Colunistas

Construtivismo Ético

ANO 2016 NUM 78
Ricardo Marcondes Martins (SP)
Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. Líder do grupo de pesquisa "Ponderação no direito administrativo e contrafações administrativas".


14/02/2016 | 7372 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

Na coluna anterior afirmei acreditar que existe, sempre, uma interpretação jurídica que seja correta, em detrimento de outras. Afirmei que muitos não têm fé, negam essa possibilidade; ninguém poderia dizer, segundo creem, que uma interpretação seria mais correta do que outra. Isso porque, para os céticos, as pessoas divergem sobre as questões morais, sendo a valoração sempre “subjetiva”. Logo, não haveria interpretação correta, mas sim interpretação “prevalente”. Diante da divergência, prevalece a interpretação adotada pelo agente competente. O Direito não seria uma verdadeira Ciência, mas uma “técnica”. Defendi a posição contrária, tentei apresentar motivos para ter fé e acreditar na existência da “interpretação correta”. A Ciência do direito teria por missão “descobrir” essa interpretação.

Abordei, talvez, a principal questão teórica do direito. Todo problema jurídico envolve, de alguma forma, as premissas teóricas que discuti na coluna anterior. Muitas delas, porém, são mal compreendidas. Suponho que boa parte das polêmicas que cercam o assunto decorram da incompreensão de seus aspectos conceituais. Em decorrência disso, creio que vale à pena retomar o tema.

Parto de uma obviedade: a apuração da “interpretação jurídica correta” não se dá como na matemática. Não há uma “fórmula” que, uma vez aplicada, leve à resposta certa. Também não se dá como na física ou na química, em que a correção é confirmada ou infirmada por “experiências empíricas” no laboratório. Daí o argumento dos céticos: se não há um método comprobatório, nem cálculo, nem experiência empírica, o que justifica a correção da interpretação?

Há quem defenda que, em questões morais, como a resposta correta não é dada apenas pela razão, ela é intuída. A propósito, lembro a feliz afirmação do Min. Carlos Ayres Britto, a partir do ensinamento de Tobias Barreto, no sentido de que a interpretação não é apenas um ato da razão, mas também da emoção. Mais ainda: há, segundo ele, uma anterioridade do sentir em relação ao pensar. Lembra o Ministro que o substantivo “sentença” deriva do verbo “sentir”. Coerentemente, há quem sustente, como Max Scheler, que, no campo axiológico, não se obtém a resposta correta pelo cálculo, nem pela experimentação, mas pela intuição. Logo, haveria aqueles que têm mais sensibilidade e, pois, estão mais aptos a obter a resposta certa. Daí uma possível conclusão: ela é apresentada pelo “sábio”. A teoria da interpretação, antes de ser aprofundada na área jurídica, aprofundou-se na teologia. Friedrich Schleiermacher, um dos maiores nomes da hermenêutica, comprova a assertiva. Quem daria a interpretação correta do “texto sagrado”? Segundo muitos, apenas o habilitado a tal, o representante de Deus na terra. Paralelamente ao que se propôs na teologia, no Direito haveria o habilitado a efetuar a exegese.

Só os alunos da graduação, talvez apenas dos primeiros anos, aceitam essa proposta. O aluno do ensino médio “acredita” que o professor lhe revela a “verdade” sobre a matemática, a física, a química, a história, a geopolítica... Regra geral, ele aceita passivamente o que é asseverado em sala de aula. O aluno da graduação, num primeiro momento, prende-se a essa “ilusão”. Como já revelei na coluna anterior, muitas vezes o jurista propõe uma interpretação tendo em vista determinado interesse. É de uma ingenuidade supina acreditar que doutrinadores e professores estão imunizados e, pois, só asseveram algo em prol da “convicção científica”. Posto isso, em relação à “resposta jurídica correta”, rejeito a existência de um “oráculo”. Não suponha o leitor que eu esteja a afirmar que a resposta jurídica correta é apenas aquela que eu afirmo ser correta! Não sou a fonte da verdade; nem eu, nem ninguém.

Se a resposta correta não é revelada por cálculo, nem por demonstração empírica, nem por revelação do sábio ou do profeta, como então apurá-la? Pelo método que dá nome a esta coluna: o “construtivismo ético”. Paulo de Barros Carvalho vem divulgando no Brasil o que ele chama de “construtivismo lógico-semântico”, método desenvolvido, segundo ele, por Lourival Vilanova, pelo qual se exploram as estruturas lógico-sintáticas do texto examinado. O aclamado tributarista adverte: o método nada tem a ver com o construtivismo ético. Sobre este, pouco se disse na doutrina brasileira. Longe de desprezar a importância da lógica e das teorias da linguagem, considero praticamente inquestionável: somente por elas não se chega à correção hermenêutica. Resta, assim, enfrentar a indagação: o que é, então, o construtivismo ético?

