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O Fim do Direito Constitucional Brasileiro (ou, parafraseando Sundfeld, direito constitucional para quem tem muita fé)

ANO 2016 NUM 195
Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas (RJ)
Mestre em direito constitucional pela PUC-RJ, Doutor em direito público pela Universidade de Coimbra, Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado


21/06/2016 | 11090 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

O direito constitucional brasileiro acabou. Não, não se trata de falecimento. Afirmamos que o direito constitucional brasileiro terminou como um personagem que, após o momento final de um drama, sai de cena vitorioso, concluindo com êxito o papel que o roteiro lhe havia destinado (no caso o direito constitucional é o próprio roteirista, mas isso é um detalhe). Talvez a melhor analogia seja com a de um contrato executado igualmente com êxito e que, por isso, e só por isso, deixa de existir.

É verdade que o direito constitucional deixou alguns problemas a serem resolvidos. Mas, na verdade, salvo para reacionários positivistas, tratam-se de meros detalhes operacionais, problemas menores a serem facilmente resolvidos pelo direito processual, civil ou penal desde que observem, categoricamente, aquilo já determinado pelo direito constitucional.

Vamos ver como isso se deu.

Em todo o mundo ocidental, mas sobretudo na Europa, o início dos anos 80 viu a ascensão de um belo movimento de afirmação da validade das normas constitucionais, de todas elas. Afirmada essa validade, assim em caráter geral, ela alcançou também as normas constitucionais garantidoras de direitos individuais.

Nos Estados Unidos assistia-se esse movimento com certo desdém próprio dos que veem novos convertidos descobrirem a pólvora. Ora, nada mais óbvio para um anglo saxão do que fazer vale aquilo que está escrito, sobretudo em cultura jurídica acostumada a fazer valer mesmo aquilo que não está escrito. Assim, para nossos amigos do Norte, afirmar a validade de direitos individuais era o mesmo que chover no molhado.

Em seguida passou-se às normas estabelecendo direitos sociais. Nesse ponto os EUA largaram o barco e ficaram de fato olhando de longe, fornecendo, como fazem até hoje, vasto material sobre as mais diversas interpretações avanços e recuos dos mais variados e importantes direitos ... individuais. Mas voltemos ao trilho da afirmação da efetividade dos direitos sociais. Assentada sua validade, decidido que sua consagração em textos constitucionais não era mera indicação programática, passou-se a analisar a viabilidade de dar outro passo, logicamente seguinte: as normas constitucionais são válidas, inclusive as que garantem direitos sociais e, se são válidas, sua execução pode ser imposta pelo Judiciário a todos, quer dizer, basicamente ao Estado.

Nesse ponto a Europa parou para refletir.

É que, do outro lado do Atlântico, sabe-se, por experiência própria, que, antes de inscritos em cartas, os direitos sociais foram e são o resultado da História, suas lutas, revoluções, reformas, avanços, retrocessos, contradições, atalhos, disputas, guerras, etc.

Aqui não. Demos o tal passo orgulhosos. E, para isso, chegamos a invocar professores estrangeiros que, passada a lisonja pela lembrança de seu nome, tiveram que, meio sem jeito, atravessar o Atlântico para nos avisar “– Desculpe meus caros, mas não foi bem isso que eu quis dizer” (é verdade que, em relação a Alexy e outros autores alemães, sempre se pode botar a culpa na tradução...).

Pois bem, não quisemos ouvir quem nos alertava e, raivosamente, consideramos os esclarecimentos quase como uma traição. A quase acusação a Canotilho, por ter supostamente abandonado sua (ou nossa) constituição dirigente, não deixou de ter traços dramáticos (ou cômicos). Utilizamos então autores dos EUA, esquecendo que sua doutrina, de inegável qualidade, tinha como pano de fundo uma constituição sintética, que se limita a direitos individuais e num país onde a separação de poderes e a deferência mútua entre eles são “direitos levados em sério”.

E aqui estamos. Hoje – afirma o direito constitucional pátrio já no final de sua encenação – qualquer pessoa pode, diretamente (sem mesmo pagar custas), ou por meio dos diversos órgãos públicos legitimados, pleitear judicialmente quase (quase?) qualquer providência necessária à fruição de qualquer direito previsto na constituição (seja ele individual, social, difuso, ou da geração que for), sem importar o seu custo ou eventual impacto sistêmico. Apresentado o pleito qualquer Juiz pode ordenar ao estado que tome tais providências em qualquer prazo e sem mesmo ouvir o estado antes. Este, já que falamos em teatro, é o “estado da arte”, o ponto a que chegamos.

