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Os serviços, a internet e o direito. Novas tecnologias, velhos problemas!

ANO 2015 NUM 6
Thiago Marrara (SP)
Professor de Direito Administrativo da USP-Ribeirão Preto. Doutor em Direito Público pela Ludwig Maximilians Universität - LMU de Munique, Alemanha. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA) da USP. Consultor.


16/11/2015 | 6524 pessoas já leram esta coluna. | 6 usuário(s) ON-line nesta página

Telefonia nacional e internacional por meio da internet a desafiar grandes empresas de telecomunicações reguladas, locação de quartos e apartamentos privados para turistas em duelo com hotéis licenciados, transporte compartilhado entre cidadãos comuns em guerra com os serviços de transporte público e de transporte privado de interesse público regulados pelos Municípios... Três cenas, três batalhas, três problemas originados por um único fenômeno: a emergência de atividades econômicas viabilizadas por meio de ferramentas digitais em rede à margem dos mandamentos jurídicos.

Será que as novas tecnologias abalarão os instrumentos clássicos do direito administrativo? Não há dúvidas de que os aplicativos destinados a instrumentalizar tantos serviços imprescindíveis à vida moderna representam grande novidade social! Mas, para o direito público, existe algo efetivamente inovador? Será que nunca nos deparamos com esses problemas? Será que a internet, tal como aplicada por prestadores de serviços na atualidade, realmente fundou dificuldades jurídicas desconhecidas? Arrisco um "não" a todas as perguntas!

Retomemos um caso antigo: ambulantes vs. lojistas! De um lado, posicionam-se agentes econômicos que se fixam em espaços físicos bem delimitados (imóveis alugados ou próprios), sob funcionamento baseados em licenças e autorizações administrativas várias, e que recolhem tributos em favor do Estado - ou seja, supostamente (frise-se!), agentes econômicos que atuam de modo regular. De outro, brotam vendedores, sem ponto fixo, sem licença ou autorização qualquer, perambulando pelos logradouros públicos para vender suas mercadorias e serviços de maneira informal, de modo praticamente imune às determinações urbanísticas, administrativas, comerciais e tributárias - e, naturalmente, por força do próprio custo que o direito ocasiona ao exigir o respeito às suas normas regulatórias.

A despeito das razões a explicar por que agentes econômicos em um segmento semelhante agem assim ou assado, o velho problema urbanístico e comercial nos ilustra algo antigo no Brasil: a disputa entre o espaço jurídico formal e o espaço jurídico informal, entre o campo regulado (aparentemente) e aquele à margem do direito e dos controles estatais. Alguma semelhança com as três batalhas da moda?

Ora, as disputas que se intensificam no campo dos serviços de táxis, de telefonia e de alojamento negociados por aplicativos de internet, muitas vezes com base em plataformas digitais estrangeiras, configuram apenas uma nova versão do velho conflito visto entre lojistas e ambulantes. Todas elas exibem o embate daqueles que afirmam atuar num espaço juridicamente formal contra os agentes do espaço informal. Trata-se de uma disputa pela igualdade formal, pela submissão de todos ao mesmo pacote de normas e pelo impedimento de assimetrias regulatórias ora involuntárias, ora intencionais.

Como, porém, se poderia solucionar referido problema jurídico de maneira definitiva? Por certo, nenhuma solução resultará da tentativa de proibição normativa e cabal da informalidade. Ela existe hoje e sempre existirá. A informalidade, afinal, nada mais é que a consequência da livre iniciativa humana. Ao identificá-la, o legislador buscará mantê-la, reduzi-la ou destruí-la por meios normativos.

A solução a se construir juridicamente dependerá do setor examinado, de suas características e dos impactos sociais decorrentes. Isto é, o direito controlará a informalidade e a transformará em formalidade jurídica na medida em que seus impactos para o bom funcionamento social sejam significativos. Nesse contexto, as questões que se colocam aos juristas diante da batalha entre as velhas e novas formas de se prestarem certos serviços de relevância pública são basicamente duas: por que o Estado deve limitar a informalidade de certas atividades econômicas por meio de restrições normativas? E, caso se opte pela regulação estatal, quais mecanismos jurídicos de intervenção se mostram adequados para atingir as finalidades públicas esperadas pela norma?

Nada impede que o Estado se abstenha da regulação em alguns casos. Aliás, apenas para exemplificar, por décadas, serviços de transporte privado de interesse público, como os táxis, funcionaram sem qualquer regulação de entrada, de preço e de qualidade. Em alguns países, ainda é assim: inexiste regulação estatal e sua falta, aliás, não significa ausência de qualquer regulação, já que o próprio mercado é capaz de, sob determinadas condições e em certos contextos, operar um autocontrole favorável à competição saudável. 

Nada obsta, contudo, que o Estado decida intervir sobre a ordem econômica por motivos públicos devidamente lastreados no texto constitucional. A regulação de entrada e de preço no campo dos serviços de táxi - novamente para ilustrar - baseiam-se, entre outras coisas, na defesa do consumidor, na necessidade de evitar preços artificialmente elevados e, inclusive, de se reduzirem problemas ambientais decorrentes do número excessivo de veículos de transporte nas ruas em cenários sem controle de entrada dos prestadores.

Não interessa o caminho a ser perseguido, nem mesmo se o Estado optará ou não por um modelo assimétrico. O importante é que a solução normativa encontrada se aplique de modo isonômico a todos que se encontram em igual situação, ausentes elementos fáticos e lógicos a impor-lhes um tratamento normativo diferenciado. Por reflexo, inaceitável será a inação do Estado diante da competição injusta entre aqueles que efetivamente agem sob os controles do direito e assumem os custos que esses controles ocasionam e outros que, na mesma situação econômica e social, agem livres de amarras e imunes às restrições impostas pelo direito em favor da coletividade.

Isso revela, em última instância, que as batalhas atuais entre prestadores de serviços que agem fora das balizas do direito administrativo e prestadores tradicionais regulados por norma ou contrato não trazem quase nada de novo do ponto de vista jurídico. Com ou sem aplicativos, a disputa é velha e pode ser resolvida sem grandes dificuldades pelo instrumental jurídico clássico. Mais uma vez, o que está em jogo é a possibilidade de se tratar desigualmente agentes econômicos em situação semelhante, tema que, em termos regulatórios, desemboca na velha guerra entre o formal e o informal e nos antigos debates acerca dos limites da intervenção econômica do Estado.



Por Thiago Marrara (SP)

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