A expressão foi difundida por John Rawls, em um artigo denominado “O construtivismo kantiano na teoria moral”, publicado em abril de 1980. O próprio Rawls reconhece que sua leitura de Kant está longe de ser pacífica. O fato é que Kant nunca qualificou sua teoria como “construtivista”. Numa absoluta síntese, a justiça, segundo Rawls, decorre de um “processo de construção”; ela é fruto da atuação dos partícipes desse processo, qualificados como “agentes racionais do processo de construção”. Noutras palavras, a “correção moral” não é revelada por um oráculo, mas é construída pelo “debate” na sociedade. É por meio da “argumentação racional”, num “discurso”, que é revelada (construída) a resposta moralmente correta. Essa teoria foi difundida, no Direito, pelo jurista argentino Carlos Santigo Nino. Robert Alexy, em sua Teoria da Argumentação, defende, sem acolher a denominação, as bases da proposta.

Aliás, se o nome advém dos trabalhos de Rawls e de Santiago Nino, a ideia é, sem o rótulo, defendida por muitos outros. Karl Popper, por exemplo, defende que a verdade científica, tanto nas ciências humanas, como nas ciências naturais, decorre da proposta de uma tese à crítica especializada e em sua não refutação. Fazer ciência seria propor uma tese à refutação. A verdade seria sempre provisória: decorreria da resistência temporária à crítica. Havendo novos argumentos, suficientes para refutarem-na, a tese, antes considerada verdadeira, passa a ser falsa. Quer dizer: a “verdade científica” é construída e provisoriamente mantida no diálogo científico. A proposta de Popper é muito próxima do denominado, por Jürgen Habermas, “conceito pragmático de verdade”, segundo o qual a verdade é o resultado do “esgotamento momentâneo das objeções possíveis”. Quando os partícipes do discurso — os agentes do processo de construção — aceitam uma conclusão como a mais bem fundamentada, tem-se construída a “verdade”. Como diz Alexy: a interpretação jurídica correta é a mais bem fundamentada num diálogo racional.

A teoria da Constituição aberta de Peter Häberle é um desdobramento dessas premissas. Quem é o interprete da Constituição? O Supremo Tribunal Federal, qualificado pelo texto como seu guardião, é intérprete, por óbvio. Não apenas ele... legisladores, administradores, magistrados não têm como exercer sua função sem interpretar a Constituição. Todos os agentes públicos são intérpretes. Não apenas eles... os cidadãos, sendo destinatários, estão autorizados a interpretar. Enfim, todos são “intérpretes”! A teoria fundamentou novos institutos, como, por exemplo, a figura do amicus curiae. Se o Tribunal não é o único intérprete, deve ouvir os demais.

Perceba-se a “revolução”: se na teologia a correta interpretação da bíblia não é apenas dada pelo representante de Deus — todo leitor está “autorizado” a ler e a interpretar o texto sagrado —, no direito a correta interpretação do texto normativo não é dada por “X” ou “Y” — todos estão convidados a participar do “processo de construção”. Fixado o conceito, é mister reconhecer: o “construtivismo ético”, em relação à interpretação jurídica, possui particularidades dignas de nota.

Primeira: em certo sentido, o magistrado é, juridicamente, o “oráculo do Direito”. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello afirmou que o magistrado é o oráculo da Constituição rígida; Celso Antônio estendeu, com felicidade, a expressão a todo Direito. De fato, o magistrado é habilitado a dar a última palavra sobre a interpretação jurídica para o caso concreto. O debate sobre a correção é eterno; como dito, a questão fica sempre aberta a refutações. Ocorre que, regra geral, buscar eternamente a resposta correta é mais injusto do que resolver o conflito de modo errôneo. O magistrado, como qualquer ser humano, é fadado a errar. Não é o dono da verdade, não é o máximo conhecedor do ordenamento jurídico, nem o mais sensível dos mortais. É bastante comum que o magistrado, ao se manifestar sobre uma interpretação, proponha uma exegese equivocada. Cientificamente, a resposta correta é “X”, mas o magistrado afirma ser “Y”. Pois bem: transitada em julgado a decisão, vale dizer, não cabendo mais recurso, o sistema normativo assimila o erro do magistrado como verdadeiro acerto. Trata-se do que Tercio Sampaio Ferraz Jr. chama de “regra de calibração” do sistema jurídico. Para o caso concreto, a coisa julgada faz com que o erro do magistrado seja assimilado como acerto. Chamo a atenção para a ressalva: “para o caso concreto”. Caberá à comunidade jurídica continuar o debate e submeter a decisão à crítica e, pois, ao processo de construção da resposta correta. A crítica científica à decisão judicial equivocada evita novos erros. Evidente que quanto mais o magistrado necessita da regra de calibração, quer dizer, quanto mais ele erra, maior é a perda de seu prestígio. Do ponto de vista dogmático, para quem assume as premissas do neoconstitucionalismo, há exceção: se a injustiça da coisa julgada for aberrante, ela deve ser considerada inconstitucional.

