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Regime Jurídico da Televisão Brasileira à Luz da Constituição

ANO 2016 NUM 302
Ricardo Marcondes Martins (SP)
Professor de Direito Administrativo da PUC/SP. Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. Líder do grupo de pesquisa "Ponderação no direito administrativo e contrafações administrativas".


21/11/2016 | 7498 pessoas já leram esta coluna. | 7 usuário(s) ON-line nesta página

O regime jurídico da TV me incomoda há algum tempo. A leitura do livro de Paulo Henrique Amorim (“O quarto poder”), bastante provocativa, persuadiu-me a escrever esta coluna sobre o assunto. Antes de iniciar minha análise, faço um resumo das principais questões jurídicas apresentadas por Amorim: a) logo no início do livro ele afirma que a “tevê brasileira seguiu o modelo comercial”; b) afirma que o regime jurídico da concessão de rádio e TV, hoje vigente, é estabelecido pela Lei Federal 4.117/62; c) traz no terceiro anexo a transcrição dos vetos apresentados por João Goulart, todos derrubados pelo Congresso Nacional; d) traz no quinto anexo os dispositivos da Constituição Federal de 1988 que disciplinam a comunicação; e) observa que Fábio Konder Comparato ingressou com duas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão [que receberam n. 09 — assinada também por Georghio Alessandro Tomelin — e n. 10] para impugnar a não regulamentação desses dispositivos constitucionais.

De fato, João Goulart pretendeu vetar dez dispositivos do Código Brasileiro de Telecomunicações e os vetos foram derrubados pelo Parlamento, é o que consta do site do planalto. E na ADO n. 9, a Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão – FITERT e a Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ, representadas por Comparato e Tomelin, requereram a regulamentação do art. 5º, inciso V, art. 220, §3º, II, art. 220, §5º, art. 211, art. 222, §3º, todos da CF/88. Foi ajuizada em 18.10.10 e foi distribuída à Ministra Rosa Weber em 19.12.11. Passou a tramitar em conjunto com a ADO n. 10, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, também representado por Comparato, em que o pedido é reiterado. Essa última foi ajuizada em 11.11.10 e encontra-se conclusa à relatora, Min. Rosa Weber, desde 11.11.13.

Na prática, a afirmação de Paulo Henrique Amorim é absolutamente verdadeira: a TV no Brasil segue o “modelo comercial”. São divulgados aos quatro ventos os salários astronômicos pagos a certos apresentadores. Para algumas emissoras é um negócio extremamente lucrativo. O que me interessa aqui é, porém, o aspecto jurídico. O mundo do “ser” e o mundo do “dever ser” muitas vezes não andam de mãos dadas; o fato de ser assim não significa que deva ser assim. O tema permite-me uma análise jurídica que considero bastante interessante. Vamos a ela.

No Brasil, TV é serviço público federal, quer dizer, é uma atividade de titularidade da União. É o que se extrai do inciso XII, letra “a”, do artigo 22 da Constituição, com a redação dada pela Emenda n. 08/95: “compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens”. A Emenda apenas retirou da referida letra “a” os serviços de telecomunicação, e inseriu-os no inciso XI do art. 22. No tema do serviço público, praticamente todas as questões são controversas e, por isso, impõem ao intérprete um ônus argumentativo.

Resumirei aqui o ônus que enfrentei no Capítulo IV de meu “Regulação Administrativa à luz da Constituição Federal”. O Texto Magno, nos artigos 173, caput, e 175, dividiu as atividades materiais em dois grupos: o maior deles, as atividades econômicas, regra geral de titularidade privada, e o menor, os serviços públicos, de titularidade pública. Ao Estado só é permitida a exploração de atividade econômica em dois casos: a) em concorrência com os particulares, quando necessário aos imperativos de segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo, pressupondo a edição de lei específica; b) em monopólio, nos casos discriminados no art. 177. Sempre que a Constituição, ressalvado o disposto no art. 177, determina que cabe à entidade federativa a exploração de uma atividade, é porque qualificou-a como serviço público. É o que se extrai da aplicação do argumento a contrario ao art. 177: se fosse monopólio, a atividade estaria inserida no rol desse dispositivo; se não está, é porque não é monopólio. E sempre que o constituinte quis que certo serviço fosse submetido, simultaneamente, ao regime da atividade econômica e ao regime do serviço público, também disse de modo expresso, como, v. g., fez em relação aos serviços de saúde no art. 199.

