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Licitações na União Europeia (VII): normas gerais de execução contratual

ANO 2017 NUM 332
Thiago Marrara (SP)
Professor de Direito Administrativo da USP-Ribeirão Preto. Doutor em Direito Público pela Ludwig Maximilians Universität - LMU de Munique, Alemanha. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA) da USP. Consultor.


21/02/2017 | 3849 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Não é apenas o controle via licitação que garante o sucesso das contratações públicas. Não basta garantir a lisura da licitação. É preciso que se cumpra o contrato, que se fiscalize sua execução e que se imponham medidas contra irregularidades e ilegalidades. À licitação como mecanismo de controle prévio há que se somar o controle concomitante e de resultado. Afinal, muitos problemas graves em obras públicas ou no fornecimento de bens e serviços não decorrem de falhas na licitação, mas sim da execução deficiente ou da fiscalização ineficiente. A realização de uma licitação harmônica ao ordenamento jurídico, respeitosa aos princípios da isonomia e da objetividade, isenta de corrupção e conduzida sob critérios de julgamento adequados é condição necessária, porém insuficiente à satisfação das necessidades estatais justificam um contrato. Não é por outro motivo que o legislador frequentemente se preocupa em normatizar a execução de contratos administrativos e que a chamada “gestão contratual” tem ganhado cada vez mais espaço e importância na prática.

Na renovação do direito comunitário europeu, operada há poucos anos, a Diretiva Europeia 2014/24 normatizou em seu capítulo IV alguns aspectos da fase de “execução dos contratos” de compras, obras e serviços. Dentro do bloco de normas contratuais, albergam-se na Diretiva as disposições relativas a quatro temas centrais: 1) as condições de execução dos contratos (art. 70); 2) a subcontratação (art. 71); 3) as modificações do contrato durante o seu período de vigência (art. 72) e 4) a rescisão contratual (art. 73). Diferentemente do que se verifica na legislação brasileira, a normativa europeia é bem mais enxuta e genérica. Nela não se encontram listagens sobre poderes exorbitantes ou detalhes sobre fiscalização contratual, ainda que eles apareçam no texto de modo mais ou menos explícito. Ademais, a prorrogação contratual não se sujeita a um tratamento destacado, já que está contemplada nas disposições gerais sobre as alterações contratuais, como se demonstrará nas linhas a seguir.

Condições de execução

No tocante às condições de execução (art. 70), a Diretiva em comento permitiu às entidades públicas fixarem condições especiais de execução contratual, ou seja, cláusulas que estabeleçam modos específicos para o adimplemento das prestações no intuito de harmonizá-la com certas políticas públicas. Para que estas condições gozem de validade, requer-se o preenchimento de dois requisitos: 1) sua relação direta com o objeto contratado e 2) sua publicidade, sobretudo por regras constantes do ato convocatório.

Ao se referir a condições especiais, o legislador europeu buscou viabilizar aos órgãos contratantes orientar o contrato em favor de políticas de inovação, promoção ambiental, social, trabalhista ou de desenvolvimento econômico. O art. 70, nesse cenário, confere uma autorização geral para a promoção de contratos verdes, socialmente responsáveis ou promotores de inovação tecnológica. Não diz, porém, como o contratante público deverá aliar o contrato para a satisfação de sua necessidade com essas políticas, do que se extrai a possibilidade de os Estados-membros minudenciarem a matéria da forma que lhes parecer mais conveniente.

Na falta de legislação, o próprio ente contratante poderá aplicar a autorização da Diretiva para desenhar condições especiais de execução, mas não deverá perder de vista a necessidade de aliar os objetivos sociais, ambientais, laborais ou de inovação com o objeto do contrato e de observar o princípio da razoabilidade administrativa. Em outras palavras, as obrigações podem ser elaboradas de modo a se tornarem social, ambiental ou tecnologicamente mais interessantes. Contudo, não poderão ser impostas aos contratantes obrigações adicionais àquelas diretamente necessárias à execução da obra, do fornecimento do serviço ou da entrega do bem contratado. Ao contratar papel, por exemplo, faculta-se aos entes públicos solicitar o uso de matéria-prima mais protetiva do ambiente, mas não se aceitará que imponham ao fornecedor obrigações como a de reflorestar uma área pública, cuidar de um parque ou qualquer outra que não guarde relação com a finalidade precípua do contrato. 

Subcontratação

O segundo tema relativo à fase de execução que recebeu especial atenção do legislador europeu foi o da subcontratação. Afinal, por meio dela é possível, muitas vezes, que licitantes burlem a justa competição ou se violem os requisitos de habilitação (ou melhor, na terminologia europeia, os requisitos de adequação e os casos de exclusão). A esse despeito, o direito europeu se revelou bastante receptivo à subcontratação, mas não deixou de mostrar sua preocupação com o tema.  

De acordo com o art. 71 da Diretiva 2014/24, provavelmente um dos dispositivos mais confusos deste diploma, autoriza-se a subcontratação de modo abrangente. Não se cogita de atividade-meio ou fim, nem se estipula um limite à cadeia de subcontratação – de modo que o primeiro subcontratado também poderá se valer de subcontratados secundários e assim por diante. Isso não impede, entretanto, que os Estados-membros criem normas nacionais para tratar do assunto, inclusive no intuito de restringir a aplicação das exigências do artigo em questão a certos contratos, órgãos contratantes, agentes econômicos ou valores contratados.

