Colunistas

Licitações na União Europeia (III): instrumentos de contratação agregada e de contratação eletrônica

ANO 2016 NUM 146
Thiago Marrara (SP)
Professor de Direito Administrativo da USP-Ribeirão Preto. Doutor em Direito Público pela Ludwig Maximilians Universität - LMU de Munique, Alemanha. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA) da USP. Consultor.


18/04/2016 | 4210 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página
Há dois fatores que explicam uma boa parte dos problemas atuais enfrentados pelos entes públicos no âmbito do modelo licitatório brasileiro, sobretudo o regido pela Lei n. 8.666. 
 
O primeiro deles remonta o contexto histórico social em que esse modelo foi construído, contexto esse em que as tecnologias de informação e comunicação hoje correntes ainda não haviam amadurecido e se universalizado. Em 1993, raros eram os computadores pessoais, o acesso à internet praticamente inexistia, não se falava de e-mail, nem de videoconferências. Sistemas digitais de comparação de preços acessíveis a toda população de modo gratuito pela internet sequer existiam. Isso significa que a Lei n. 8.666 nasceu sob o império do telefone fixo, das correspondências por carta, das páginas amarelas e da comparação manual de preços em cadernetas de papel. 
 
O segundo fator por trás de parte das deficiências do modelo licitatório se assenta na mentalidade individualista e burocrática que marcava e ainda permeia de certo modo o direito administrativo e a Administração Pública brasileira. Sob uma perspectiva isolacionista e engessada, a lógica básica de contratação se resumia a duas frases: “uma entidade, uma licitação” e “uma licitação, um contrato”. Em outras palavras, de acordo com o raciocínio de “uma entidade, uma licitação”, cada ente contratante faria sua própria licitação, de modo isolado, visando a celebrar seus próprios contratos. E conforme a filosofia do “uma licitação, um contrato”, cada processo de contratação seria pensado e executado no intuito de originar um único ajuste para satisfazer uma demanda bem pontual. 
 
A resposta aos problemas gerados por esses dois fatores veio com a valorização legislativa de duas estratégias básicas: a introdução de tecnologias de informação e comunicação e o estímulo à cooperação na contratação pública, inclusive por meio de sistemas unificados e até mesmo pela instituição de entidades de contratação conjunta ou integrada, assim como por mecanismos de seleção prévia, por exemplo, mediante registro de preços e promessas de fornecimento pelos licitantes escolhidos. Essas estratégias apareceram em parte no direito brasileiro. No entanto, nessa série de textos com considerações introdutórias sobre a renovação operada no direito das licitações na União Europeia, interessa apontar como o tema se desenvolveu recentemente no direito comunitário. 
 
Na transformação do modelo licitatório europeu, ocorrida em 2014, percebe-se a clara e ampla preocupação da União Europeia com a construção de um arcabouço normativo adaptado a novas tecnologias de comunicação, com a simplificação de procedimentos e com a valorização da cooperação administrativa no intuito de se promover a eficiência das contratações estatais. No texto da Diretiva n. 2014/24, referida preocupação se traduziu tanto em normas esparsas – como as que tratam da redução de prazos de abertura de licitações realizadas por meios eletrônicos –, quanto em um corpo sistematizado de dispositivos que abordam exclusivamente “técnicas e instrumentos para a contratação pública eletrônica e agregada”. 
 
No que se refere às contratações agregadas, o novo direito comunitário conferiu destaque a mecanismos aptos a viabilizarem negociações conjuntas ou delegadas em favor de mais cooperação e projetos comuns de vários entes públicos. Com isso, o sistema europeu rompeu de modo definitivo com a lógica tradicional de “uma licitação, um contrato”. Essa nova concepção se traduziu no reconhecimento e na disciplina dos seguintes mecanismos: (i) o acordo-quadro (art. 33 da Diretiva n. 2014/24); (ii) as compras centralizadas e as centrais de compras (art. 37); (iii) as iniciativas ocasionais de contratação conjunta (art. 38) e (iv) os contratos que envolvem autoridades adjudicantes de vários Estados-membros (art. 39). 
 