Logo, como a atividade de radiodifusão de sons e imagens consta do art. 22 e não consta do art. 177, nem há regra expressa de que é aberta à iniciativa privada sem necessidade de outorga, foi qualificada como “serviço público”. Neoliberal que se preza defende: a) ou inexistir serviço público; b) ou ser possível ao legislador submeter ao regime da atividade econômica certas atividades abarcadas pela literalidade dos dispositivos constitucionais. Discordo: não há como seguir qualquer dessas orientações sem afronta à Constituição.

O dispositivo apresenta outro problema ao intérprete: a exploração por autorização, reiterada no caput do art. 223. O texto constitucional deve ser interpretado como um todo coerente. No artigo 175, “caput”, reza a Constituição que a prestação de serviços públicos será efetuada “diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão”. Note-se: não há previsão de outorga de serviço público por autorização. Como explicar o inciso XII do artigo 22 e o caput do art. 223? Fácil: não se trata de outorga de serviço público. Certas atividades materiais são abarcadas, semanticamente, pelos enunciados das letras do inciso XII, mas não configuram serviço público por não serem prestadas “ao público”. Um bom exemplo é a atividade de telecomunicação restrita aos departamentos de uma empresa. Não é serviço público, pois não é oferecida ao público, mas é uma atividade econômica sujeita ao prévio controle administrativo, ou seja, à ordenação administrativa (ou, para quem recusa a teoria, ao poder de polícia), vale dizer, à obtenção de prévia autorização administrativa (vide, nesse sentido, meu “Regulação administrativa à luz da Constituição Federal”, p. 230-232). A exigência dá-se justamente para que a União verifique se o administrado não pretende invadir a esfera de competência federal e prestar serviço público sem outorga. Pois bem, as atividades econômicas abrangidas pela semântica da expressão “radiodifusão de sons e imagens”, que não sejam serviços públicos porque não ofertadas ao público, sujeitam-se à prévia autorização administrativa. Televisão, ofertada às pessoas em geral, e não restrita aos departamentos de uma pessoa jurídica, é, pois, serviço federal, passível de ser prestado diretamente, pelos órgãos da União ou por pessoas criadas por ela, ou indiretamente, pelos particulares mediante concessão ou permissão.

A Constituição não dá à TV o mesmo tratamento que dá aos demais serviços federais; há várias regras constitucionais específicas. O artigo 222 restringe quem pode pleitear concessão, permissão ou autorização de serviços de telecomunicação. Por trás dessa regra está o valor (princípio, numa acepção contemporânea) da soberania nacional. O dispositivo foi profundamente alterado pela Emenda n. 36/02. Pelo texto originário só poderiam prestar esse serviço pessoas jurídicas pertencentes a brasileiros natos ou naturalizados há pelo menos dez anos, sendo que a eles, necessariamente, deveria competir a administração e a orientação intelectual da empresa. No capital social da empresa prestadora de serviço de TV não poderia participar outra pessoa jurídica, salvo partidos políticos ou sociedades cujo capital social pertencesse exclusivamente a brasileiros. Ainda assim, essa participação não poderia exceder a 30% do capital social e não poderia dar direito a voto. O texto originário era, portanto, bastante restritivo: TV no Brasil era atividade de brasileiro!

A EC n. 36/02 mudou bastante esse regime. Permitiu que a empresa seja pertencente a pessoa [estrangeira] constituída sob as leis brasileiras e que tenha sede no país. Estabeleceu que pelo menos 70% do capital total e do capital votante deva pertencer direta ou indiretamente a brasileiros natos ou naturalizados há pelo menos dez anos. Quer dizer: pelo menos 30% pode estar nas mãos de estrangeiros. O §4º ao art. 222, acrescentado pela EC n. 36/02, determinou que a lei discipline a participação do capital estrangeiro e o §5º, também acrescentado por ela, determinou que as “alterações de controle acionário” sejam previamente comunicadas ao Congresso Nacional.