Quando empregada a subcontratação para viabilizar a execução contratual, ao órgão público contratante nacional caberá fiscalizar o cumprimento dos requisitos do ato convocatório, inclusive em matéria ambiental, social e laboral, por parte dos subcontratados. A Diretiva faculta ao legislador nacional a decisão de impor ao órgão contratante que solicite ao contratado-subcontratante a indicação da parte específica do contrato que será objeto de transferência a terceiros. Na falta da norma nacional, o órgão estará automaticamente autorizado a solicitar tal informação caso entenda pertinente. Disso resulta que, na falta de imposição em norma interna do Estado-membro, o direito europeu também permite às autoridades públicas não pedir qualquer informação sobre o que será efetivamente subcontratado.

Outro aspecto que merece destaque diz respeito aos pagamentos na presença de subcontratados. Nesse particular, a Diretiva prevê a possibilidade de fragmentar, ou melhor, de transferir parcelas do pagamento diretamente aos terceiros na proporção de sua participação e impõe ao contratado-subcontratante que, nos contratos de serviços e obras prestados nas instalações públicas sob a supervisão estatal, ofereça os dados e contatos dos subcontratados. Nessa hipótese específica, é obrigatória a indicação dos terceiros que assumirão parcelas do contrato. Note-se, apenas, que o pagamento direito aos subcontratados, solicitado ou não pelo subcontratante, jamais excluirá sua responsabilidade pela execução contratual adequada.

Fora isso, a Diretiva lida com o uso da subcontratação como uma estratégia de escape às normas ambientais, sociais ou laborais baseadas em seu art. 18, 2. A fim de evitar o desrespeito a mandamentos relevantes nesses três campos, prevê-se que os Estados-membros adotem medidas como: 1) a imposição de responsabilidade solidária do contratado principal com o subcontratado por descumprimento de norma ambiental, laboral ou social e 2) a aplicação das hipóteses de exclusão previstas na Diretiva, caso em que o órgão contratante deverá exigir que o subcontratante substitua o subcontratado (nas hipóteses de exclusão obrigatória e, se a legislação nacional exigir ou o órgão público desejar, também nas hipóteses de exclusão facultativa). Essas duas medidas são meramente exemplificativas, daí haver espaço para que os legisladores nacionais criem outras estratégias com o objetivo de evitar o emprego inadequado da subcontratação e de tutelar direitos fundamentais.    

Modificação contratual

As previsões mais detalhadas da Diretiva no que tange à fase executória dizem respeito à alteração do contrato, a qual é aceita de modo geral sem a necessidade de uma nova licitação, mas somente nas cinco situações enumeradas pelo legislador europeu.

Em primeiro lugar, contanto que respeitada a natureza global do contrato, a Diretiva considera aceitável a modificação sem nova licitação caso: a) o valor da modificação seja inferior ao valor de contrato sujeito ao direito europeu (conforme seu artigo 4º) e b) a modificação não ultrapasse 10% do valor inicial nos contratos de serviços e de fornecimento de bens, e 15% do valor inicial do contrato de obras. Em segundo lugar, a Diretiva lista quatro hipóteses adicionais autorizadas, que abrangem:

  1. As modificações preestabelecidas no ato convocatório, as quais devem ser claras, precisas e inequívocas – inclusive no tocante ao âmbito, à natureza das eventuais modificações ou opções, às condições – e jamais poderão ocasionar a alteração da natureza global do contrato;
  2. As modificações por necessidade de obra, serviço ou fornecimento complementar não prevista no contrato inicial, mas desde que a mudança de contratante se comprove inviável por razões técnicas e econômicas, seja altamente inconveniente ou provoque duplicidade de custos para o contratante – nessa hipótese, o preço não poderá aumentar mais de 50% do originariamente previsto para o global de modificações;
  3. As modificações por caso fortuito, desde que não se altere a natureza global do contrato e não se ultrapasse o limite de 50% adicional;
  4. As modificações por substituição do contratado (por exemplo, em virtude de fusão, aquisição, insolvência etc.); e
  5. As modificações não-substanciais, a despeito de seu valor. Nesse particular, a própria normativa passa a definir o que são modificações substanciais, incluindo, nesta categoria, as capazes de mudar condições que, se inseridas inicialmente, teriam ampliado a competição no certame; as que alteram o equilíbrio econômico do contrato de forma não prevista no ajuste inicial; as que alagam consideravelmente o âmbito do contrato etc. Assim, a identificação de uma modificação simples, não substancial, depende de um critério residual.  

Rescisão contratual

O último tema geral da Diretiva n. 2014/24 no tocante à fase executória se refere à rescisão do contrato administrativo. Nesse particular, o legislador comunitário expressamente impõe aos Estados-membros o dever de assegurar que o órgão contratante possa rescindir o contrato público durante sua vigência em três circunstâncias, quais sejam: 1) na de modificação substancial indevida do contrato, caso se constate que uma nova licitação deveria ter sido realizada; 2) na de descoberta de que o contratado, na data de adjudicação, encontrava-se em situação de exclusão e 3) quando se constatar que o contrato não poderia ter sido celebrado com o agente econômico em razão de “uma infração grave das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados e da presente diretiva, tendo sido a infração constatada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia”.

A Diretiva, no entanto, abstém-se de mencionar a expressão “rescisão unilateral”. Sem prejuízo, as rescisões previstas nas três hipóteses tratadas são claramente desta natureza em virtude dos motivos que lhe sustentam. Os Estados-membros, por isso, restam obrigados a prever o poder de rescisão nos casos mencionados, já que a medida se faz necessária para a proteção da isonomia, da livre-concorrência, da legalidade e da moralidade na contratação pública. Em contraste, os casos de rescisão consensual (distrato) não foram objeto de preocupação do legislador europeu, cabendo a cada ordenamento nacional dar sua disciplina jurídica.



Por Thiago Marrara (SP)

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