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O Direito Administrativo e o Neoliberalismo

ANO 2016 NUM 276
Vladimir da Rocha França (RN)
Advogado. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Associado II do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


13/10/2016 | 5317 pessoas já leram esta coluna. | 3 usuário(s) ON-line nesta página

Frequentemente, quando a Administração Pública opta por recorrer à iniciativa privada para obter bens ou serviços, ou lhes repassa a gestão de bens públicos ou a prestação de serviços públicos, ela é acusada de “neoliberal”.

O mesmo pode ser rigorosamente dito quando há a alienação do controle acionário de empresas estatais.

É interessante notar que dentre as várias correntes político-filosóficas que se autodenominam liberais (v. g., liberal-conservadorismo, social-liberalismo, libertarianismo), não se encontra quem se rotule de “neoliberal”.  Caso se rotule de “neoliberais” todos os liberais contemporâneos, o “neoliberalismo” é um grande balaio de gatos.

Mas todas as decisões administrativas acima citadas seriam mesmo de cunho liberal, deixando-se de lado o referido chavão ideológico?

Importado das Ciências da Administração e da Economia, o termo terceirização já se incorporou ao discurso doutrinário e jurisprudencial do Direito Administrativo. 

No Direito Privado, a terceirização compreenderia a opção da pessoa jurídica de Direito Privado por contratos civis de prestação de serviços em detrimento de contratos de trabalho.  Nesse sentido, há a preocupação, no Direito do Trabalho, de se proteger os direitos dos empregados das empresas contratadas pelo tomador do serviço.

Por sua vez, no Direito Público, desde as reformas constitucionais e legislativas nos anos 1990, têm ocorrido a gradual extinção de cargos públicos efetivos que envolvem atividades-meio da Administração Pública (v. g., vigilância patrimonial, limpeza de estabelecimentos públicos, manutenção de equipamentos), em favor da expansão dos contratos administrativos de prestação de serviços, hoje regidos pela Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993. 

Entretanto, a lei vigente desses contratos administrativos têm amparo no art. 37, XXI, da Constituição Federal, e podem ser perfeitamente empregada pela Administração Pública para suprir demandas que não precisam ser obrigatoriamente atendidas por servidores públicos estatutários titulares de cargo público efetivo ou vitalício.  Ou seja, por agentes públicos nomeados após o devido processo de concurso público, protegidos pelas garantias constitucionais da estabilidade ou da vitaliciedade, e do regime previdenciário próprio.  Seria a Constituição Federal, nesse aspecto, liberal?  Seria uma medida integralmente incompatível com o modelo socialdemocrata de Estado e de Direito?

Conforme o objeto, admite-se no sistema do Direito Positivo que o administrado explore economicamente bens públicos sob regime de concessão.  Mas mesmo nesses casos, os bens concedidos à iniciativa privada não deixam de ser públicos, ou seja, de titularidade do Estado.  E, a concessão que permite a otimização econômica desses bens, gerando receita para o Estado, não se confunde a alienação deles.

No caso dos monopólios listados no art. 177 da Constituição Federal, temos atividades econômicas que são de titularidade da União.  Ressalvados monopólios no setor nuclear, a União tem permissão constitucional e legal para contratar empresas, estatais ou privadas, para explorar setores do domínio econômico, observado o devido processo licitatório.  E, recorde-se, o contrato de concessão petrolífera ou gaseífera não se confunde com o contrato de compra e venda de bens.

Em rigor, a privatização do bem público realmente ocorreria se ele fosse alienado, ou se ele deixasse de ser bem público por injunção constitucional ou legislativa.

No que concerne à prestação de serviços públicos, a Constituição Federal estabelece, nos termos de seu art. 175, duas opções: (i) a prestação por meio da Administração Pública Direta ou Indireta do titular do serviço público; ou, (ii) o recurso à concessão, viabilizando a sua exploração econômica por empresas privadas ou por empresas estatais de entes federativos distintos do titular da atividade em apreço.

Com efeito, as reformas constitucionais e legislativas dos anos 1990 viabilizaram a ampliação das concessões de serviços públicos.  Seguiu-se essa tendência nos anos 2000 e 2010, com o advento das parcerias público-privadas.

Contudo, o regime jurídico da concessão de serviço público não retira a titularidade estatal da atividade nem deixa o Poder Concedente desprovido de prerrogativas.

Para exemplificar, utilize-se o transporte coletivo urbano de passageiros por ônibus.  Qualquer empresa, livremente, pode disponibilizar esse serviço no mercado?  As empresas contratadas pelo Município, em regime de concessão, podem elevar ou reduzir as tarifas sem autorização do Poder Concedente?  Quem fixa as rotas a serem exploradas por cada concessionária: o Poder Concedente ou a empresa em apreço?

O serviço público não deixa de ser uma atividade estatal pelo fato de ele ser prestado por uma empresa privada sob regime de concessão.  Nesse campo, a privatização de fato ocorreria se a Constituição Federal deixasse de submeter a atividade ao regime jurídico do serviço público.  O que, inequivocamente, demandaria uma nova reforma constitucional.

Retorne-se ao exemplo do transporte coletivo urbano de passageiros por ônibus.  Atualmente, trata-se de serviço público municipal, que pode ser prestado diretamente pelo Poder Público ou sob regime de concessão, consoante o art. 30, V, da Constituição Federal.  Para que essa atividade pudesse ser realmente privatizada, impor-se-ia a revogação ou modificação desse enunciado normativo, por meio de Emenda Constitucional.

Por fim, a alienação do controle acionário de empresas estatais não têm vedação constitucional, desde que demonstrada a ausência de relevante interesse coletivo ou de imperativo de segurança nacional que justifique a permanência do ente empresarial na Administração Pública Indireta, partindo-se de uma leitura sistemática do art. 173 da Constituição Federal.  Ainda com a ressalva do setor nuclear, também não existe proibição constitucional para a aplicação dessa medida às empresas estatais federais que atuam no setor do petróleo e do gás natural, sem prejuízo do disposto no art. 177, § 1º, da Constituição Federal. 

Dentre as providências aqui indicadas, única que realmente obtém o consenso no lado liberal do espectro político-filosófico seria a alienação do controle acionário de empresas estatais.  Ainda assim, observados os limites constitucionais e legais, o sistema do Direito Positivo reconhece a validade dessa medida “neoliberal”.

O aumento da participação da iniciativa privada na atividade administrativa não a descaracteriza como atividade estatal, mantendo a Administração Pública as prerrogativas inerentes ao princípio da supremacia dos interesses públicos sobre os interesses privados.  Não afasta o compromisso do Estado com as metas constitucionais de Justiça Social que a Lei Maior lhe impõe. 

Tanto que houve a instituição de agências reguladoras, destinadas à assegurar a efetividade de políticas públicas nos setores reformados do domínio econômico.  Curioso esse “neoliberalismo”, que arma o Estado com um vasto conjunto de competências administrativas, permitindo-lhe intervir intensamente nos nesses setores, “vítimas” de “políticas neoliberais” desde os anos 1990.

A adoção de “medidas neoliberais” constitui matéria sujeita à discricionariedade administrativa.  E, como se sabe, os atos administrativos praticados com amparo no juízo de oportunidade da Administração Pública estão sujeitos aos princípios do regime jurídico-administrativo.  Ainda assim, o princípio da separação dos poderes e o reconhecimento da legitimidade de medidas “neoliberais” pela própria Constituição Federal esvaziam por completo o argumento do “neoliberalismo” no controle jurisdicional daqueles provimentos administrativos.



Por Vladimir da Rocha França (RN)

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