Ocorreu aí algo semelhante ao que aconteceu com o monopólio de petróleo e gás natural (artigo 177 alterado pela EC n. 09/95), segundo meu entendimento, verdadeiro crime de lesa-pátria! Explico: o constituinte originário impediu que estrangeiros tivessem acesso a atividades e a recursos vitais para a soberania nacional. O reformador permitiu o acesso. Para mim, o reformador não possui “liberdade” de atuação, ele exerce função pública e, consequentemente, possui apenas “discricionariedade”, campo de escolhas pautadas não pelo livre-arbítrio, mas pela busca da máxima realização do interesse público. Em relação aos limites impostos à reforma constitucional, sigo, em linhas gerais, a teoria apresentada por Carlos Ayres Britto, em seu magistral “Teoria da Constituição” (livro publicado em 2003, antes, portanto, de o autor integrar o STF): reformas só são válidas quando reforçam o programa originário. Possibilitar o acesso de estrangeiros a empresas de TV [e à exploração de petróleo] favoreceu o programa originário? Não vejo como!

Só vejo duas explicações para a defesa do interesse estrangeiro nesse caso: a) obtenção de lucro pelo defensor e seu correlato apatriotismo; b) síndrome do colonizado, perfeitamente teorizada por Albert Memmi (“Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador”). A síndrome explica o fato, infelizmente bastante comum, de em ex-colônias muitos defenderem, com abnegação, os interesses estrangeiros em detrimento dos interesses nacionais. Como não sou advogado de empresas estrangeiras e tento combater minha tendência histórico-cultural à xenofilia, defendo intransigentemente a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 36/02 (e, pelas mesmas razões, da EC 06/95 e da EC 09/95).

O regime constitucional da TV não para aí. O artigo 223 da CF/88 traz regras específicas sobre a outorga do serviço: é de competência do Poder Executivo, mas o ato de outorga deve ser apreciado pelo Congresso Nacional. O §1º do art. 223 afirma que o prazo para apreciação é o previsto nos §§2º e 4º do art. 62, contado do recebimento da mensagem. Estes estabelecem o prazo sucessivo, para a Câmara e para o Senado, de 45 dias, prazo esse que se suspende nos recessos do Congresso. No caso da outorga de serviço de TV, não há que se falar de prazo sucessivo: a apreciação da mensagem dá-se em sessão conjunta do Congresso no prazo de 45 dias contados do recebimento da mensagem. O ato de outorga ou de renovação, por força do §3º do art.  223, só gera efeitos após a deliberação do Congresso. O prazo da outorga é de 15 anos, nos termos do §5º do art. 223 (para os serviços de rádio o prazo é de 10 anos).

Os §§ 2º e 4º do artigo 223 disciplinam, respectivamente, a renovação e o cancelamento da outorga. Os dispositivos evidenciam a força política escomunal do setor: a não renovação só ocorre se for aprovada por dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal; o cancelamento antes do final do prazo depende de decisão judicial. O constituinte não se referiu à “encampação” ou ao “resgate”, extinção da concessão antes do termo final por motivo de interesse público, mas ao “cancelamento”. Parece-me evidente que o signo abrange todas as hipóteses de extinção unilateral antes do termo final: encampação ou resgate, invalidação ou anulação, caducidade ou decadência estão submetidas à reserva de jurisdição.

No “caput” do artigo 223 consta que a outorga deve observar o princípio da complementariedade dos sistemas privado, público e estatal. O que significa isso? Três regras: a) obrigatoriedade de o Estado manter televisões públicas, ou seja, prestar o serviço por seus próprios órgãos ou por entidades da Administração Indireta (a prestação estatal); b) obrigatoriedade de o Estado contratar, sem outorga, o particular para prestar o serviço (prestação pública não estatal); c) obrigatoriedade de o Estado conceder ou permitir a prestação do serviço a particulares (prestação privada). O princípio impõe ao Estado simultaneamente prestar, contratar e outorgar. A diferença entre a prestação estatal e a pública é dogmática: pela outorga o particular se remunera pela própria prestação, de modo que surgem três relações jurídicas, uma entre outorgante e outorgado, outra entre outorgante e usuário, e outra entre outorgado e usuário; pela contratação o particular é remunerado pelo contratante e não pelo usuário, de modo que surgem apenas duas relações jurídicas, uma entre contratante e contratado e outra entre contratante e usuário, inexistindo relação autônoma entre contratado e usuário. Para os serviços públicos em geral a outorga é discricionária, sendo, regra geral, vedada a contratação para atividade-fim: cabe ao Poder Público decidir se o presta apenas diretamente, se o presta indiretamente e se o presta direta e indiretamente. Os serviços de radiodifusão de sons e de sons e imagens fogem da regra: é obrigatória tanto a prestação direta como a prestação indireta e a contratação. O intuito da regra constitucional é garantir uma pluralidade de enfoques a partir de gestões vinculadas em maior e em menor medida ao Estado: a vinculação estatal é maior na gestão estatal do que na pública e nesta é maior do que na gestão privada. 