• Os acordos-quadros (“framework agreement”) representam ajustes entre uma ou mais entidades contratantes com um ou mais agentes econômicos com o objetivo de fixar os termos dos contratos a celebrar durante um determinado período de tempo, em regra não superior a quatro anos, sobretudo no tocante a preços e a quantidades de fornecimento. Cada contrato posterior de obras, bens ou de serviços celebrado nesse contexto não poderá se afastar das condições essenciais pré-estabelecidas no acordo-quadro. Como esse ajuste geral já estipula todas as condições da obra, do fornecimento ou do serviço de que necessita a Administração, a contratação do agente econômico que dele participa poderá ocorrer diretamente. No entanto, quando o acordo se mostrar lacunoso, abrir-se-á uma licitação exclusiva para os agentes econômicos que dele participam.
 
• As compras centralizadas são permitidas pela Diretiva n. 2014/24 de duas maneiras. É possível que os Estados membros prevejam que um ente adquira bens ou serviços de uma entidade especializada em compras centralizadas, a qual, portanto, assume a condição de fornecedora. Como alternativa, os Estados podem autorizar seus entes a adquirirem obras, serviços ou bens, valendo-se de contratos celebrados por uma central de compras, por exemplo, mediante sistema de aquisição dinâmico ou por meio de um acordo-quadro. Nesse caso, a central assume o papel de intermediadora. À entidade interessada no contrato cabe, porém, celebrá-lo dentro do sistema de aquisição da central ou realizar a licitação exclusiva para os admitidos no acordo-quadro por ela estabelecido. Interessante registrar, ainda, que seus procedimentos devem ser executados por meios eletrônicos. 
 
• Iniciativas ocasionais de contratação conjunta são contratações eventuais realizadas por certo ente em nome e por conta de duas ou mais entidades da Administração, as quais ficam solidariamente responsáveis pelo cumprimento das normas da Diretiva n. 2014/24. Também se permite como alternativa que uma entidade realize a licitação, agindo em seu próprio nome e igualmente em nome de outras autoridades contratantes. Nessa hipótese, uma ou mais entidades delegam a outra a tarefa de contratar em seu nome para atender a uma demanda específica, diferentemente do que ocorre com as centrais de compras, as quais configuram entidades especializadas em contratações e que podem realizar suas tarefas em favor dos entes públicos de modo compulsório (determinado por lei nacional) ou facultativo, a depender da demanda e do desejo de cada ente da Administração.
 
• Contratos celebrados por entidades de vários Estados-membros configuram de igual forma uma técnica de cooperação e de contratação conjunta ou agregada, mas que se caracteriza pela participação de vários países. Nesse particular, a Diretiva n. 2014/24 permite até mesmo que a entidade pública de um Estado-membro recorra aos serviços de uma central de compra situada em outro e regida pela legislação estrangeira. Os Estados não podem impedir que isso ocorra. Ademais, a Diretiva prevê a possibilidade de várias autoridades, de dois ou mais países, juntarem-se para celebrar um único contrato público ou um acordo-quadro ou, ainda, para gerir um sistema de aquisição dinâmico. Para tanto, é necessário que as entidades estabeleçam entre si um acordo que, entre outras coisas, estipule a responsabilidade de cada qual, o direito nacional aplicável e a organização interna do procedimento de contração. Nada impede, ademais, que vários países criem uma entidade de contratação comum. 
 
Apesar de sucinta, a exposição dos instrumentos de contratação agregada da Diretiva deixa evidente que o legislador europeu pretendeu valorizar a cooperação em matéria de contratações públicas. E as razões por trás disso são simples. Os processos cooperativos apresentam inúmeras vantagens potenciais, incluindo a redução do número de licitações, a queda de custos com a condução de processos licitatórios, a economia de recursos humanos empregados nessas atividades, além da racionalização das contratações, sobretudo pela organização da demanda estatal, pelo aumento de economias de escala e pela melhoria das condições de negociação com o mercado. Porém, não se deve acreditar que a contratação agregada esteja isenta de problemas e desvantagens. Dentre elas há que se destacar o potencial aumento da lentidão nas contratações. Exatamente por isso, andou bem o legislador comunitário ao não obrigar o uso de mecanismos de contratação agregada, mas sim de oferecer aos Estados da União várias estratégias possíveis, deixando-lhes a opção pelo que considerarem conveniente.
 