Ou seja, do peculiar ponto de vista do direito constitucional pátrio, tudo está resolvido. Tudo, na verdade, foi resolvido pela própria Constituição. Como diz certa doutrina encampada em acórdão do STF “o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional” (Ag.Reg. no Agr. de Instrumento 759.543, grifos no original). Simples assim. A Constituição decidiu, basta pedir que o Judiciário “limitar-se-á” a mandar cumprir. (Neste ponto seria injusto não registrar que muitos daqueles que, de boa fé, participaram deste movimento, já estão assustados, e começam a relativizar suas conclusões mais extremadas, alguns desses, no entanto, já são alvos da mesma invectiva dirigida à doutrina estrangeira que nos “abandonou”).

Alguém dirá: sim, o direito constitucional pátrio manda que o estado “em geral”, faça tudo, mas somos uma federação e ao direito constitucional ainda resta organizar os distintos entes, dizer quem faz o que. Ledo engano: este ponto também está resolvido. Para o direito constitucional pátrio qualquer regra dividindo atribuições entre os entes (no que se refere a quais deles, devem tomar providências para a fruição de quais direitos constitucionais) é questiúncula menor que não pode ser oposta a quem busca a efetivação de direitos constitucionais como manifestação de sua humana dignidade! Portanto, todos os entes são – assim diz o Pretório Excelso – “solidários”. E assim, hoje, é possível acionar a União por uma aspirina e o Município de Rio Novo (agradável Cidade na Zona da Mata Mineira) por um tratamento altamente especializado de câncer. (Claro que isto não significa que se possa pleitear remédios na Justiça do Trabalho, ou créditos trabalhistas na Justiça Comum; nem significa que o MPF tenha que investigar um homicídio, ou a Defensoria Pública da União ajuizar ações de alimentos; regras de divisão internas ao Poder Judiciário e às funções essenciais devem ser respeitadas, pois não são impertinentes nem são questiúnculas, afinal são regras que tem como objeto organizar exatamente o Judiciário).

Mas e o planejamento, o orçamento, a licitação? Todas estas são questões irrelevantes, internas à administração pública. São questões que, por estarem à jusante do ponto no qual o direito constitucional bebe do rio onde corre o direito público pátrio, podem ser solenemente ignoradas. Estas questiúnculas serão questões sim relevantes quando, rio abaixo (já nos domínios do direito financeiro e administrativo), se transformarão em bons motivos para punir quem deva ser punido. Sim, porque o direito que à montante do rio ordena qualquer um a fazer qualquer coisa em não importa qual tempo, é o mesmo que, à jusante, pune quem não fez isso da forma certa, quem não respeitou as tais questiúnculas.

Que fique bem claro: qualquer ente público deve fazer qualquer coisa que o Judiciário – limitando-se a cumprir a Constituição – lhe mande fazer, no prazo que lhe mandar, independentemente de capacidade, competência ou existência de recursos, mas deve fazer isso da forma mais eficiente possível, com integral respeito a todas as questiúnculas, sob pena de “improbidade”. Outro dia me perguntaram quantos cultores do direito constitucional pátrio já foram gestores públicos ou ordenadores de despesa. Que pergunta deselegante! (mas agora atual: a ordenação de despesa tem sido feita pelo Judiciário diariamente mas, como se trata de ordem judicial, o ordenador não precisa prestar contas...muito justo).

Na saúde, recentemente, temos um caso no mínimo curioso. Como dissemos, o Poder Judiciário vem decidindo país afora que cabe a todos os entes garantir (quase?) qualquer tratamento ou insumo. O Judiciário voltou, inclusive (contra uma linha aparentemente fixada há alguns anos), a determinar o fornecimento mesmo de medicamentos não registrados na ANVISA. Pois bem, procurando seguir respeitosamente essa jurisprudência, o Poder Legislativo aprovou lei determinando a entrega de certo medicamento (não registrado na ANVISA). Bem, a lei foi considerada inconstitucional. Esse negócio de mandar o executivo entregar medicamento não registrado é privilégio do Judiciário. E, para quem achar que o direito constitucional não é coerente, ele é: manda quem pode e obedece quem não tem (o) juízo. É essa regra, evidente e necessária, que também explica porque o Novo CPC obriga a todos, menos ... aos juízes (direitos são para ser levados a sério, menos aqueles que tolhem a atividade de quem os afirma). É por essas e por outras que Mario Sergio Conti, em recente coluna na Folha de São Paulo, lembrou que ser eleito e ter poder são realidades completamente distintas. 