Até aqui analisei o que está expresso no texto constitucional; resta analisar as regras implícitas. Para tanto, faço um resumo da teoria que venho difundido em boa parte de meus trabalhos: a Constituição é um texto, quer dizer, é um conjunto de signos. Um signo possui, por definição, um significado. Por conseguinte, a utilização do signo importa na constitucionalização de seu significado. Em palavras menos técnicas: a palavra não é um ruído, uma forma oca, a que o legislador ou o intérprete pode atribuir qualquer significado. O legislador e o intérprete não podem atentar contra o significado da palavra utilizada no texto constitucional. Para infelicidade de muitos políticos e juristas, o texto constitucional não estabelece que os serviços públicos — e, com a ênfase decorrente da reiteração, a TV —, serão prestados diretamente ou “nos termos da lei”. O constituinte disse: serão prestados diretamente ou indiretamente “por concessão ou permissão”. Ora, concessão ou permissão não são ruídos, formas ocas, vazias, abertas à atribuição de qualquer significado. Elas significavam algo em 1988 e esse algo está constitucionalizado.

Ademais, deve-se levar a sério o silêncio constitucional. Consta do Texto Maior: a) serviços públicos são prestados indiretamente por concessão ou permissão; b) TV será prestada por concessão ou permissão; c) para a concessão ou permissão de TV vigoram certas regras específicas, expressamente enunciadas no art. 223. A contrario sensu, pode-se extrair do texto que, naquilo que não foi explicitado, no que se refere à essência do instituto da concessão/permissão, a TV segue o regime geral. Insisto: naquilo que o constituinte quis se afastar da essência conceitual dos institutos, ele o fez expressamente. Trata-se da interpretação a contrario sensu do art. 223 da CF/88. Isso não significa que o legislador não tenha discricionariedade para fixar outros contornos específicos para a TV: o inciso XII do artigo 48 da CF/88 enfatiza a competência para legislar sobre o assunto. Há, todavia, limites: deve respeitar os significados das palavras constitucionais e o regime jurídico necessariamente invocado, respeitadas as regras do art. 223, quando da utilização das palavras “concessão” e “permissão”.

Quais eram as bases conceituais da outorga por concessão e permissão de serviços púbicos em 1988? Por meio delas outorga-se a prestação do serviço, sem privatizá-lo; vale dizer, o serviço continua sendo público, de titularidade estatal, apenas a prestação passa a ser privada. Ademais, o prestador é remunerado pela própria exploração, daí a diferença fundamental entre a outorga e a contratação. A Constituição afirmou que a TV é serviço público que deve ser concedido e permitido aos particulares. A concessão e a permissão foram disciplinadas na Lei Federal 8.987/95, mas seu artigo 41 excluiu de sua incidência os serviços de radiodifusão de sons e de sons e imagens.

Consequentemente, a disciplina infraconstitucional da concessão e permissão de TV é, por recepção, estabelecida na Lei Federal 4.117/62. Ocorre que essa lei é, nesse tema, extremamente lacônica; praticamente nada estabelece, por exemplo, sobre o controle do concessionário e do permissionário. A falta de previsão legal não pode ser interpretada de modo a atentar contra o núcleo conceitual da concessão ou da permissão. Vale dizer: serviço de TV no Brasil, quando prestado por particular, é serviço público da União, cuja prestação é outorgada ou contratada, com todos os desdobramentos dogmáticos que essa afirmação envolve. Explicitarei alguns desses desdobramentos.