Segunda: a regra da coisa julgada é diferente no controle concentrado de constitucionalidade. O direito brasileiro adota um complexo sistema misto: todo magistrado é competente para, uma vez provocado, reconhecer, de modo incidental à solução de um caso concreto, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica — é o chamado controle difuso. O Supremo Tribunal Federal, porém, tem a competência para reconhecer a inconstitucionalidade no plano abstrato, com eficácia “erga omnes” e efeito vinculante — é o chamado controle concentrado. Se o STF considera, por equívoco, em sede de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) uma lei inválida, apesar de, cientificamente, ser válida, a norma é retirada do sistema normativo. Contudo, a coisa julgada não impede que o Legislativo edite nova lei, com texto idêntico ao da anterior. Ao revés, se o STF por equívoco considera uma lei válida, apesar de cientificamente ser inválida, a norma não é retirada do sistema, mas, nesse caso, a decisão da ADI, transitada em julgado, não impede a propositura de nova ação. Sequer existe limite temporal para a nova propositura. Perceba-se: no controle concentrado, a regra de calibração da coisa julgada não é idêntica à regra do controle difuso. O sistema jurídico não fecha, no plano abstrato, a porta para a correção do equívoco jurisdicional.

Por isso, mesmo as decisões do STF permanecem eternamente sujeitas à crítica científica. Ronald Dworkin, em relação aos equívocos da Suprema Corte na interpretação de leis norte-americanas de segregação racial, com razão observou que dois motivos devem justificar, diante do equívoco jurisdicional, a persistência da crítica científica: primeiro, os próprios magistrados que erraram, diante da crítica, podem corrigir o equívoco quando forem novamente provocados a se manifestar sobre a questão; segundo, caso eles não se convençam do equívoco, sendo humanos, não durarão para sempre. Basta lembrar como a compreensão da igualdade foi alterada ao longo da história: é surpreendente, nos dias de hoje, que a comunidade jurídica não tenha considerado afrontosa à igualdade nem a escravidão, nem, mais recentemente, a incapacidade da mulher casada ou a situação jurídica dos filhos havidos fora do casamento.

Esses exemplos chamam a atenção para o seguinte: a interpretação correta também não é aquela afirmada pela maioria. Esta, em não raras vezes, se equivoca. Aquele que leva o Direito a sério e, à luz de suas convicções teóricas, tenta “encontrar” a interpretação correta, deve defender seu ponto de vista, ainda que seu entendimento não seja adotado pelos demais. O fato de a comunidade científica ter pacificado certa resposta, não cala o agente racional, partícipe do processo de construção. Mesmo porque a construção é fruto de um processo histórico, que não cessa. A história já demonstrou que muitas vezes a verdade está no depoimento isolado. Galileu Galilei é um exemplo paradigmático.

A existência de divergência, portanto, não esmorece a teoria da interpretação correta. Sem embargo, quase todos os teóricos do direito reconhecem a possibilidade de que certos problemas éticos ou jurídicos levem a uma situação agônica, decorrente da existência de argumentos igualmente ótimos para respostas contraditórias. Creio que Ronald Dworkin está com a razão quando afirma que essas hipóteses, se existirem, são bastante exóticas. Dificilmente um jurista, à luz de suas convicções científicas, reconhecerá a existência de argumentos igualmente bons tanto para uma interpretação como para outra. O intérprete sério sempre forma uma convicção sobre qual seja a “melhor interpretação”. O que comumente ocorre é uma confusão entre o campo da interpretação e o campo da discricionariedade. A última, aliás, marca profundamente a diferença entre o discurso moral e o discurso jurídico. Esse tema complexo e empolgante, contudo, fica para outra coluna.



Por Ricardo Marcondes Martins (SP)

Veja também