Antes de terminar sua atuação, quando acreditava que já tinha feito tudo e que podia sair de cena, o direito constitucional pátrio viu a crise financeira ao redor do mundo e mostrou novamente seu valor comprando um seguro infalível contra qualquer crise que nos atingisse (e que agora será muito útil). Tal seguro se denomina de “vedação do retrocesso”. Sua invocação impede (sem qualquer necessidade de pressão social, de povo nas ruas, ou coisas assim), por si só, a revogação de qualquer medida que tenha estendido direitos. Algo tão óbvio, simples e eficaz, que lamentamos não tê-la inventado antes. Em breve, começaremos a ver a utilidade deste seguro e como ele é capaz de blindar qualquer sociedade contra falsas crises inventadas por políticos e economistas.

Como o direito constitucional já disse que tudo deve ser cumprido e qualquer ordem pode ser dada para que assim seja feito, basta que tais decisões sejam proferidas (ele pode, então, sair de cena com a certeza do dever cumprido). E, se tais decisões serão cumpridas ou não, tudo passa a ser um problema do direito processual, que ingressará com os institutos que lhe são próprios: execução, arrestos, sequestros, multas pessoais e uma prisão aqui ou ali (foram muitos os médicos, as vezes com 30 anos de profissão, presos na primeira década do milênio, por terem aceitado o cargo de secretário de saúde Brasil afora e não terem operado milagres nos prazos fixados em liminares, mas a culpa é deles, que não perceberam a nova realidade constitucional e sua capacidade de operar a resolução de problemas ... quem mandou se formarem em medicina).

Mas, alto lá, e a tal de separação de poderes? O direito constitucional pátrio também já resolveu esse problema menor. A separação de poderes foi objeto de uma das mais revolucionárias técnicas do direito constitucional pátrio: a ponderação.

A ponderação é uma operação que, se não é exclusiva do direito constitucional pátrio, atingiu entre nós resultados espantosos. Ela tem a enorme virtude de, aplicada a princípios, gerar sempre o resultado buscado pelo seu utilizador (um caso raro de produto que, de fato, entrega o que promete).

Ora, após a operação de ponderação chegou-se à conclusão de era melhor se livrar da separação de poderes. Mas alguém (provavelmente um impertinente advogado público que não leu o último artigo de Bruce Ackerman sobre o assunto), se lembrou de uma tal de cláusula pétrea. Ponderou-se então a própria e inconveniente cláusula e chegou-se à conclusão de que ela não impede o assassinato da separação de poderes, mas apenas o seu sepultamento. E, assim, a separação de poderes morreu entre nós, sem que sequer tenha tido direito a um enterro. Não teve enterro mas recebeu e recebe homenagens pelos serviços prestados. Com efeito, em qualquer boa decisão em que for invocada, o Judiciário lhe dedicará algumas respeitosas linhas para, ao final, concluir pela sua não aplicação no caso concreto (a decisão já citada do STF é exemplo disso também).

E assim, praticamente todos aqueles que entraram na faculdade de direito a partir do final da década de 90, foram doutrinados por esse novo direito constitucional amplamente majoritário que, para estudantes, tem uma vantagem adicional: cada vez menos é precisos conhecer regrinhas e institutos de ramos subalternos do direito; alguns princípios, muita retórica e a devida ponderação resolvem quase tudo.

E, desse modo, a obra chega à sua conclusão. O nome do direito constitucional pátrio será inserido no livro dos heróis da pátria. O Brasil constata que deve agradecer muito aos operadores de nosso direito, que, exatamente por serem tão sublimes e especiais, bem que merecem um tratamento especial, um tratamento que os coloque bem acima dos políticos e partidos (de direita ou de esquerda), que não resolveram os problemas nacionais por 500 anos. Se alguém ver um miserável na rua saiba que isso não é culpa do direito constitucional, ele já deu a ordem para resolver o problema.

Agora, nossos problemas se acabaram. Podemos nos voltar a assuntos mais interessantes, como a literatura. Podemos também exportar o direito constitucional pátrio, uma vez que, ao contrário do que dizem alguns, não há nada semelhante em qualquer parte da Terra (as decisões por vezes mencionadas das cortes constitucionais da África do Sul ou da Colômbia, quando comparadas às nossas, são de uma deferência à separação de poderes, à razoabilidade e ao bom senso que dá saudade aos saudosos). A exportação do direito constitucional pátrio poderia servir para mostrar à Europa como resolver a crise dos migrantes (se fosse no Brasil, uma decisão já teria determinado à União, Estados e Municípios, que providenciassem abrigos, escola e saúde para todos em 15 dias), ou poderia ajudar tantos países pobres a resolver seus problemas com saúde e educação. Do jeito que vamos, em breve um representante do direito constitucional pátrio será convidado a abrir a Assembleia Geral da ONU, no lugar da(o) presidente claro!

PS: Há uma PEC (19/10) no Congresso para introduzir a busca da felicidade no artigo que trata dos direitos sociais. Imagina que decisões virão se for aprovada. Haja felicidade! 



Por Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas (RJ)

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