é uma grande hipocrisia.

O caso lembra-me o tema da desapropriação. O STF entende que o direito à justa indenização só se configura quando ocorre a efetiva perda da propriedade, e está se dá, apenas, com o registro da carta de adjudicação no Cartório de Imóveis. Assim, para a imissão na posse, diz o STF, não há necessidade de pagamento de justa indenização, mas tão somente do valor fixado na planta do IPTU — que não consiste no valor venal do imóvel, mas numa estimativa, quase sempre para baixo, do valor venal. Ora, a Administração obtém a imissão, retira o proprietário de sua casa, efetua a demolição do imóvel, constrói sobre ele uma obra pública, e o STF diz: “calma, expropriado, você ainda é o proprietário, pois só perderá a propriedade quando a desapropriação for registrada no Cartório de Imóveis; quando isso ocorrer, será paga a justa indenização”. É isso, na verdade, que está registrado na Súmula 652. Pura hipocrisia!

Em relação ao direito adquirido e o regime próprio de previdência, Celso Antônio Bandeira de Mello, em vários trabalhos, opôs-se ao entendimento do STF. Destaco os artigos publicados na RTDP 24/54-62, 36/18-23 e 44/5-17. Em todos o ínclito publicista invocou a doutrina do aclamado administrativista português Marcello Caetano, para quem o direito de perceber os vencimentos subjetiva-se, diariamente, com a prestação dos serviços. Assim, ainda que o servidor só receba sua remuneração após 30 dias trabalhados, adquire-a, proporcionalmente, dia a dia. Bandeira de Mello extrai uma regra geral: há inúmeras situações em que há “aquisição parcial do direito à medida que, no transcurso do tempo, vão se implementando paulatinamente os requisitos para o desfrute de um direito cuja completude só se dá ao cabo de certo lapso temporal”.

Ele tem absoluta razão. Se a lei prevê um acional por tempo de serviço adquirido após cinco anos de exercício, comumente chamado de quinquênio, não é correto dizer que até o implemento dos cinco anos só há expectativa de direito. O servidor vai adquirindo o direito ao quinquênio paulatinamente. Se, por exemplo, após quatro anos, o quinquênio for extinto, o servidor já terá adquirido quatro quintos do adicional.

A posição de Celso Antônio é, por evidente, mais adequada do que a prevalente na jurisprudência. Ela é correta, com a ressalva a seguir exposta, para todos os direitos desfrutados após certo período de tempo trabalhado: salário, férias, adicionais por tempo de serviço. O Poder Executivo, legitimado pelo Poder Judiciário, vem subtraindo dos servidores parcelas remuneratórias já adquiridas, em violação direta da Constituição (art. 5º, XXXVI). No que se refere ao regime próprio da previdência, porém, considero essa tese inaplicável, pelos seguintes motivos.

A compreensão do meu entendimento exige explicitar, ainda que brevemente, a base teórica do regime próprio da previdência. Utilizarei como exemplo a área jurídica. O bacharel em Direito deve escolher ao final da graduação um de dois caminhos profissionais: o privado ou o público. O privado é marcado pela insegurança, mas, também, pela possibilidade, sem limites, de enriquecimento. Riqueza é um conceito relativo: a remuneração do Ministro do STF, teto máximo da remuneração do funcionalismo público, pode significar riqueza para muitos brasileiros, mas é uma percentagem ínfima do que podem receber mensalmente advogados bem-sucedidos. Quem opta pelo caminho privado pode enriquecer sem limites. Quem opta pelas profissões estatais, renuncia, de modo radical, à possibilidade de enriquecer nesses termos. Por mais que estude, por mais que se esforce, receberá o teto constitucionalmente estabelecido.

Por que um jurista esforçado e talentoso optaria pelo caminho público? As restrições às atividades públicas são compensadas pelas garantidas atribuídas a elas. Em relação às profissões estatais, vigorava, no texto constitucional originário, o princípio da estabilidade remuneratória: o servidor abdicava de receber mais do que o teto, mas tinha garantida, até a sua morte, a percepção da remuneração fixada para o respectivo o cargo. O regime próprio da previdência — bem distinto do regime geral — foi pensado como uma prerrogativa do cargo público, decorrente do princípio da estabilidade remuneratória.

Os termos fixados pelo constituinte para o regime próprio dizem respeito à parte significativa das prerrogativas próprias dos cargos públicos. Trata-se de uma das questões essenciais para quem opta por esse caminho profissional. O cidadão faz um “projeto de vida” a partir dessa oferta. Escolhe um dos caminhos profissionais — o público — tendo em vista o que a Constituição estabelece. Uma vez feita a escolha, essas prerrogativas podem ser alteradas? Parece-me óbvio que não! O princípio da lealdade, decorrência da boa-fé, a exigência de que o Estado trate o cidadão com o devido respeito, a segurança jurídica, o respeito às expectativas geradas pelas decisões estatais, impõem o entendimento de que, em relação ao regime próprio da previdência, o servidor adquire o direito à manutenção de suas regras quando do ingresso no sistema.

Os magistrados, membros do Ministério Público, delegados de polícia, advogados públicos abdicaram do enriquecimento ofertado pela advocacia privada em decorrência da estabilidade remuneratória prometida pelo Estado brasileiro: não receberão acima do teto, mas terão direito de receber até o final de seus dias o valor fixado para o respectivo cargo. Não pode o Estado brasileiro, após o ingresso do servidor do cargo, mudar as “regras do jogo” e afastar a estabilidade remuneratória até então ofertada.