Muito se fala em “lucro” de concessionário ou de permissionário. Por má-fé ou ignorância, o tema é incrivelmente deturpado. No artigo 175 da CF/88 impõe-se, com muita ênfase, a realização de licitação para outorga de serviço público. O artigo 223, em nenhum momento, afasta a exigência. Logo, para o serviço de TV deve haver licitação. O “lucro” aparece quando da elaboração da proposta na licitação: propostas que não assegurem um lucro mínimo são inexequíveis e devem ser desclassificadas. Contudo, apresentada uma proposta exequível, o tema do lucro simplesmente desaparece. Explico: têm o concessionário, o permissionário e o contratado direito de receber o que exigiram em sua proposta, e a Constituição assegura, no inciso XXI do art. 37, a manutenção do valor real dessa exigência. Não têm direito a lucro. Mutatis mutandis, servidores públicos não trabalham por benemerência, mas pelo valor de sua remuneração. Ninguém diz que eles trabalham em prol do lucro. Concessionários, permissionários e contratados da Administração trabalham em prol da remuneração fixada na proposta vencedora do certame licitatório, não em prol do “lucro”.

Na concessão de TV a remuneração advém dos anúncios publicitários. Suponhamos que esses anúncios resultem num valor muito maior do que foi fixado na proposta vencedora do certame. O que sobeja não é receita do concessionário, é receita pública. Na prática brasileira, como diz Amorim, adota-se o regime comercial. Perceba-se: a prática é um atentado à Constituição vigente. Poder-se-ia argumentar: muitas emissoras de TV obtiveram a outorga antes da Constituição, sem licitação e, pois, sem uma proposta explícita de quanto almejavam lucrar, de modo que inexiste parâmetro para saber qual é a receita do concessionário, decorrente de amortização de investimentos, custos e o lucro previsto, e qual é a receita da União. Nesse caso, qual é a justificativa para que o Congresso não regularize a situação quando da renovação? Ou, ainda, qual a justificativa para que o Poder Executivo, nos termos admitidos pela Constituição, não proponha, judicialmente, a encampação? Ou, ainda, qual a justificativa para que o Judiciário, se provocado, não imponha a regularização? Omissão inconstitucional dos poderes instituídos.  

Em suma: o lucro astronômico de certas empresas de comunicação e os salários estratosféricos de certos apresentadores (os verdadeiros marajás da sociedade brasileira) contrariam o regime jurídico constitucional da TV. O problema não para aí; não é apenas a gestão da receita que é ilícita.

A prestação da atividade também é problemática. A teoria da concessão e permissão é coerente: como o serviço continua sendo de titularidade estatal, o poder concedente ou o permitente tem total controle sobre a prestação. No regime geral da concessão, na expressão de Guido Zanobini, “não há limites” para o controle técnico; os limites não são jurídicos, mas práticos: a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro (do valor real da proposta vencedora). Admito que a atividade de comunicação possui particularidades: deve o Poder Público respeitar a “independência” inerente à gestão privada da TV, mas essa independência não pode significar total liberdade. A atividade, em essência, é pública e deve ser presidida, sempre, como toda atividade pública, pelo interesse público.

As programações televisivas não podem ser pautadas na busca de mais lucro para os titulares da empresa de TV ou para os apresentadores. Alguém ousará afirmar que é o interesse público que preside a programação televisiva brasileira das emissoras privadas? Tenho absoluta certeza de que não. Termino com esta triste constatação: na atividade de radiodifusão de sons e imagens praticamente tudo, desde a gestão das receitas à própria prestação do serviço, é uma negação veemente do que está escrito no texto constitucional brasileiro. O mais triste é que para resolver o problema não há necessidade de uma nova lei. Não se faz necessária a procedência da ADO n.  09 e da ADO n. 10, que há anos aguardam uma decisão do STF, nem o cumprimento do “apelo ao legislador” dela decorrente. É claro que uma boa lei facilitaria bastante a solução do problema, mas, na falta dela, basta um esforço do intérprete na busca da correta interpretação das normas vigentes. 



Por Ricardo Marcondes Martins (SP)

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