Outra preocupação que marca a atual legislação europeia foi a de aprimorar o emprego de tecnologias na contratação pública. Em texto anterior dessa coluna, já se demonstrou que a Diretiva n. 2014/24 aborda os impactos do emprego de sistemas eletrônicos em vários aspectos da contratação, como em relação aos prazos de abertura das várias modalidades licitatórias. Resta saber como os instrumentos eletrônicos se aplicam na aquisição propriamente dita e, nesse sentido, é preciso lançar os olhos sobre os sistemas de aquisição dinâmicos, os leilões eletrônicos (art. 35) e os catálogos eletrônicos (art. 36). 
 
Os sistemas de aquisição dinâmicos (“dynamic purchasing systems”) consistem em processos inteiramente eletrônicos e abertos a qualquer agente econômico que forneça bens ou serviços de uso corrente, geralmente disponíveis no mercado e que satisfaçam os critérios de seleção dados pela Administração durante o período de contratação. Respeitados os critérios, os interessados serão admitidos no sistema e, dentro dele, as autoridades contratantes deverão seguir as regras de licitação limitada. Para celebrar um contrato, a autoridade pública apresentará uma chamada de propostas envolvendo o sistema dinâmico, especificará a natureza do objeto e a quantidade estimada no ato convocatório (“documento do concurso” na terminologia portuguesa) e indicará a eventual divisão da demanda em categoria de produtos, obras ou serviços. Em seguida, a autoridade avaliará os interessados e admitirá os que tiverem cumprido os requisitos no sistema. Os admitidos serão então convidados a apresentar proposta para cada licitação dentro do sistema. 
 
A seu turno, o catálogo eletrônico (“electronic catalogue”) representa uma nova forma de apresentação de propostas em licitações pelo qual cada agente de mercado demonstra a conformidade de seus serviços ou bens com especificações técnicas estabelecidas pela Administração. Esse mecanismo pode ser empregado na seleção realizada pelo sistema de aquisição dinâmico ou no âmbito de acordos-quadro. Um dos maiores problemas dos catálogos eletrônicos reside na sua falta de padronização, o que eleva os custos de sua elaboração para os agentes econômicos e pode tornar essa estratégia nem sempre suficientemente vantajosa para atrair fornecedores ao Estado. 
 
Os leilões eletrônicos (“electronic auctions”) são procedimentos digitais repetitivos, desencadeados após uma avaliação completa das propostas, classificadas com base em métodos automáticos de avaliação. Esse procedimento repele contratos mais complexos e que não se submetam a mecanismos de avaliação automática, sobretudo contratos de serviços peculiares e de obras. Salvo para esses objetos contratuais, o leilão poderá ser empregado em contratações abertas à ampla concorrência (“concursos abertos” na terminologia portuguesa), nas licitações restritas (os chamados “concursos limitados”) e nos procedimentos concorrenciais com negociação, além de poder ser utilizado no sistema dinâmico de aquisição. Como o leilão depende de mecanismos automáticos, o julgamento se dá quer pela análise do preço mais baixo, quer por menor preço de elementos do contrato ou pelo menor custo quando empregado o critério de custo-eficácia. Após realizar uma primeira avaliação completa das propostas iniciais, a entidade pública encaminha convite aos qualificados e inicia o leilão no prazo mínimo de dois dias úteis. O leilão se encerra na data e hora previamente marcados; quando não mais se receberem preços ou valores novos que correspondam às diferenças mínimas ou quando se tiver sido atingido o número de fases definido pelo ente contratante.
 
Em breve síntese, a sumarização desses três procedimentos previstos na Diretiva n. 2014/24 revela como as técnicas eletrônicas ganharam relevo no novo direito das contratações públicas da União Europeia e, por conseguinte, suscita reflexões sobre como o assunto poderia ser introduzido no direito brasileiro para além dos institutos já consagrados na legislação nacional (a exemplo do pregão eletrônico). A necessidade de se estimularem essas reflexões resulta das inúmeras vantagens do emprego de novas tecnologias nas contratações públicas, as quais abrangem desde a redução dos custos de contratação para o Estado e para os fornecedores, a simplificação dos processos licitatórios, a mitigação das dificuldades administrativas do modelo presencial, a aceleração das licitações em favor da duração razoável dos processos administrativos e do princípio da eficiência, o ganho de acessibilidade a mercados públicos, sobretudo por empresas de menor porte, até a promoção de maior transparência administrativa nas contratações realizadas pelo Estado. 


Por Thiago Marrara (SP)

Veja também