Humberto Ávila, no XX Congresso de Direito Tributário, defendeu que o fato de a Constituição atribuir poder tributário por meio de regras e não por meio de princípios gera importantes consequências hermenêuticas. A lição se aplica ao regime próprio da previdência: da mesma forma que o sistema constitucional tributário, o sistema próprio de previdência assenta-se em “regras” e não em “princípios”. A razão é evidente: quis o constituinte atribuir ao regime próprio a estabilidade própria da Constituição! A partir dessa estabilização, não há como admitir, que a alteração do regime — se admitida — atinja quem já tenha ingressado no sistema.

A posição é sustentada com brilho pela desembargadora federal Marisa Ferreira dos Santos, em seu excelente “Direito previdenciário”: “para nós, o regime jurídico aplicável é o vigente na data o ingresso do segurado no sistema previdenciário, não podendo haver mudanças nas regras do jogo, salvo se forem mais favoráveis e concederem mais direitos” (6ª. edição, p. 549).

Em suma: sempre que um direito for adquirido após o transcurso de certo período de exercício profissional, ele se adquire, proporcionalmente, dia a dia; em relação ao regime próprio da previdência, considerando que se trata de um dos aspectos principais para a escolha da profissão pública e, pois, de um projeto de vida, o servidor, quando do ingresso no cargo público, tem direito adquirido à manutenção do regime jurídico então vigente.

Nas ADIs 3.105 e 3.128 o STF, por maioria de votos, decidiu por afastar o direito adquirido dos aposentados a partir de uma “ponderação” entre o “direito adquirido” e o “princípio da solidariedade”. Em decorrência deste, afirmaram alguns Ministros, é possível, sim, impor aos aposentados que paguem contribuição previdenciária, ainda que esta não fosse exigida quando do requerimento da aposentadoria. Afinal, disseram muitos Ministros, não existe direito fundamental absoluto! O STF, nesses acórdãos, admitiu a alteração do regime até mesmo para quem já havia se aposentado, afastando o entendimento fixado na referida Súmula 359. A posição da corte levou Lilian Barros de Oliveira Almeida, em sua magistral monografia sobre o direito adquirido, a sustentar a inexistência de um “conceito constitucional” de direito adquirido, devendo seu significado ser definido pelo STF. Daí sua conclusão: direito adquirido é, assim, uma “questão em aberto”.

Sou líder de um grupo de pesquisa denominado “Ponderação de princípios no direito administrativo e contrafações administrativas”. Apaixonei-me pelo tema da ponderação quando examinei, no mestrado, a correção dos atos administrativos inválidos. Defendi que a correção dos vícios exige uma ponderação. Só ela pode definir se o ato deve ser invalidado, com eficácia retroativa, irretroativa ou até “pro futuro”, convalidado, convertido, reduzido ou reformado, ou integralmente mantido com reconhecimento da estabilização do vício. Na época meu orientador disse-me que a teoria poderia até ser cientificamente verdadeira, mas era muito perigosa para o Brasil, pois os juristas brasileiros não estariam preparados para a ponderação.

Nada como a voz da experiência. Em relação ao tema do direito adquirido, tudo leva a crer que, de fato, a ponderação ainda é uma teoria sofisticada demais para alguns juristas brasileiros. A Constituição brasileira estabelece que o respeito ao direito adquirido é um direito fundamental. Uma vez adquirido um direito, incide sobre ele o peso do princípio formal que dá primazia às ponderações do constituinte. Dificilmente esse peso, numa ponderação, será afastado. Quando, no caso concreto, a ponderação justificar esse afastamento, como regra, impor-se-á o pagamento de prévia e justa indenização em dinheiro. Se a propriedade pode ser desapropriada, direitos adquiridos também podem. Quer dizer: o afastamento do direito adquirido pela ponderação leva à desapropriação do direito, ao direito a prévio pagamento de justa indenização em dinheiro.

Em teoria, a ponderação pode até afastar, à luz das circunstâncias fáticas e jurídicas, o direito adquirido e, até mesmo, o direito à prévia e justa indenização em dinheiro. Robert Alexy sustenta que a ponderação deve respeitar o que ele chama de “fórmula do peso”.  A fórmula evidencia que o grau da incerteza das circunstâncias fáticas e normativas deve ser levado em consideração. Segundo o STF, se não fosse cobrada a contribuição previdenciária dos inativos, o sistema previdenciário entraria em colapso. A Corte não examinou, a meu ver, essa premissa empírica com a seriedade devida. É fato conhecido de todos que o Estado brasileiro desviou recursos do sistema previdenciário. Por outro lado, a lógica do equilíbrio atuarial é pertinente ao regime geral da previdência, mas era incabível no regime próprio. Este, nos termos aqui expostos, era uma prerrogativa do cargo, decorrente da assegurada estabilidade remuneratória. No regime próprio, a suposta “crise” da previdência é empírica e normativamente controversa e o peso dessa controvérsia não foi devidamente examinado. Em suma: o peso do direito adquirido, acrescido do peso do princípio formal que dá primazia às ponderações do constituinte, dificilmente é afastado, tendo em vista as incertezas normativa e empírica que cercam a crise da previdência no regime próprio, pelo peso do princípio da solidariedade.

Moral da história: quando a ponderação não é levada a sério, ela deixa de ser um método de realização de justiça; torna-se um perigoso instrumento de ativismo judicial, um verdadeiro veneno para o Estado de Direito.



Por Ricardo Marcondes Martins (SP)

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